Senso Incomum

Como se prova qualquer tese em Direito

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26 de abril de 2012, 3h37

Caricatura Lenio Streck [Spacca]Na sequência do artigo da semana passada, em que fiz uma ácida crítica às teses objetivistas e subjetivistas, trago hoje à baila uma estorinha que me permito adaptar. É uma estorinha antiga, construída por autor – ao que tudo indica – desconhecido (fui atrás e não descobri), para mostrar a “vontade do poder” do orientador de teses de mestrado e doutorado (qualquer semelhança com o que ocorre em decisões judiciais não é mera coincidência). Assim, em face da ótima repercussão da coluna anterior – embora alguns pronunciamentos de afoitos pré-kelsenianos não muito amistosos -, aí vai a adaptação da estorinha, com uma boa dose de licença poética. Peço, como tutela antecipatória, que os estimados leitores leiam o(s) texto(s) até o final e não façam como alguns que chegam a dizer “não li e não concordo”… Ou, como outros que, tivessem lido o artigo todo, não precisariam discordar, por exemplo, sobre minha tese acerca dos princípios ou sobre a “letra da lei”.(permito-me remeter os meus estimados leitores, de novo, ao texto Aplicar a Letra da Lei…, que pode ser encontrado em http://www6.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/2308). Lembro, também, que fui eu quem cunhou a expressão “pan-principiologismo”!

Então.

Num dia lindo e ensolarado, o coelho saiu de sua toca-triplex com o notebook e pôs-se a trabalhar, bem concentrado. Usava óculos de aros grossos, o que lhe dava uma aparência séria e intelectual. Pouco depois, passou por ali a mestranda raposa (ela fazia dissertação sobre o “relevantíssimo” tema “O Papel dos Embargos dos Embargos na Pós-modernidade: Um Olhar Retrospectivo”), e viu aquele suculento coelhinho (no original em alemão, dass saftig Hase), tão distraído, que chegou a salivar. No entanto, ela ficou intrigada com a atividade do coelho (também chamado de Kaninchen) e aproximou-se, curiosa:

R – Coelhinho, o que você está fazendo aí tão concentrado?

C – Estou redigindo a minha tese de doutorado – disse o coelho sem tirar os olhos do trabalho, apagando o cigarro nervosamente.

R – Humm … e qual é o tema da sua tese?

C – Ah, é uma teoria provando que os coelhos são os verdadeiros predadores naturais de onívoros como as raposas.

R – Ora! Isso é ridículo! Nós é que somos os predadores dos coelhos! Isso está em qualquer livro que trata do assunto, como, por exemplo, o recém lançado “Manual da Cadeia Jurídico-Alimentar para Estagiários”. Há, ainda, um outro, chamado “Manual da Improbidade Intelectual”. Mas, diga-me: qual é a sua teoria de base? Sua matriz teórica?

C – Minha tese está sustentada na Jurisprudência dos Interesses. Embora a lei diga que as raposas são os predadores dos coelhos e outros animais, fui buscar, a partir de uma análise sociológica, os interesses que moveram o legislador. Li Philipp Heck e lá encontrei a solução a partir da Abwägung (sopesamento, ponderação de interesses; na verdade, aludiu, descobri também que foi ele quem cunhou a expressão Abwägung no direito, mais de setenta anos antes de Alexy). E, bingo. Cheguei a essa conclusão. De todo modo, vou detalhar isso melhor. Venha comigo à minha toca-biblioteca, que lhe mostrarei toda a bibliografia original (esse coelho era “metido”!).

O coelho e a raposa entram na toca-biblioteca. Livros à mancheia. Poucos instantes depois, ouvem-se alguns ruídos indecifráveis, alguns poucos grunhidos e depois silêncio. Em seguida o coelho volta, sozinho, e mais uma vez retoma os trabalhos da sua tese, como se nada tivesse acontecido. Meia hora depois passa um lobo, recém-formado. Levava debaixo do braço sua mais recente aquisição, um grosso livro chamado “Como Aprender Direito Através de Raciocínios Pequeno-gnosiológicos”. Ao ver o apetitoso coelhinho tão distraído, agradece mentalmente à cadeia alimentar por estar com o seu jantar garantido. No entanto, o lobo também acha muito curioso um coelho trabalhando naquela concentração toda, manejando o seu flamante Apple. O lobo então resolve saber do que se trata aquilo tudo, antes de devorar o coelhinho:

L – Olá, jovem coelho. O que o faz trabalhar tão arduamente?

