Embargos Culturais

Posner e a interpretação do Direito

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

15 de abril de 2012, 8h00

Todos os campos do Direito podem ser avaliados pela economia, e por seus cânones de valor, utilidade e eficiência. O utilitarismo anglo-saxão e o movimento Direito e Economia, especialmente em Richard Posner, juiz norte-americano, podem comprovar a assertiva aqui proposta.

É com fundamento nessa interessante linhagem de pensamento — o utilitarismo jurídico — que defendo que a tão propalada crise do Direito possa ser enfrentada com um maior número de soluções que se concebe. Falta-nos imaginação institucional e ousadia. Sobra-nos o culto à metafísica, ao mundo dos conceitos e ideias, a fabulização da vida real.

Richard Posner preocupa-se com a autonomia da argumentação jurídica. Trata-se de premissa metodológica para a fundamentação das decisões judiciais. Nesse sentido, suposta distância para aspectos mais realistas poderia nos levar a conceber aparente convergência conceitual para com o positivismo. Os conceitualistas, no entanto, fulminaram o positivismo, culpando-o por todas as nossas mazelas. A crítica ao positivismo é um mantra, que poucos se recusam a repetir.

Para o trono da decantada neutralidade axiológica elegeu-se novo ícone, cujo nome é mero apêndice ao totem deposto: o neopositivismo. Fala-se de princípios e regras, como a geração anterior tratava de subsunções, antinomias e lacunas. Triunfa hoje uma filosofia jurídica de aspartame: açucarada e artificial.

É nesse sentido que se deve reconhecer a legitimidade política que também caracteriza o Judiciário. Um Judiciário independente, para Posner, exige que se substitua o profissionalismo do magistrado por legitimidade política, sem que isso constitua ativismo judiciário, percepção plasmada por aparente impossibilidade de enfrentamento de problemas da vida real.

O Direito decorreria de práticas sociais e não de ideias, e, nesse sentido, faz-se oposição aos formalistas, crentes no direito natural e na sua realização completa nos cânones da legislação vigente, ainda que sob outras roupagens, todas marcadas por substantivos alemães intermináveis e impronunciáveis. Os formalistas que recitavam as soluções do código de Napoleão foram substituídos pelos formalistas que propõem fórmulas exatas de juízos de ponderação, com direito a notações matemáticas e critérios de correção de erros.

Se, por um lado, haveria estruturação lógica nas regras de Direito, por outro, as normas são efetivamente muito vagas, carregam amplo espaço de reserva de sentido, são altamente contestáveis, bem como voláteis, porque constantemente alteradas. Esse espaço de indeterminação pode ser preenchido por decisionismo que permita opções judiciais tendentes a maximizar a ordem econômica. O Direito perseguiria muito mais uma lógica de justificação do que uma lógica da descoberta, segundo Richard Posner.

Para Posner, que é juiz, os magistrados seguem precedentes, mas o fazem mais pela certeza e pela previsibilidade do Direito do que para atingirem um Direito justo e correto. Os juízes fazem o Direito. Os juízes não descobrem o Direito. A premissa, proclamada por Posner, identifica-se no ancestral do movimento, que radica no realismo jurídico norte-americano do primeiro pós-guerra. Jerome Frank é o campeão da causa.

Nessa linha de raciocínio, juízes poderiam se valer de preferências pessoais para decidirem as causas que lhes são dirigidas. Tais preferências refletiriam resíduos atávicos do Direito natural. Além do que, e por outro lado, para Posner, o Direito natural é carente de significação discursiva quando cogitado em uma sociedade moralmente heterogênea, como a contemporânea. O mundo é pluralista.

Qualquer esforço para a consecução da autonomia e da objetividade do Direito seria vão, segundo Posner, que também critica todas as demais formas de ceticismo radical, que o movimento Direito e Economia paradoxalmente também abraça. Para Posner só há um modelo de argumentação jurídica (legal reasoning), e cada juiz o implementa, porém da forma como pode, e como quer. E antigamente, em relação a alguns, quando queriam.

A justificação de uma decisão, no sentido de que ela seria objetivamente correta, seria geralmente impossível. Os casos mais difíceis (hard cases) não podem ser objetivamente decididos. Processos mentais não racionais podem influenciar as decisões jurídicas, fixando um Direito que se mostra menos conjunto conceitual e mais atividade pragmática.

Não existiria um sentido comum de interpretação do Direito; o processo de interpretação não é um procedimento lógico. Não haveria, para Posner, conceito final de Justiça. A justiça corretiva plasma a vingança. A decisão judicial deveria perseguir a maximização da riqueza, expressando utilitarismo muito afeito ao espírito pragmático norte-americano.

Para Posner a lei é funcional. A lei não é simbólica. Tem uma finalidade. Não representa um ideal fundacionalista e metafísico. Posner pode ser associado ao pós-modernismo antifundacionalista de Foucault, de Derrida, de Rorty, na medida em que denuncia a morte do direito, como Fukuyama denunciou o fim da história e do último homem, na trilha de Hegel e de Nietzsche.

O ataque institucional do antifundacionalismo deve muito à tradição pragmática. O pensamento de Posner assemelha-se ao pragmatismo e ao antifundacionalismo pós-moderno ao rejeitar os dualismos propostos pelo iluminismo, a exemplo das antinomias entre forma e substância, espírito e matéria, percepção e realidade, mente e corpo. É a partir de Posner que se confirma que o pragmatismo busca a verdade como uma crença justificada pela necessidade social.

Posner é um autor provocante. Escreve o que muitos pensam. Defende o que poucos acreditam. Foge do óbvio. É vítima da fúria daqueles que confundem Direito com teologia, regulação social com feitiçaria, astronomia com astrologia, medicina com curandeirismo, realidade com hipnose.

Já alertava um ousado pensador alemão, cujas ideias alguns quiseram sepultar com as pedras caídas do muro de Berlim, que o mundo exige menos de nossa interpretação e muito mais de nossa capacidade de transformação. Paremos de explicá-lo e de interpretá-lo. É chegada a hora de transformá-lo.

Posner sugere que a interpretação jurídica se livre do marasmo da conceituação e que se transforme na virtude e na competência da decisão realmente útil e eficiente.

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