Licença para matar

Lei sobre legítima defesa é analisada nos nos EUA

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20 de abril de 2012, 16h33

O vigilante George Zimmerman, que matou o adolescente negro Trayvon Martin, em 26 de fevereiro, na Flórida, e só foi preso na semana passada, depois de muita pressão popular, poderá responder processo por homicídio em segundo grau em liberdade, se pagar uma fiança de US$ 150 mil. A decisão foi tomada, nesta sexta-feira (20/4), pelo juiz Kenneth Lester. Zimmerman foi proibido de usar armas, ingerir bebidas alcoólicas, usar drogas e obrigado a cumprir horário para se recolher. Terá, ainda, de usar um dispositivo de monitoramento eletrônico para não tentar fugir, noticia o Chicago Tribune

Zimmerman foi acusado de homicídio em segundo grau pela promotora especial Angela Corey, nomeada pelo governador da Flórida, Rick Scott, para cuidar do caso. A promotora optou por não levar o caso a um Grand Jury, que teria o poder de decidir se Zimmerman poderia ser processado criminalmente ou não. Ela preferiu evitar surpresas e assumir, ela mesma, a responsabilidade de decidir o grau da acusação, levar o réu a julgamento e possibilitar uma investigação mais completa do caso — em vez de deixar todas essas decisões nas mãos do Grand Jury. Ela poderá pedir pena de prisão perpétua para Zimmerman. 

Na noite do crime, o vigilante voluntário George Zimmerman, de 28 anos, branco (filho de pai americano e mãe peruana), seguia em seu carro o estudante Trayvon Martin, de 17 anos, que caminhava de volta para casa, depois de comprar um lanche e um refrigerante em uma loja de conveniência. Telefonou para a Polícia para denunciar a presença de um "suspeito" na área. Ele descreveu o "encapuzado" e comentou (conforme gravação liberada pela Polícia): "Esses filhos da puta sempre se safam". Trayvon cobria a cabeça com o capuz de sua jaqueta porque chovia. O operador da Polícia perguntou a Zimmerman se estava seguindo o "suspeito", o que ele confirmou. O operador lhe disse que não devia fazer isso, porque uma viatura da Polícia já estava a caminho. Mas Zimmerman ignorou a ordem. Desceu de seu carro, confrontou o garoto e lhe deu um tiro no peito. 

A Polícia sequer tentou prender Zimmerman. Declarou à imprensa que, se o prendesse, poderia ser processada por infringir a lei estadual, chamada Stand Your Ground Law (Lei não ceda terreno). Conforme já descrito na revista Consultor Jurídico, essa lei estadual, aprovada em 2005 pelo então governador Jeb Bush (irmão do ex-presidente Bush) e subsequentemente copiada por mais 15 estados americanos, mudou o conceito de legítima defesa, seguindo os preceitos de uma outra lei, conhecida como Castle Doctrine (doutrina do castelo), Castle Law (lei do castelo) e Defense of Habitation Law (lei da defesa da habitação). 

A doutrina da legítima defesa previa que a pessoa tinha a obrigação de recuar (duty to retreat), antes de usar "força fatal" — e só usá-la como último recurso. A "Castle Doctrine" estabeleceu que o cidadão, quando é ameaçado dentro de sua casa (por invasão domiciliar, por exemplo), não tem de recuar coisa alguma. Pode matar, com garantia da imunidade prevista no princípio da legítima defesa. A doutrina, com raízes na Common Law, prescreve que a casa é "o castelo do cidadão". A lei Stand Your Ground Law absorveu esse conceito e o estendeu para virtualmente qualquer lugar no estado — a rua, a quadra de basquete, o bar, o restaurante, a calçada, qualquer lugar em que a pessoa se sinta ameaçada. 

Depois de aprovada, a lei ganhou rapidamente um apelido: Make my Day Law (em tradução livre, "lei me ajude a ganhar meu dia"). O apelido foi emprestado do roteiro do filme Sudden Impact, em que o violento investigador policial Harry Callahan, representado pelo ator Clint Eastwood, diz a um suspeito que o ameaça em uma lanchonete: "Go ahead, make my day" (vá em frente, me ajude a ganhar meu dia). Ele sabia que se o suspeito tentasse agredi-lo, ele podia atirar nele e matá-lo (o que aconteceu), sem ter de se defender mais tarde. Bastava alegar legítima defesa. Pela lei da Flórida, basta que o autor do crime forneça à Polícia uma argumentação plausível para sustentar a legítima defesa. A acusação não pode, obviamente, contestar com a versão da vítima. 

Muitas manifestações populares e políticas ocorreram nas ruas, nas igrejas e em parlamentos de todo o país, exigindo a prisão de Zimmerman. O presidente Obama declarou que, se tivesse um filho, ele se pareceria com Trayvon. O FBI tentou entrar na história, esperando provar que o vigilante cometera um crime de ódio racial, mas desistiu. Mas a lei, que se espalhou pelo país graças ao forte lobby da National Rifle Association (NFA), a associação americana que reúne os fabricantes de armas dos EUA e entusiastas de todos os calibres, começou a encontrar forte oposição. Os estados de Iowa e Alaska, que estavam em vias de aprovar uma lei semelhante, congelaram seus projetos. Parlamentares dos estados de Wisconsin, Louisiana e Georgia tentam derrubar leis semelhantes já em vigor, embora com pouco sucesso até agora, porque muitos parlamentares, especialmente os republicanos, estão comprometidos com a National Rifle Association

Na Flórida, o governador Rick Scott criou uma força tarefa para examinar a Stand Your Ground Law e outras leis que permitem o uso de armas no estado. A força tarefa será presidida pela vice-governadora, Jennifer Carroll, e tende a recomendar a eliminação ou pelo menos a alteração da lei. Mas a National Rifle Association já anunciou que vai lutar contra qualquer mudança nas leis já aprovadas no país e vai continuar fazendo lobby para aprovar leis semelhantes em outros estados.

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