C – Minha tese de doutorado, bacharel Lobo – e acendeu mais um Parliament (ele era politicamente incorreto). “É uma teoria que venho desenvolvendo há algum tempo e que prova que nós, coelhos, somos os grandes predadores de vários animais carnívoros, inclusive dos lobos.”

O lobo não se contém e cai na gargalhada com a petulância do coelho.

L – Apetitoso coelhinho! Isto é um despropósito. Nós, os lobos, é que somos os genuínos predadores dos coelhos. Até aquele livro, “Direito dos Animais Descomplicado”, que já vendeu mais de 20 edições, diz isso. Também o livro “ABC da Predação das Espécies” aponta nessa direção. Tem também as publicações plastificadas que explicam bem isso.[1] Diga-me: qual é a sua matriz teórica?

C – Minha tese – e fez uma pausa para uma longa tragada – está fulcrada na Jurisprudência dos Valores. Sim, a Wertungsjurisprudenz (era terrível esse coelho; agora já esta lançando mão de outro aporte). Por debaixo da lei que diz que, vocês, lobos, são os nossos predadores, estão os valores da sociedade. São esses valores que devem guiar o intérprete no momento da aplicação do direito. E eu os descobri. A lei é apenas a ponta do iceberg. O ius difere da Lex… O barco do positivismo exegético bate na parte invisível do iceberg (neste instante, seu olhar de superioridade parecia insuportável para o Bel. Lobo). A propósito, se você quiser, eu posso apresentar a minha prova. Você gostaria de me acompanhar à minha toca-biblioteca, para um chá, um charuto e uma discussão teórica de alto nível?

O Lobo não consegue acreditar na sua boa sorte. Ambos desaparecem toca-biblioteca adentro. Alguns instantes depois, ouvem-se uivos desesperados, ruídos de mastigação e … silêncio. Mais uma vez o Coelho retorna sozinho, impassível, e volta ao trabalho de redação da sua tese, como se nada tivesse acontecido… Ao invés do cigarro, mastiga um Partagás, cuja cinza ameaça cair a todo instante…

No dia seguinte, passa um Coiote, este cursando mestrado profissionalizante. Seu trabalho de conclusão versaria sobre “Como Construir Petições no Twitter – um (novo) Olhar Gestional” (genial ele, não?). Mesma história. Diálogo parecido. E o Coiote, rolando de tanto rir, faz a mesma pergunta: e em que você se baseia? Não me venha com churumelas. Li tudo a respeito no livro “Como Aprender O Direito Natural dos Animais em 15 minutos”, já em sua 30ª edição”. E o Coelho responde: baseio-me na “ponderação de princípios” (ou valores, porque princípios são valores, você bem sabe…- pelo menos para os adeptos do caráter teleológico dos princípios). Na verdade – e, com isso, o doutorando Coelho já estava na sua terceira matriz teórica – “fiz um sopesamento e facilmente cheguei a conclusão de que, entre os valores em jogo, facilmente se conclui que são os coelhos os predadores dos coiotes. Mas, veja bem (neste instante, tomou um pequeno gole de brandy)… Fiquei pensando qual seria a teoria que eu adotaria, para sustentar minha tese. Poderia, por exemplo, ter adotado “o lado b” da teoria kelseniana, constante no capitulo oitavo da Teoria Pura do Direito. Calma, calma, já explico. Como se sabe,[2] Kelsen fez a TPD sob os influxos das influências do positivismo lógico praticado pelos filósofos que participaram do chamado “Círculo de Viena” (neste momento, o Coelho fez várias citações para mostrar ao seu incauto interlocutor como Kelsen produziu sua teoria no entroncamento de duas grandes tradições: o neokantismo da escola de Marburgo e o positivismo lógico). Nos termos do que postulava esse movimento teórico, a construção de uma ciência – com uma linguagem rigorosa – dependia da construção de uma metalinguagem sobre a linguagem objeto. A ciência do direito é da ordem da metalinguagem (essa é a TPD): resolve os problemas lógicos que a linguagem objeto – no caso o direito e suas práticas cotidianas – produz (que chato esse coelho… precisava explicar isso desse modo para o Coiote, um pobre Canis latrans que estava preocupado com a pragmaticização do direito?).”

