Última palavra

E se o Supremo errar no julgamento do mensalão?

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2 de agosto de 2012, 2h27

O alardeado julgamento do “caso”[1] que ficou conhecido como “mensalão” está certamente conseguindo prender a atenção das pessoas. A imprensa, em todas as suas formas de expressão, tem dedicado, nos momentos finais que antecedem o início do julgamento, boa parte de suas pautas com a expectativa do resultado. Não faltaram sequer exercícios de adivinhação, por vezes recobertos por gráficos com as contas exatas das penas possíveis, da prescrição inevitável para alguns e da possibilidade maior de apenamento (como o efetivo cumprimento) para outros.

O rosto de cada réu (comumente denominado “mensaleiro”) precisa aparecer no momento de se explicar ao expectador, ávido por essa informação, qual a probabilidade de sua sorte no julgamento. As defesas, quando todas as perguntas já parecem ter sido respondidas em potencial, são chamadas, talvez por amostragem, apenas para que se confirme a historicidade do julgamento que se pretende único. E novamente, as mesmas perguntas já formuladas em algumas dezenas de vezes são postas aterrorizantemente frente ao defensor na expectativa de uma confirmação, ainda que velada.

E na fileira dos questionamentos impactantes sob a perspectiva do ânimo, um talvez esteja em estado latente ou simplesmente jaz no espaço indefinível entre o mundo das ideias e o planeta renegado onde reside o medo da resposta: O que fazer se o Supremo errar?

Para alguns, quase será um sacrilégio lançar como possível a ideia do erro de julgamento do maior (e último) tribunal do país. Algumas bocas poderão dizer: há a revisão criminal. Sim, e neste caso, após o trânsito em julgado da decisão e do irremediável início (!) do cumprimento da pena, poderá o réu “mensaleiro” rever sua definitiva condenação.

Mas e quanto à possibilidade de uma reanálise do julgamento? O que fazer quando o Supremo Tribunal Federal atua em única instância? O duplo grau de jurisdição, trazido como direito inafastável do réu pelo Pacto de San José da Costa Rica, tratado ratificado pelo Brasil, logo com aceite da validade de seus termos e com o compromisso de os aplicar, deve ser digno da repercussão do “histórico julgamento do mensalão”. Eis o nó: por inviabilidade prática — por faltar a quem recorrer ou a quem tenha expressa previsão para julgar o recurso —, o réu com prerrogativa de foro (regra constitucional) está automaticamente excluído da proteção conferida ao réu “comum” pela Convenção Americana de Direitos Humanos, promulgada pelo Decreto 678, de 1992 (artigo 8º, 2, h e artigo 25)?

O foro por prerrogativa de função pode retirar do réu o direito de insurgência? Noutras palavras, quando a competência para o processo não for de juízes de primeiro grau, o réu passa a não ser mais alcançado pela proteção histórica que lhe é conferida em respeito ao direitos que são reconhecidos internacionalmente? E se históricos são os direitos humanos, não será materialmente constitucional qualquer norma, mesmo que internacional, que disponha de forma mais benéfica que o próprio regramento interno em favor do réu?

Algumas dessas perguntas, senão todas, de uma forma ou de outra, parecem já ter batido à porta do Supremo Tribunal Federal.

Em 2000, o Plenário do Supremo Tribunal Federal enfrentou a pretensão de validade do artigo 8º, 2, h, do Pacto São José da Costa Rica (RHC 79785-7, Rel. Min. Sepúlveda Pertence), compreendendo à época que o Pacto teria estatura de lei ordinária. Apesar da preocupação que os integrantes da corte demonstraram quanto à incorporação de normas incrementadoras de garantias individuais para além da previsão constitucional, a conclusão estava contra entendimento de doutrinadores como Flávia Piovesan[2], Antônio Augusto Cançado Trindade[3] e Sylvia Steiner[4]. Pesou, mais do que a falta de previsão específica de recursos de “apelação” de julgamentos criminais originários pelos tribunais, a primazia constitucional, mesmo quando seus termos fossem mais modestos do que os tratados internacionais de direitos humanos. Naquela ocasião, o ministro Marco Aurélio, vencido, entendeu que mesmo à míngua de previsão constitucional expressa de apelações (ou recursos ordinários) contra decisões proferidas em ações originárias em única instância, o Pacto determina o acolhimento irrestrito do duplo grau de jurisdição, sem ressalvas: “Julgada a ação penal ante a competência originária do Tribunal de Justiça e imposta condenação, abre-se a porta para a observância irrestrita à Convenção Americana Sobre Direitos humanos, abre-se a via recursal para o acusado, até então simples acusado, vir a lograr um novo crivo quanto à imputação feita” (Min. Marco Aurélio, voto vencido no RHC 79785-7 / RJ). A objeção do ministro Sepúlveda Pertence (aposentado) pesou contra, especialmente com relação às situações em que o STF seria a instância julgadora originária. A sugestão do ministro Marco Aurélio, na ocasião, seria um novo julgamento pelo próprio Supremo, a despeito do fato de que o duplo grau assegurado pelo Pacto pressupõe instância superior.

O advento da Emenda Constitucional 45/2004 parece ter incrementado a tensão. O acréscimo do parágrafo 3º ao artigo 5º da Constituição Federal 1988 — segundo o qual o status constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos está condicionado à sua aprovação por dois turnos, por três quintos dos integrantes das casas legislativas — favoreceu pouco a tese de que, tendo sido incorporado anteriormente à emenda, seu nível constitucional estaria assegurado. Setores importantes da doutrina internacionalista entraram em alarme, denunciando que a própria inclusão do parágrafo 3º ao artigo 5º da CF seria um retrocesso, pois os tratados internacionais de direitos humanos já tinham status constitucional quando incorporados ao ordenamento jurídico interno.

