Direito & Mídia

A videopolítica e a supremacia da imagem nas eleições

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1 de agosto de 2012, 8h00

Spacca
O tailleur vermelho deixa entrever o colar de pérolas que envolve o pescoço, combinando com os brincos; as maçãs do rosto marcadas de um tom vivo conferem um aspecto jovial à senhora; a pele aveludada combina com o sorriso mostrando os dentes alvos e transmitindo a sensação de um momento feliz. A foto de campanha política de Margarida Salomão, do PT, à prefeitura de Juiz de Fora contrasta com outra imagem sua, de 2008, quando a candidata chegou ao segundo turno da disputa pelo mesmo cargo, sendo derrotada por Custódio Mattos (PSDB). O cabelo em desalinho; a fina correntinha de ouro chegando até o peito da camiseta vermelha que aparece sob a japona marrom entreaberta; o tom de pele esmaecido e os lábios fechados marcam uma expressão talvez de cansaço, sem o frescor da imagem atual. Os óculos escuros, refletindo a luz de alguma lâmpada do local, impedem de ver seus olhos ou sua mirada. Mas é no corte de cabelo que reside o contraste maior. E esse foi o mote para a reportagem de Ricardo Miranda publicada no site do UOL em 12 julho passado, com repercussão na revista Veja da semana seguinte. “O figurino usado por Margarida Salomão em sua foto oficial de campanha é muito similar ao utilizado por Dilma Rousseff na disputa de 2010. Além da roupa vermelha e do colar e brincos de pérolas, o corte de cabelo e o sorriso são parecidos”, escreve Miranda.

Doutora em Linguística pela Universidade da Califórnia em Berkeley, onde desenvolveu a tese sobre redes construcionais como solução para casos de polissemia, Maria Margarida Martins Salomão foi reitora da Universidade Federal de Juiz de Fora por dois mandatos consecutivos. É uma mulher de carreira acadêmica respeitável e não se trata de compará-la com as muitas senhoras que transformaram o corte de cabelo da presidente num best seller dos salões de cabeleireiro. O corte ficou famoso e ganhou um nome um tanto irreverente de “panetone invertido”.

Como se pode ler em alguns sites de moda e beleza, esse corte “prático e elegante de Dilma foi criado pelo cabeleireiro e maquiador Celso Kamura, o mesmo de muitas modelos e atrizes globais. O visual transmite uma mulher mais forte e séria; e, segundo Kamura, foi inspirado na estilista Carolina Herrera”, informa o PortaisdaModa.

Mas esse discreto modelo visual que exibe agora a sisuda ex-ministra da Casa Civil foi resultado de um processo desenvolvido em etapas desde o final de 2007, quando Luiz Inácio Lula da Silva começou a por em circulação a ideia de que Dilma poderia ser a sua sucessora, contava em 2009 a revista IstoÉ na reportagem “Como construir uma candidata”. Essa construção teve toques do requisitado marqueteiro João Santana, do jornalista Laurez Cerqueira, da cabeleireira Tian, do então ministro de Comunicação Social Franklin Martins, do cirurgião Sérgio Panizzon e do próprio Lula, ainda segundo a revista. Parece até ficha técnica de obra cinematográfica, mas é assim que se faz política há muito tempo, “constuindo a imagem do candidato”. Uma proposta iniciada no campo da fotografia.

Em 1957 o escritor francês Roland Barthes lançou o livro Mitologias, uma coletânea de 54 pequenos artigos publicados mensalmente na revista Les Lettres Nouvelles entre 1952 e 1956. Um desses artigos se tornou, como o livro, um clássico. É o “Fotogenia Eleitoral” e nele Barthes analisa as fotos dos candidatos nos panfletos e cartazes de propaganda eleitorais que se fixavam nos muros e postes da cidade. “A efígie do candidato estabelece um elo pessoal entre ele e os seus eleitores; o candidato não propõe apenas um programa, mas também um clima físico, um conjunto de opções cotidianas expressas numa morfologia, um modo de vestir, uma pose”, escreveu ele.

Como se sabe, à força da imagem estática veio somar-se depois a imagem em movimento da televisão. Três anos após o lançamento do livro de Barthes, entre setembro (dia 26) e outubro (dias 7 e 13) de 1960 os três debates entre os candidatos à presidência dos Estados Unidos, John Kennedy e Richard Nixon, foram vistos por 70 milhões de espectadores. No final do primeiro encontro a maior parte desse público televisivo apontou Kennedy como o vencedor. Mas os que seguiram o debate pelo rádio opinaram que Nixon vencera ou que o resultado fora um empate. Na mais apertada das eleições americanas, o novato e católico Kennedy foi o ganhador, inaugurando a era da “videopolítica”. Venceu por parecer mais atraente e confiável nas imagens transmitidas pela televisão.