É por isso que, para Kelsen, continuou o doutorando Cunniculus da família Leporidae, “a aplicação judicial/interpretação do direito é um ato de vontade (e citou, de cabeça, vários Ministros da Corte Suprema do Reino que exatamente dizem isso: que ‘a interpretação é um ato de vontade’!), sendo que a interpretação da ciência do direito é um ato de conhecimento. Veja como Kelsen é um autor complicado. Ao mesmo tempo em que pretende uma TPD, no plano aplicativo se rende ao fato de que os juízes fazem política jurídica. Eis aí o “ovo da serpente” do decisionismo…”. Pensei, pensei – concluiu o Kaninchen – “e optei pela ponderação que vem sendo trabalhada pelas teorias da argumentação. Afinal, discricionariedade por discricionariedade, mormente como ela é aplicada em terrae brasilis,[3] preferi a ponderação, a “pedra filosofal da interpretação”. É mais charmosa… Pego um princípio (ou um valor) em cada “mão”, pondero, e, pronto… Aí está a solução. E nem preciso construir a regra adstrita.”

Mas o Cunniculus aspirante ao doutoramento não parou por aí. Empolgado – enquanto acendia mais um cigarro – ainda completou: “confesso que até fiquei tentado a usar algumas teses pragmaticistas-realistas, retiradas do direito norte-americano. Daria no mesmo”. E, fazendo ar de desdém, deu por encerrada a discussão, não sem antes convidar o visitante a visitar a sua imensa toca-biblioteca.

Na sequência, ambos – coelho e coiote – desaparecem toca-biblioteca adentro. Alguns instantes depois, ouvem-se uivos desesperados, ruídos de mastigação e … silêncio. Mais uma vez o coelho retorna sozinho, impassível, e volta ao trabalho de redação da sua tese, como se nada tivesse acontecido… Seu olhar, agora, era blasé. Como se tivesse pena do mundo.

Na cena que só pôde ser vista em circuito fechado, dentro da toca-biblioteca do coelho vê-se uma enorme pilha de ossos ensanguentados e pelancas de diversas ex-raposas e, ao lado desta, outra pilha ainda maior de ossos e restos mortais daquilo que um dia foi de lobos, além de ossos de coiotes… Ao centro das duas pilhas de ossos, charutos cubanos e garrafas de Dom Perignon, um enorme Leão, satisfeito, bem alimentado e sonolento, a palitar os dentes…

MORAL DA ESTÓRIA:

– Não importa quão absurda é a tese (ou causa) que você pretende sustentar;

– Não importa se você não tem o mínimo fundamento científico;

– Não importa o tipo de livro que você está lendo;

– Não importa se os seus experimentos nunca cheguem a provar sua teoria;

– Não importa nem mesmo se suas ideias vão contra o mais óbvio dos conceitos cunhados pela tradição da teoria (no caso, do direito)…

– O que importa, mesmo, é o poder (discricionário), é o subjetivismo, é o solipsismo que está por trás do seu argumento (ou quem seja o seu orientador, se estivermos a tratar de uma tese…). O que importa é a “vontade do poder”; o que importa é que a “interpretação seja um ato de vontade”, seja essa “vontade” entendida como poder discricionário, arbitrário, busca dos interesses, dos valores, etc.(se estivermos a tratar de uma decisão judicial…). O que importa é que a decisão seja produto dos subjetivismos. Com isso, sempre se terá a resposta que se quiser. Afinal, como referi na coluna anterior, sob o pretexto de superarmos as teses objetivistas, caímos no império dos axiologismos e subjetivismos.

Pois é. Metáforas, estórias, histórias, metonímias, etc., servem para ajudar a entender a realidade (ou a real-idade das coisas). Vejam como são (ess)as coisas. A coluna sobre a “tomada do poder pelos estagiários” provocou a ira de muitos magistrados (não só deles). Claro que isso tem a ver com a coluna da semana passada e a de hoje. Afinal, a temática é a mesma. Talvez eu não tenha sido claro o suficiente. Mea culpa. Fiz a coluna (a dos estagiários) a favor das Instituições (como, aliás, faço todas). Escrevi o texto como uma ode à Justiça e à magistratura. Na verdade, uma homenagem. E não há qualquer ironia nisso que estou dizendo. Fosse para, simplesmente, fazer escárnio ou blague, não escreveria na ConJur. Não sou humorista. Todos os meus textos e livros – e não são poucos – defendem a Jurisdição (Constitucional). Chego a dizer que mesmo se esta Constituição for retalhada, erodida, poderemos resistir – nós, magistrados, juristas em geral – para sustentar a democracia, porque os princípios constantes na Constituição são inamovíveis. Um Judiciário democrático assumirá a vanguarda dessa resistência. Sugiro a leitura, nesse sentido, de meu O Que é Isto – Decido Conforme minha Consciência? (Livraria do Advogado, 3ª Ed), onde deixo isso claro. Muito claro! Acho que mais não preciso dizer do meu amor pelas Instituições e do respeito que por elas nutro.

