"A política é o exercício da capacidade de julgamento"
6 de abril de 2012, 8h51
Entrevista concedida pelo filósofo Michael Sandel ao jornalista Jorge Pontual, do programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30.
Há trinta anos no curso Justiça, na Universidade de Harvard, o filósofo Michael Sandel usa questões do dia-a-dia, para discutir com os alunos os valores éticos. O curso virou livro e uma série de vídeos, que se tornou um dos maiores sucessos na internet, vista por milhões de pessoas em todo o mundo. O curso é pioneiro no projeto visionário de Sandel, a globalização da educação. Ele vem ao Brasil em agosto, e recebeu o Milênio em Harvard para discutir política, corrupção, desigualdade social, democracia e justiça.
Leia a entrevista:
Jorge Pontual — A principal coisa que está acontecendo no Brasil é uma classe média emergente. Dezenas de milhões de pessoas que eram pobres hoje são da classe média. Nós temos muito orgulho disso. Mas, ao mesmo tempo, a profunda desigualdade que existia no Brasil ainda existe. Nós temos um número muito pequeno de pessoas muito ricas, que é como se morassem em um país diferente. Podemos dizer que não há noção de comunidade. O que pensa disso?
Michael Sandel — Certo. A desiguldade entre ricos e pobres é uma das questões centrais da justiça. E temos visto, em vários países, inclusive nos Estados Unidos, uma desigualdade crescente entre ricos e pobres. Uma das maneiras de lidar com isso, uma das correntes, é a posição individualista simples do laissez faire, do livre mercado, que diz: “Se você compra e vende suas capacidades e seus bens no livre mercado, você tem o direito de ficar com tudo o que ganhar, e é errado o governo taxar seu tão suado dinheiro”. Essa é uma visão. Mas há outra corrente que diz que não, que isso não é verdade, que as desigualdades muitas vezes refletem que a injustiça se estabelece desde o início de nossa vida em sociedade. Algumas pessoas nascem em famílias afluentes, outras nascem em famílias pobres. Algumas têm ótimas oportunidades de ensino, outras têm pouca ou nenhuma chance de ter um bom ensino. Portanto, essa segunda corrente diz que, ao pensar em justiça e desigualdade, devemos perguntar: “Supondo que não saibamos como será seu futuro na sociedade… Você não sabe se será rico ou pobre, forte ou fraco, saudável ou doente. Então, com que princípios de justiça você concordaria se não soubesse que futuro teria?” Essa é a segunda corrente, e ela leva a um sistema mais igualitário. E a terceira corrente, que eu discuto também, se preocupa com essa grande lacuna entre ricos e pobres, mas por uma razão diferente, e não só pela preocupação com a injustiça para com os de classe mais baixa, que sofrem com suas desvantagens, mas também pela preocupação com a comunidade, o que traz de volta o que você mencionou há pouco. De acordo com essa corrente, a terceira corrente, se tivermos uma lacuna grande demais entre ricos e pobres, será muito mais difícil sustentar uma noção de comunidade, a noção de que a vida social é um projeto comum que envolve uma cidadania compartilhada, na qual os cidadãos se sentem comprometidos uns com os outros porque estão comprometidos com um projeto comum. Então, há essa terceira corrente que se preocupa com a desigualdade a partir do ponto de vista da coesão social, da solidariedade e da comunidade.
Jorge Pontual — Outro grande problema do Brasil é a corrupção. No ano passado, em 2011, não sei quantos ministros, talvez seis ou sete, foram exonerados por causa de escândalos de corrupção. O governo está tentando fazer uma limpeza, mas isso está em toda a parte. Os brasileiros são céticos com relação à política. Todos pensam que todos os políticos fazem isso. E, aqui, a influência do dinheiro na política tem aumentado. A próxima eleição será a primeira depois que a Suprema Corte autorizou doações ilimitadas para as campanhas politicas por parte das empresas. O que você diz sobre isso?