Segundo a escritora argentina Beatriz Sarlo, a videopolítica é a forma atual da política nas sociedades ocidentais, embora existam outros modos de atuação. A política no espaço televisivo impõe novas regras sobre o discurso: mudanças no estilo de argumentação, no tipo de implicação entre os argumentos, nos níveis de linguagem que se apresentam como apropriados a convencer o eleitor, no sistema de imagens, no tipo de interpelação, como teoriza ela no ensaio Sete Hipóteses sobre a Videopolítica: “A vídeopolítica desliza por um continuum cujo ponto nodal está fortemente fixado no presente. A videopolítica intensifica o presente bem como debilita o passado e o futuro. A continuidade do tempo (o tempo do projeto, da comunidade, da história) é representada como uma sucessão de intervenções num presente deslocado do fluxo denso da temporalidade: as coisas aparecem e desaparecem a um ritmo que é completamente midiático”.

Na eleição de Fernando Collor em 1989, por exemplo, não importou seu passado ou seu programa de governo, mas o seu discurso inflamado e a “imagem” do caçador dos marajás.

No estudo citado, Beatriz Sarlo esclarece que nesse tipo de contato eletrônico, os políticos profissionais passam a apresentar-se com os atributos do homem e da mulher comuns: com uma família, com paixões, uma vocação como qualquer outra, defeitos e virtudes cotidianas. A imagem física do político ganha destaque nas “cirurgias plásticas, estilo das roupas e penteados decisivos na construção do candidato. Ele frequenta programas cujos gêneros e formatos são alheios aos discursos políticos, o que leva a uma mudança de estilo, justamente porque a ideia de deslocar a política para o entretenimento tem de respeitar as regras internas do entretenimento”.

Ou seja, se no estudo do Barthes se dizia que o candidato “não propõe apenas um programa, mas também um clima físico”, agora nem mais importa o programa e a proposta de atuação caso eleito. Ele ganha a competição pela atração visual, pela empatia que sua imagem desperta no eleitor.

A construção da imagem foi objeto de um amplo estudo da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz. Primeiro no alentado livro As Barbas do Imperador — D. Pedro II, um monarca nos trópicos, de 1999. E mais recentemente no pequeno livro De Olho em D. Pedro II e Seu Reino Tropical (2009). A figura do imperador é um caso exemplar da construção de imagem, por meio das pinturas oficiais, caricaturas produzidas pelas revistas semanais ilustradas que faziam oposição ao regime escravocrata e à esdrúxula insistência em exterminar Solano López quando a guerra com o Paraguai poderia ter se encerrado dois anos antes de seu fim.

Escreve Lilia, falando do herdeiro adolescente com o país ainda governado pelas regências: “Em retratos oficiais, cercado de símbolos locais, condecorações e brasões, o futuro rei já apresenta um olhar que lhe marcaria a personalidade: um olhar de dissimulação. É o imperador que olha sem ser jamais olhado. Ele também evita o traço de expressão, ou qualquer manifestação de sentimento. Eis um aspecto que é usual aos retratos da realeza mas que combinava de forma singular com esse ‘órfão nacional’”.

Mais tarde, durante o conflito com o Paraguai, “O rei se faria retratar trajando uma farda militar e tentando passar a seriedade e a serenidade que o momento exigia”. Finda a guerra, o retrato oficial do imperador seria uma vez mais alterado, apresentando “uma nova figuração, d. Pedro, de cartola e casaca, confundindo-se com seus súditos quando estava no meio deles”.

A professora de Juiz de Fora não está, portanto, sozinha na busca de uma imagem que transmita “algo” ao eleitor, que finalmente votará numa imagem, mais do que num programa concreto de governo. Menos mal que ela se inspira num modelo que tem o aval das estrelas da Globo. Poderia ter escolhido outras tantas imagens bizarras que atualmente povoam a videopolítica sul-americana. Como a da presidente Cristina Kirchner, dublê de apresentadora de entretenimento televisivo, com a mecha do cabelão sempre escondendo o olho direito, e cometendo gafes como a de mostrar a capa do jornal madrileno El Pais, com a foto do ministro da Economia espanhol Luis de Guindos, dizendo: “Vejam esse careca”. Ou do falso índio Evo Morales. Ou do bolivariano Hugo Chávez.

Em seu livro Cristãos Rumo ao Século XXI, de 1997, o teólogo belga José Comblin, que trabalhou no Brasil desde 1958 (faleceu no ano passado no interior da Bahia, aos 88 anos) apresentava três cenários futuros para o século que já estamos vivendo. Profundo observador de nossa situação, o cenário que ele considerava mais realista, até por ser o habitual na história latino-americana, era o do advento de um novo populismo. Escrevia ele: “Na América Latina os povos movem-se quando surge uma classe de líderes nacionalistas, populistas, que saibam conduzi-los […] mas esse novo líder dará satisfação a algumas reivindicações populares, não rompendo com as classes dirigentes.”

O livro é de 1997. Chávez chegou à presidência da Venezuela em 1998. Evo Morales ganhou as eleições em 2005, assumindo em 2006. Cristina Kirchner, após ser a primeira dama da Argentina de 2003 a 2007, foi eleita nesse ano. O primeiro está em seu terceiro mandato, pleiteando um quarto. Evo e Cris cumprem o segundo mandato. A previsão de Comblin parece estar em marcha.

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