População negligenciada

STF deve ajudar a consolidar direitos dos quilombolas

Autor

  • César Augusto Baldi

    é mestre em Direito pela ULBRA-RS doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha) e servidor do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Porto Alegre) desde 1989.

17 de abril de 2012, 14h29

Na próxima quarta-feira (18/4), véspera do “Dia do Índio”, o ministro Cezar Peluso levará a julgamento no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.239, que questiona o Decreto 4.887/2003, que regulamenta o processo de regularização, demarcação e titulação das terras quilombolas.

Diversas questões estão envolvidas neste julgamento. [1] Listo algumas:

Primeiro: a efetividade de um dispositivo, que, ainda que esteja topograficamente nas “disposições transitórias”, trata de direito fundamental de comunidades que esperaram mais de 15 anos por um decreto regulamentar de um dispositivo visivelmente autoaplicável para que, somente então, órgãos governamentais começassem a tratar da regularização das terras por ela habitadas.

Segundo: o reconhecimento de direitos sociais e coletivos de comunidades negras, não somente pelo tanto de contribuição ao patrimônio histórico e social, mas também pela dificuldade que os juristas têm de tratar dos mal denominados “direitos de segunda dimensão” (ou geração).

Terceiro: a proteção de uma dimensão cultural de territorialidade como espaço de reprodução social e simbólica, dando máxima eficácia ao conceito de cultura da Constituição Federal, que inclui, para além de documentos e criações científicas, “formas de expressão, modos de criar, fazer e viver” dos “diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Não somente datas comemorativas. Trata-se de “justiça cognitiva”, no sentido de que tais comunidades são portadoras de saberes e memória social, tal como consta na Convenção da Diversidade Biológica e, portanto, ampliando a noção de diversidade e pluralismo culturais brasileiros.

Quarto: a reavaliação do processo de racialização, de combate ao racismo e de resistência histórica das comunidades negras, que foi, durante muito tempo, pouco estudado e, muitas vezes, invisibilizado. A noção de “quilombo”, hoje fonte de reconhecimento de direitos, foi criada, originalmente, para fins de criminalização e estigmatização.

Quinto: a constatação de processos legais de discriminação direta e indireta, ou seja, de disposições que, aparentemente neutras, tais como a Lei de Terras de 1850, a pretexto de regularem situações jurídicas, eram fonte de negação de direitos de indígenas e negros. E, pois, a imensa concentração de terras, um processo em que expropriação, racismo e colonialismo andaram juntos.

Sexto: a consolidação de processos de monitoramento e de defesa de direitos humanos no sistema internacional e regional de proteção, pela consideração dos aportes que a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), os pactos (direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais) posteriores à Declaração Universal de Direitos Humanos, a Convenção Interamericana e a Corte Interamericana têm providenciado em relação ao reconhecimento do direito de propriedade de comunidades negras em todo o continente americano. Recentemente, a OIT salientou a necessidade de consulta prévia, livre e informadas para as obras de Belo Monte, da mesma forma que o CERD (Committee on the Elimination of Racial Discrimination, ou Comitê de Eliminação da Discriminação racial) já salientou, há alguns anos, a necessidade de enfrentamento do racismo a que estavam sujeitas tais populações.

Sétimo: a sinalização, às vésperas da Rio+20, de que a preservação de tais comunidades tem garantido também a manutenção da diversidade ecológica do país e, pois, visões alternativas de sustentabilidade e de formas de vida, de um pluralismo de visões de mundo. Biodiversidade e sociodiversidade, neste caso, são duas faces do mesmo processo.

Por fim, a necessidade de definição, por parte do STF, de critérios mais objetivos para a realização de audiências públicas e para inclusão em pauta (ou mesmo de ordem de preferência) para julgamento de processos. Recentemente, o ministro Marco Aurélio salientou a demora para a apreciação de questões envolvendo o aborto de anencéfalos (as audiências públicas ocorreram em 2008) e os procedimentos administrativos relativos a magistrados (constantes da Resolução 135 do CNJ). A ADI 3.239, ora pautada, teve seu relatório disponibilizado em 23 de abril de 2010, ou seja, há quase dois anos.

Em mais um julgamento histórico, o STF pode ajudar — ou não — a se avançar na consolidação dos direitos fundamentais de uma parcela da população que tem sido negligenciada, invisibilizada, discriminada e afastada do exercício de seus direitos. A prevalência dos direitos humanos e o repúdio ao racismo são princípios que regem o Brasil nas relações internacionais; a dignidade da pessoa humana, o pluralismo e a cidadania são fundamentos do Estado Democrático de Direito. Da mais alta Corte do país espera-se que tais compromissos sejam endossados e reforçados, em mais um passo para a efetivação de nossa Constituição.


[1] Em outras ocasiões, já houve detalhamento de várias questões constitucionais atinentes: http://www.conjur.com.br/2010-mai-21/invalidar-decreto-quilombos-implica-retrocesso-constitucional; http://www.conjur.com.br/2008-jul-30/reconhecimento_juridico_comunidades_quilombolas.

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    é mestre em Direito pela ULBRA-RS, doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha) e servidor do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Porto Alegre) desde 1989.

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