Encontro de ciências

No ministro Britto, literatura e Direito se encontram

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24 de abril de 2012, 6h34

Na última quinta-feira, dia 19 de abril de 2012, o Ministro Carlos Ayres Britto chegou à presidência do Supremo Tribunal Federal. Sergipano, afável, reconhecido na academia, ele se revelou por toda sua vida na corte, cujo clico chega ao fim neste mesmo ano, um ministro-poeta, nas palavras de um dos mais reconhecidos constitucionalistas do Brasil, o Professor Luís Roberto Barroso.

Discordo da ordem dos adjetivos. Para lembrar Machado de Assis, cuja obra o Ministro Ayres Britto deve sempre ter lido, ele é um poeta-ministro, alguém que encontrou vazão para sua poesia onde os maiores dramas da vida são encenados: no Direito. Recordando-me de Antonio Skárrmeta, em seu magistral “O Carteiro e o Poeta”, fiquemos ainda com a ideia de que poeta é também quem faz uso da poesia.

O ato simbólico de um poeta chegar à presidência da Corte Constitucional, sem fazer juízo de valor de sua obra literária, é excepcional. Em seu discurso de posse, citou palavras de um cidadão simples, que dizia ser a única coisa a esperar dele o cumprimento da Constituição.

Aliás, é justamente essa mesma Constituição que o faz ter uma gestão de apenas sete meses, pois, ao completar setenta anos, aposenta-se compulsoriamente e abre espaço para um novo ministro ser escolhido, dando concretude à variação no poder, que é uma grande marca de nosso projeto democrático.

Lembro-me aqui de Franz Kafka, em um pequeno conto intitulado Ante a Lei, descrevendo o drama que envolve o ser humano na busca da justiça. Na parábola, é mostrado que ante o portal da lei há um guardião, perante o qual chega um camponês rogando que lhe seja franqueado ingresso. No entanto, o guardião diz que não pode permitir a entrada e, respondendo à pergunta do camponês, afirma que talvez mais tarde pudesse ele entrar na Porta da Lei.

O camponês observa o interior, fica tentando a entrar, mas desiste pela admoestação do guardião de que se recordasse de quão poderoso ele é. Dias e anos passam, sempre perguntando o camponês se poderia entrar, e recebendo a mesma resposta, de que talvez mais tarde.

Com o decorrer do tempo, a capacidade física do camponês se esvai, chegando a pensar se ainda consegue enxergar, usando do pouco da força que lhe resta para perguntar: todos buscam a lei – diz o homem – e como é que em todos os anos que levo aqui, ninguém mais além de mim solicitou ingresso para entrar? Em tom trágico, responde o guardião: “Ninguém mais podia entrar aqui, porque esta entrada estava destinada a você somente. Agora fecharei”.

As portas da Justiça não podem ficar fechadas para o cidadão. A Constituição deve regular todos os quadrantes da vida humana, mas não basta um texto normativo perfeito para homens que o apliquem de forma imperfeita. E não há perfeição possível na interpretação jurídica sem humanidade. Nem existe interpretação descolada da realidade social, como bem sabe o ministro, que foi quem admitiu intervenções como amigos da corte de várias instituições e, inclusive, convocou audiência pública para discutir a constitucionalidade de dispositivos da lei de Biossegurança na Ação Direta de Inconstitucionaliddade 3.510.

Para mim, que, como o ministro Ayres Britto, acredita que apenas a leitura realmente pode transformar um homem, não existe possibilidade de interpretação literal ou objetiva, nem mesmo de se acreditar numa aptidão única para quem é iniciado no Direito ou na Filosofia Política para ter a interpretação melhor e possível para os problemas sociais. Algo que o jurista argentino Carlos Santiago Nino chamou de “elitismo epistemológico”

Não têm os operadores do Direito, mesmo os ministros do Supremo Tribunal Federal, as únicas chaves de leitura dos dispositivos normativos, como se fossem mais inclinados a bem governar e a tudo decidir. Os juízes não governam, evitam o desgoverno. É um mantra que Carlos Ayres Britto repete.