Numa palavra quase final: queremos, todos, uma sociedade democrática. E, fundamentalmente, Instituições democráticas. Um judiciário democrático. Um Ministério Público democrático. Que as decisões de ambos não sejam fruto de opiniões pessoais. Que as decisões não sejam fruto do subjetivismo ou voluntarismo. Ninguém é neutro. A neutralidade é uma fraude. Não é disso que se trata. Já escrevi muito sobre isso. Decidir não é o mesmo que escolher. Por isso, a necessidade de cobrarmos a responsabilidade política das decisões (cf. Verdade e Consenso, posfácio, 4ª Ed., Saraiva, 2011). É o que chamo de accountability hermenêutica.

Temos que acabar com essa sanha relativista em terrae brasilis (como eu gosto dessa expressão!). A metáfora do coelho é uma crítica ao relativismo, que é uma praga contemporânea. Relativismos geram paradoxos. E paradoxos são coisas sobre os quais não posso decidir. Deles só é possível sair de forma artificial, a partir de uma metalinguagem. Sim, existem respostas melhores que outras. E decisões corretas (adequadas à Constituição) e respostas incorretas (não adequadas). Portanto – e permito-me repetir esse meu antigo jargão – não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa e depois buscar a justificativa, como fez o “doutorando-coelho”.

Portanto, que não se venha a dizer que “temos que respeitar qualquer opinião, por mais absurda que seja”, ou “cada um tem o direito de dizer o que quer”… Ou, ainda, que “Amado Batista é tão bom quanto Chico Buarque”, “que Claudia Leite é genial”, “que aquele livro sobre ‘direito ‘x’ simplificado ou descomplicado é tão bom quanto o do Celso Antonio Bandeira de Mello (que, aqui, aproveito para homenagear)’”, “que gosto não se discute”, “que cada um interpreta como quer”, “que direito é coisa simples”, “que direito é prática”, que “sentença vem de sentire” (horrível isso!)… Há coisas sobre as quais não se deve falar. Há limites no que se pode dizer. Por isso existe a cultura. Por isso existem teorias. Por isso o direito é alográfico. Caso contrário, o marceneiro ou o pipoqueiro poderiam “ler a lei” (embora juristas possam vender pipocas, é claro). Por isso, não é qualquer “nécio” que pode se meter a escrever um livro sobre direito pretendendo ensinar aos outros aquilo que nem ele sabe… Ou “ensinar” aquilo que retirou, através de um “recorta e cola”, do Dr. Google. Ou um livro que repete o que diz a lei… Não, não é qualquer um que pode se arvorar no direito de gastar papel para escrever textos epistemo-cariturais… Isso tem que ser dito. Temos que ter coragem de dizer isto. No mínimo para preservar o meio-ambiente…

Há coisas cunhadas pela tradição (autêntica, no sentido que Gadamer dá à palavra) que já não podem ser contestadas, como a de que “o positivismo é intrinsecamente ligado à discricionariedade” e que “é tão positivista aquele que defende posturas objetivistas como aquele que defende posturas axiologistas-subjetivistas”. Não é por nada que os realistas escandinavos (mormente eles) eram chamados de “positivistas fáticos”. Desse modo, enquanto não nos acostumarmos a refletir mais profundamente sobre o direito, enquanto ficarmos reféns de uma “cultura standard”, “simplificadora”, “descomplicadora”, “manualesca”, enfim, uma cultura jurídica de terceira e quarta divisões (alusão ao futebol), não conseguiremos superar os problemas da própria democracia.

