Cezar Peluso, o juiz

Peluso tem raciocínio marcadamente preciso e lógico

Autor

  • Heloisa Estellita

    é professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Direito Penal Econômico e da Empresa na mesma instituição.

19 de abril de 2012, 7h00

Spacca
Recebi o lisonjeiro convite para escrever um texto sobre o ministro Cezar Peluso. Senti a responsabilidade e o peso da tarefa, mas, mais que isso, senti uma alegria e até mesmo um certo conforto, porque, se grande é a responsabilidade, é igualmente natural, para mim, falar sobre ele. E isso decorre de um dos seus traços de personalidade que eu tive o privilégio de conhecer: a informalidade. Quem olha de fora pode pensar que digo uma tremenda bobagem, mas nos mais de dois anos que tive o prazer de trabalhar para ele, a informalidade sempre foi um conforto descontraído, risonho e bem-humorado. Por isso, este pequeno artigo é assim: descontraído e bem-humorado.

Antes de falar de seu marcante trabalho no Supremo Tribunal Federal, cumpre relatar sua coragem, que testemunhei diversas vezes, com deslumbre e encantamento. Seleciono dois episódios para não ser cansativa.

Um deles diz respeito a um Habeas Corpus que lhe foi distribuído dois ou três dias depois da aprovação da Súmula 691. Tratava-se de um paciente preso em processo de Juizado Especial Criminal por crime de ameaça que se insurgia contra a liminar indeferida no Superior Tribunal de Justiça. O ministro, sem nenhum temor com relação à súmula recém-aprovada no Pleno da Corte, não hesitou em conceder liminar determinando a soltura do paciente, com toda a responsabilidade perante seus pares, com a qual teria de arcar em momento futuro.

Em outro episódio, um cidadão estava para ser ouvido em CPI extremamente mediática e pleiteava o direito de só ser filmado com seu consentimento. Houve muita pressão, mas o ministro não se deixou impressionar e proferiu a primeira decisão (que eu saiba) da corte afirmando o direito do cidadão, ainda que suspeito, preso ou condenado, à sua própria imagem. Pode parecer bobagem, mas até hoje vejo réus e presos serem filmados sem nenhum pudor e ou consentimento.

A dedicação à toga é visível. Igualmente visível sua empolgação na colocação de seus argumentos. Quem acompanha a TV Justiça sabe do que estou falando. Dono de um raciocínio marcadamente preciso, lógico e agudo, o estofo dos anos de estudo e judicatura lhe dão um poder de argumentação que poucas vezes tive o prazer de ver e também de ser “vítima”, quando alguma vez discordei em alguma discussão. Como bom juiz, não se nega a acatar novos argumentos, desde que convencido, e, se convencido, não tem medo de sustentá-los perante seus pares. Sua história no STF está repleta de exemplos, dos quais selecionei alguns, que, para mim, marcaram o Direito brasileiro com uma característica que define sua pessoa: energia.

Quando sua entrada no STF, majoritário era o entendimento da Corte no sentido da admissão da denúncia genérica em crimes “societários”. O seu voto no HC 83.301 perscrutou todos os vícios que uma denúncia de tal natureza pode causar ao devido processo legal. Há um detalhamento na análise desses impactos que é singular.

No paradigmático HC 82.959 , da progressão em hediondos, o seu voto-vista é de uma profundidade incrível, valendo destacar um componente pouco notado e verdadeiramente revolucionário que foi a análise da agravante por “ser o agente casado”: o ministro abordou a separação entre Direito e moral para afastar a legitimidade da agravante, a qual, tempos depois, acabou sendo revogada. Ainda em tema de hediondos, é belíssimo seu voto no HC 84.928 permitindo, com ineditismo, a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos em crime de tráfico.

O voto no RE 351.487 sobre genocídio é outro clássico. A análise do caso a partir do bem jurídico é de uma precisão ímpar. Tão bom o voto que recebeu a adjetivação de “antológico” pelo ministro Sepúlveda Pertence na sessão de julgamento. Para quem não sabe, receber um elogio deste, especialmente em matéria penal, equivale ao “Prêmio Nobel do STF": a nota máxima que um voto pode receber.

No segundo julgamento do HC 84.223, o ministro já antecipava, e em muito, o que, anos depois, a corte começaria e ver com clareza: nem sempre a criminalidade de empresa se confunde com a quadrilha ou bando. O ministro também levou a relatoria do HC 81.929, ao aplicar pela primeira vez a todos os crimes tributários a disciplina da Lei 10.684/03 acerca dos efeitos penais do pagamento e do parcelamento do débito tributário. Na mesma matéria, e como consequência já de seu entendimento sobre os efeitos da instância administrativa nos crimes tributários, tratou com seu costumeiro rigor técnico os efeitos da decadência tributária na matéria penal (HC 84.555).

Outro pioneirismo se verifica no voto no HC 87.041 sobre porte de arma desmuniciada, onde o ministro demonstra os limites da tutela penal em um Estado Democrático de Direito. E, nessa matéria, ainda aguardamos a publicação de seu voto-vista no HC 90.075.

Em matéria processual penal, e já encerrando dados os limites deste artigo, destaco o voto-vista no HC 84.078 , na grande virada da corte contra a execução provisória da pena, o HC 87.041, reconduzindo a prisão preventiva a seus devidos limites, e especialmente o RE 466.343, submetendo finalmente a prisão civil à Convenção de Direitos Humanos.

Creio que estes poucos exemplos são capazes de demonstrar que grande jurista e humanista é o ministro Cezar Peluso.

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