A leitura liberta, insisto. O rico que lê tem sensibilidade; o juiz que lê tem humanidade; o pobre que lê encontra forças para melhorar sua condição; a criança que lê enxerga a outra – e crianças às vezes podem ser crueis pela ingenuidade e pureza que carregam consigo –, o adolescente que lê se entrega a um vício que nenhum mal faz a ninguém.

Daí ser tocante ver alguém que convoca o magistrado a manejar os dois hemisférios do cérebro humano: o lado esquerdo, lócus do pensamento, e o lado direito, lócus do sentimento. Desde a física quântica, colocou-se em xeque qualquer possibilidade de objetividade e se acredita cada vez mais que razão e sentimento andam juntas.

“Quem não solta as amarras / deste navio de nome coração / corre o risco de ficar à deriva / é no próprio cais do porto”. Transformei em versos essa parte do discurso, para mostrar que ele fala ao coração da sociedade brasileira, chamando os magistrados ao sensitivo, invocando da literatura mística o “terceiro olho”, o único “que não é visto, mas justamente o que pode ver tudo”.

“Ninguém respeita a Constituição / mas todos acreditam no futuro da nação” foram as frases que minha geração ouviu da Legião Urbana. Mas a Constituição só é respeitada quando incorporada aos hábitos de todos, razão pela qual é importante Direito e Literatura se aproximarem – um movimento que cresce cada vez mais – para sabermos quem opera com o Direito e quem se vê numa relação processual, o valor da Constituição-cidadã.

Ainda estamos longe de um mundo ideal, mas as coisas mudaram. Entre pequenos gestos de anônimos ou atos emblemáticos de ilustres – que servem apenas para realçar uma mudança de perspectiva e não diferenças axiológicas entre seres humanos, iguais ante a lei – a história das relações institucionais brasileiras vai mudando uma herança patrimonialista e de pouco apreço à coisa pública. Não sem retrocessos, como em qualquer processo de ruptura, mas como uma marcha utópica que abraçamos.

Entre marcos simbólicos, cita-se, primeiro, o de um simples torneiro mecânico e sindicalista tornar-se presidente da República, chorar ao ser diplomado no Tribunal Superior Eleitoral, afirmando que aquele era o primeiro diploma de sua vida. Agora, é a vez de a Literatura se encontrar com o Direito pelas mãos do ministro Carlos Ayres Britto. Não o único encontro, mas talvez o mais noticiado. Atos humanos, demasiadamente humanos, esses de um poeta virar presidente do Supremo Tribunal Federal, e de alguém que não veio dos estratos intelectualizados ter chegado à Presidência da República, em um país que passou a ver visto como de bachareis.

Os homens são imperfeitos; as instituições podem se aperfeiçoar, mas o discurso de posse do ministro Ayres Britto é um chamado à reflexão. Insiste-se em trazer sensibilidade para uma profissão que, sob uma cartilha ortodoxa, já foi vista como o espaço para a objetividade absoluta e para a distância plena entre juiz e jurisdicionados. Como se isso implicasse em um melhor julgamento.

Para esse momento tão singular e singelo, imaginando o rosto sereno do ministro, deixo-lhe versos de Pablo Neruda, esse um poeta que se encontrou na política: “Largas linhas profundas, / capítulos cortados / pela idade em sua cara, signos interrogantes, / fábulas misteriosas, / asteriscos, / tudo o que esqueceram as sereias / na estendida / solidão de sua alma, / o que caiu / do estrelado céu, / ali estava em seu rosto / desenhado” (Ode al viejo poeta. In: “Nuevas odas elementales” ).

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  • Brave

    é procurador da fazenda nacional e professor, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio e doutorando em Filosofia do Direito pela Universidade de Girona

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