Michael Sandel — Isso remete à questão do que é a politica como vocação, como chamado. Qual é o propósito da política? Muitas vezes, quando a corrupção está espalhada e o ceticismo é alto, há um sentimento generalizado de que a política se resume a interesses próprios. Por isso, podemos não gostar, mas somos capazes de entender quando agentes públicos tratam suas funções como se servissem para deixá-los ricos. Na verdade, o que isso reflete é a perda do sentimento de virtude cívica, de responsabilidade pública. E acho que um dos maiores desafios para o Brasil, para os EUA, para qualquer sociedade democrata, é cultivar e desenvolver, entre os cidadãos em geral, a noção de que a vida pública tem sua dignidade e sua importância, porque é a expressão do que é ser cidadão: ser capaz de ter um sistema de governo que pertence a todos nós, que não pode ser comprado por interesses específicos. Hoje, os EUA estão diante de uma campanha presidencial em que uma quantidade enorme de dinheiro está sendo doada aos dois lados, e grande parte desse dinheiro não tem uma finalidade específica. Nem os próprios candidatos são capazes de controlar para onde vai esse dinheiro exatamente. E isso também é um tipo de corrupção, ainda que seja legal. Nossa Suprema Corte, como você mencionou, decidiu recentemente, há cerca de dois anos, derrubar as restrições que limitavam o financiamento de campanha feito com dinheiro privado, e estamos vendo o resultado disso. E esse resultado é que essas campanhas políticas estão inundadas de dinheiro, um dinheiro que não precisa ter um fim específico, e por isso só já é um tipo de corrupção, embora seja algo legal. Isso corrompe o que a virtude cívica e a vida cívica deveriam ser. É uma violação dos ideais mais profundos, na minha opinião, da democracia. A ideia de toda a democracia é dar a todos os cidadãos um poder de palavra, uma opinião de como são governados. Então, eu espero que, no caso do nosso sistema, nós consigamos encontrar uma maneira de limitar o papel do dinheiro nas campanhas eleitorais. Quanto à questão mais ampla do ceticismo, nós precisamos criar um sentimento de que o governo democrático pertence a todos e de que há uma responsabilidade cívica compartilhada para tanto. Mas está se tornando cada vez mais difícil desenvolver e promover isso em nossa sociedade atual. Acho que é por isso que as pessoas estão tão frustradas com a política.
Jorge Pontual — Uma coisa horrível que acontece aqui — e o Brasil, até agora, está livre disso — é o nível do discurso político. As acusações, a polarização ideológica. É como se o outro lado fosse o Mal. Eu moro nos EUA há 16 anos, e vi isso acontecer durante esse período de tempo. Quando eu me mudei para cá, não era assim. Qual é sua solução para isso?
Michael Sandel — Certo. Bem, é verdade, eu concordo com você que nossa política, nosso discurso político, consiste em grande parte, de acusações, e há pouquíssimas argumentações sérias sobre os grandes problemas. E o discurso democrático deveria tratar disso. Eu acho que nossa política se tornou muito gerencial e tecnocrática e focada demais em questões econômicas limitadas. Isso tem deixado de lado questões genuinamente politicas, inclusive questões éticas e questões espirituais que surgem no debate político e, muitas vezes, é a direita religiosa que quer levar questões ligadas aos valores, à moralidade e à religião, para a política, mas a esquerda ou os liberais dizem: “Não, isso é intolerância”. Eu acho que o discurso público democrático deveria acolher debates morais e espirituais e que os cidadãos não deveriam ser forçados a deixar para trás suas convicções morais e espirituais quando entram na arena pública. Não estou dizendo que todos irão concordar se houver um debate mais robusto, do ponto de vista moral, porque as pessoas discordam quanto a grandes questões éticas, a questões morais e espirituais. Mas eu acho que é um erro fingir que a política possa ser neutra em relação a essas importantes questões.
Jorge Pontual — Dê um exemplo de uma questão que interesse a todos.
Michael Sandel — Bem, a área que eu gostaria de começar seria uma questão que discutimos antes: o que fazer com relação ao aumento da desigualdade? Você sabe qual é o percentual da riqueza, nos EUA, que está nas mãos do 1% mais rico? Qual seria seu chute?