A evolução mais notável no sentido de adotar-se novidades trazidas no texto do Pacto se deu com a supressão da prisão civil de depositário infiel, com base no artigo 7.7 que só admite a prisão por dívida “em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”, conforme ficou consignado no RE 466.343 (relator ministro Cezar Peluso, Tribunal Pleno, julgado em 3 de dezembro de 2008). O leading case dividiu a corte com pequena maioria em favor da supremacia constitucional, com prevalência porém do entendimento de que a cláusula do tratado, restritiva da prisão civil, provocou um efeito paralisante na lei ordinária que disciplina a matéria (voto do min. Gilmar Mendes), sem entretanto agregar-se ao texto da Constituição. Vencido o ministro Cezar Peluso nesta parte, para quem o caráter histórico dos direitos fundamentais seria base suficiente para a adoção da restrição consignada no Tratado: “ou seja, é preciso que a Corte, no curso da história, diante de fatos concretos, vá descobrindo e revelando os direitos humanos que estejam previstos nos tratados internacionais, enquanto objeto da nossa interpretação, e lhes dispense a necessária tutela jurídico-constitucional” (voto do ministro Cezar Peluso, na parte vencido quanto ao status do Pacto. RE 466.343 / SP).

O duplo grau de jurisdição, explicitamente previsto como garantia mínima, fica num panorama ainda mais distante de plena aplicação no Brasil. Encontra a barreira do teto jurisdicional brasileiro — inexiste órgão jurisdicional acima do STF, exceto em caso, claro, dos crimes de responsabilidade, previsão que, eventualmente adotada numa analogia, poderia levar a soluções rumorosas. Encontra também a barreira, como entende ainda a Corte Suprema, das próprias exceções constitucionais, segundo o habitual argumento de que os direitos e garantias fundamentais, embora expressos, não são absolutos. E nesse sentido pouco importa se o Pacto está ou não ombreado com a Constituição. Ao menos assim entendeu a 2ª Turma (AI 601.832-AgR / SP. Rel. min. Joaquim Barbosa, julgado em 17 de março de 2009, DJe-064 divulg. em 2 de abril de 2009), ao afirmar não ser de caráter absoluto o acesso ao duplo grau de jurisdição, uma vez que a própria Constituição faz ressalvas prevendo julgamentos originários por tribunais superiores (ou tribunais locais) em caso de foro por prerrogativa de função, sem contemplar competências para recursos ordinários ou apelações desses julgamentos.

O aparato normativo brasileiro e o próprio STF parecem longe de agregarem sem ressalvas a garantia do duplo grau de jurisdição (no sentido clássico de reavaliação integral, por outra corte, de superior grau, da matéria de mérito do julgamento). E nesse contexto, quem ler as letras miúdas do Pacto vai se deparar com a estarrecedora conclusão de que eventuais violações aos seus termos sujeitam o Brasil à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (artigo 33), que tem o poder de determinar ao Brasil o cumprimento de suas regras (não traz exceções ou ressalvas, note-se), conforme o artigo 63.

Fato que, se feitas as perguntas, elas ainda continuam a merecer resposta. Sobretudo se se considerar pertinente a indagação no sentido de ser possível que regras de competência estabelecidas na Constituição Federal possam ser usadas validamente para justificar a anulação de um direito que para além razoável é fundamental.

Será que as respostas tornam-se mais difíceis quando o réu encontra a competência de seu julgamento no Supremo Tribunal Federal? A par da dificuldade, certamente a retomada deste tema é que deveria ganhar o título de “julgamento histórico”. Todavia, nada serve mais ao entretenimento do que conjecturas sobre o destino[5] final do réu, não importando a dimensão do caminho que se deve percorrer. Talvez, a proximidade de um final sem possibilidade de novos capítulos seja mais afeto ao gosto de nossa civilização não bem convicta da utilidade de seus direitos enquanto ganho da própria civilização.


[1] Não é incomum ouvir-se, em feito rumorosos, a palavra caso em substituição a processo. Isso talvez devesse ser fonte de algum preocupação, na medida em que a singularidade retira o feito da condição genérica e comum de qualquer processo para ocupar, em potencial, um espaço especial. Tal privilégio, no entanto, no mais das vezes, não representa nenhuma benesse.

[2] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e a jurisdição constitucional internacional. In: Revista latino-americana de estudos constitucionais. Paulo Bonavides (org). Del Rey, 2003. p. 337: “Ao processo de constitucionalização do Direito Internacional conjuga-se o processo de internacionalização do Direito Constitucional, mediante a adoção de cláusulas constitucionais abertas, que permitem a integração entre a ordem constitucional e a ordem internacional, especialmente no campo dos direitos humanos. Cabe, a título ilustrativo, a alusão aos artigos 4ªe 5º, parágrafo 2º da Consitituição Federal de 1988”.

[3] Antônio Augusto Cançado Trindade. A proteção internacional dos direitos humanos e o Brasil, 2 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000 pp 139-140

[4] Silvia Steyner. A convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua Integração ao Processo Penal Brasileiro. São Paulo: RT, 2000 p. 131.

[5] “A crônica judiciária e a literatura policial servem, do mesmo modo, de diversão para a cinzenta vida cotidiana. Assim, a descoberta do delito, de dolorosa necessidade social, se tornou uma espécie de esporte; as pessoa se apaixonam como na caça ao tesouro” (CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. 6. ed. Campinas: Bookseller, 2005, p. 46-7)

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