Sim, os problemas da democracia. Ou alguém vai dizer que, hoje, as Instituições encarregadas de administrar a Justiça são democráticas no tratamento com as partes? Ou alguém vai negar que vivemos uma crise de efetividade qualitativa, porque optamos por um imaginário simplificador calcado em “efetividades quantitativas”, no interior do qual as decisões são meras reproduções de ementários sem contexto, enfim, conceitos sem coisas? Enfim, pergunte-se: está bom assim como está? Você está sendo bem tratado? Suas petições são lidas com atenção? Quantos embargos declaratórios inúteis você tem de fazer? Nas prisões estão os poderosos da República? Aliás, as prisões são ou não são masmorras medievais (como disse o Min. Peluso)? Ah: O ensino jurídico vai bem? Ou: os concursos públicos perguntam coisas substanciais ou brincam de fazer armadilhas? A advocacia não está cartelizada? Está fácil para o jovem advogado ingressar no “mercado”? Mas se o Brasil é (era até esses dias) a 5ª economia do mundo, por que todos os que ingressam no direito querem ir para a máquina pública? Ainda: está tudo bem quando alguns Ministros do STF se xingam, com epítetos de “inseguro”, “ridículo”, “brega”, “caipira”, “desleal”, “pequeno”, etc.? Que tal? Está tudo bem? Pode o STJ trocar de posição da noite para o dia e depois trocar de novo, como se o direito não tivesse DNA?

Se assim está bem para você, retiro tudo o que disse. Agora. Já! And I rest my case. E cada um pode sair por aí dizendo “qualquer coisa sobre qualquer coisa”. E sigamos como os mittleufers (os que andam com os outros, com a malta) e viver uma Lebenslüge (uma vida de mentira)… Como o coelho da metaforinha acima. Basta procurar em seu armário gnosiológico uma teoria prêt-à-porter. Sempre haverá alguma tese doutrinária ou algum “precedente” de caráter solipsista para sustentar que Michel Teló é um novo Mozart. Talvez o que lhe falte é ouvir menos…

Penso que a fonte de tudo isso está na má-compreensão acerca da raiz do direito: o positivismo. Talvez por isso tenhamos uma tão errônea compreensão sobre o papel dos princípios, transformados em álibis para sustentar qualquer decisão (como as do coelho). Como bem disse outro dia L.F. Veríssimo: rios são metáforas fortes. Daí o mistério de buscar a nascente dos rios. Imagine-se a emoção dos exploradores da National Geographic quando descobriram os pingos da geleira do Nevado Mismi, no Peru, onde aparece o filete d’água que se transforma no Amazonas. E a alegria de Joseph Conrad quando encontrou os primeiros pingos do Nilo, no coração escuro da floresta do Congo. Diz Veríssimo: as nascentes são metáforas mais obscuras: do começo e da razão profunda de tudo. Do primeiro mistério.

Concluo com Guimarães Rosa: “só na foz dos rios é que se ouvem os murmúrios de todas as fontes”. Talvez o que falte para o direito é buscar a nascente. Sim. Encontrar os primeiros pingos. Os primeiros filetes. Sim, eles estão lá: na história. No nascedouro do positivismo. Desvendando esses segredos, talvez possamos compreender as pororocas no interior das quais procuramos sobreviver na contemporaneidade… Penso que o direito é um fenômeno tão complexo como um manancial que nasce dos pingos e se transforma em enchente. Por isso, de novo Guimarães Rosa: “Essa água que não para, de longas beiras”. Ou, como diz o poeta Eráclio Zepeda: quando as águas das enchentes cobrem a tudo e a todos, é porque de há muito começou a chover na serra; nós é que não demos conta…!

OBS 1.: é evidente que as diversas matrizes teóricas mencionadas pelo coelho – que também estão, digamos assim, “metaforizadas” – estão, nos limites da metáfora ou estorinha, bastante resumidas. No futuro, no livro que o coelho provavelmente publicará, elas estão explicitadas amiúde.

OBS.2: como consta nas tarjas dos filmes, sinto-me na obrigação de referir que este artigo foi produzido em ambiente controlado, por profissional habilitado e nenhum coelho, raposa, lobo ou coiote foi maltratado durante a sua realização!


[1] Importante: as publicações plastificadas têm uma vantagem: podem ser lidas enquanto o utente toma banho!

[2] Na verdade, o Coelho sabia que, quem faz mestrado profissionalizante, não sabe que Kelsen fez uma meta-linguagem sobre uma linguagem objeto. O “como se sabe” dele foi sarcástico. Esse Coelho…

[3] Uso terrae brasilis por duas razões. A uma, porque é um neologismo que inventei de há muito; a duas, para irritar algumas pessoas que escrevem emails para o Conjur fazendo correções etimológicas e vernaculares das minhas colunas. Na verdade, quando comecei com essa expressão (terrae brasilis), não tinha a intenção de gerar animosidade em alguns corações brasiliensis (ups!).

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