Jorge Pontual — 40%?
Michael Sandel — Exato! Você está muito bem informado.
Jorge Pontual — Eu li seu livro.
Michael Sandel — E Warren Buffett recentemente disse que paga proporcionalmente menos impostos que sua secretária. Essa é uma questão econômica: “Qual deveria ser a alíquota dos impostos?” “O que deveríamos fazer sobre a distribuição de renda?” Mas não é apenas uma questão econômica. É uma questão de justiça e, para debatê-la como uma questão de justiça, apropriadamente, devemos ouvir pessoas com diferente visões éticas, diferentes morais e tradições religiosas, para tentar falar sobre como é uma sociedade justa. O que temos muito nos EUA é a tendência a pensar que discutir moralidade e valores na política resume-se a falar de aborto e casamento homoafetivo. Esses são dois temas que surgem quando pensamos em trazer moralidade para o debate político.
Jorge Pontual — E aí não há interesse comum.
Michael Sandel — Exato.
Jorge Pontual — Há uma polarização.
Michael Sandel — A tendência é essa. Mas acho que deveríamos nos dar conta de que os grandes problemas econômicos que enfrentamos estão relacionados à justiça, a uma boa sociedade, e não podemos responder a essas questões sem falar de tradições morais, éticas e espirituais. As pessoas irão discordar, mas pelo menos aprenderemos a ter o hábito de debater juntos, em público de ouvir um ao outro, de tratar até mesmo tradições com as quais podemos discordar de uma maneira respeitosa. Do contrário, não creio que trataremos a questão da desigualdade. A menos que façamos dela uma questão moral, que percebamos que é uma questão de justiça, e que todos sejam livres para trazer suas convicções morais e espirituais sobre essas questões fundamentais.
Jorge Pontual — Isso foi o que o presidente Obama fez durante a sua campanha: ele introduziu essa discussão acerca da moralidade no discurso político, não foi?
Michael Sandel — É interessante. Ele fez isso durante a campanha e isso foi um rompimento com o que muito liberais e democratas anteriores haviam feito. Eles tendiam a ser mais tecnocráticos e a se sentir desconfortáveis com questões morais e espirituais.
Jorge Pontual — Tradicionalmente, eles não falam de religião e moral.
Michael Sandel — E a força de Obama, que veio da tradição liberal e progressista, foi dizer: “não podemos ignorar as questões morais e espirituais”. Fazer isso é um engano, pois assim deixamos os recursos morais mais ricos e poderosos nas mãos dos conservadores religiosos apenas. Ele estava certo sobre isso, e não só sobre isso. Acho que foi isso que o tornou atraente. As pessoas querem que a vida pública trate de questões importantes e, às vezes, de grandes questões morais. Ele fez isso com grande sucesso durante a campanha, mas não foi tão bem-sucedido na hora de transferir esse idealismo moral e cívico para o governo, para a presidência. E o grande desafio dele agora é se reconectar com esse grande vocabulário moral, pois é isso que move, impressiona e inspira as pessoas.
Jorge Pontual — Talvez seja porque o poder sempre requer um meio-termo, e você acaba abrindo mão dos seus valores morais também. Que outro presidente americano foi um grande líder moral? Lincoln?
Michael Sandel — Lincoln é um bom exemplo. Se analisar os discursos dele, seus famosos discursos, ele era muito sintonizado com as questões morais e espirituais da política. É por isso que nos lembramos dele. Então, eu acho que a verdadeira liderança política requer que os líderes políticos não só adotem a linguagem moral e espiritual na política, como também estimulem nos cidadãos a capacidade de fazer isso e, de certo modo, convidar os cidadãos a se tornar filósofos. Há uma sede disso. Porque, com frequência, os políticos não nos permitem fazer isso.
Jorge Pontual — É muito emocionante assistir às suas palestras e ver aqueles jovens se levantando e falando de coisas das quais as pessoas normalmente não falam. O que é um bem maior? O que é a liberdade? E o fato de você levar até eles Aristóteles, essa ideia do propósito maior. Há uma palavra…
Michael Sandel — Sim, telos.
Jorge Pontual — Fale sobre isso. Como os jovens se relacionam com isso?
Michael Sandel — Antes de mais nada, eu quero apresentar aos estudantes e aos leitores do livro as principais ideias filosóficas que informam os políticos contemporâneos. Na maior parte das vezes, há um choque entre os que acreditam em livre mercado, direitos de propriedade, ideias libertárias e ideias utilitárias — como aumentar o PIB — e aqueles que dizem que precisamos ter um estado de bem estar social decente, que respeite os direitos dos pobres e garanta que eles tenham uma rede de proteção. São debates que todos já conhecem: mais impostos, menos impostos, mais regulação pelo governo, menos regulação pelo governo. Esses debates todos conhecem. Mas eu quero ir além desses debates para lembrar aos estudantes de que há uma outra maneira de enxergar a vida pública. Aristóteles, com sua ideia do telos, ou “propósito”, dizia que os telos da comunidade política não é primordialmente econômico, não é apenas outra maneira de conseguirmos o que queremos, enquanto consumidores individuais. Isso é um mercado. Pode ser um mercado grande, pode ser um mercado global, mas não é uma comunidade política. E a razão de não ser, nas palavras dele, é porque a comunidade politica deve servir a algo maior, deve servir a uma vida boa. A razão pela qual nos reunimos em comunidades políticas é para nos melhorar, para elevar nosso caráter, para aprender a debater uns com os outros, para exercitar nossa capacidade de julgamento. Esse é o telos para Aristóteles, o telos de uma comunidade política, e está ligado à nossa natureza humana, ao que é ser um ser humano. Essa ideia é verdade. Não poderíamos nos realizar completamente como seres humanos vivendo uma vida puramente privada, como consumidores, pois a vida é muito maior do que isso. Os seres humanos se moldam ao se comprometerem uns com os outros, em uma vida em comum, deliberando, compartilhando regras. Isso afeta nosso caráter, nossa capacidade de desenvolver um juízo de valor, preocupações e um sentimento de responsabilidade mútua para com os outros. Com isso, voltamos ao que eu sugeria antes. Eu não acho que podemos ou devemos separar questões relativas à vida com conforto de questões políticas e de como devemos governar a sociedade.
Jorge Pontual — Isso me lembra da ideia do conceito narrativo do ser, de que somos parte de uma narrativa maior. Minha narrativa pessoal é parte de uma narrativa maior. Explique isso.
Michael Sandel — Certo. Isso é abordado ao fim do livro, ao fim das palestras. Há uma tendência a achar que a liberdade maior, ser um ser humano livre, é ser capaz de me definir sozinho, sem referência ao meu passado, às minhas tradições, à minha criação, à minha cultura.
Jorge Pontual — Um ser abstrato.
Michael Sandel — Um ser abstrato, um “eu” abstrato. O indivíduo puramente autocriado. Essa ideia tem um lado que nos confere muito poder, mas acho que é equivocada. Eu acho que é uma ilusão. O que ela não tem, como você disse, é o aspecto narrativo da identidade. Quem eu sou é algo inseparável da minha história, da narrativa da minha vida, que me posiciona no mundo. Relativamente a um passado, a uma tradição, a uma família, um bairro, uma comunidade, um país, em suma, a uma sociedade global. Mas as narrativas, as histórias dessas características, dessas identidades, são parte do que me torna quem eu sou. Esse é o conceito narrativo do ser, que eu privilegiei como uma espécie de contrapeso ao individualismo radical para o qual estamos caminhando nesta sociedade voltada para o consumo e o mercado.
Jorge Pontual — Você alerta seus estudantes de que a filosofia moral, toda essa discussão, é perigosa, pois após questionar o que é familiar, você nunca mais será o mesmo.
Michael Sandel — Exato.
Jorge Pontual — Depois você começa a se perguntar o que o motiva.
Michael Sandel — Certo. É verdade. E os alunos me procuram após a aula ou até anos depois e dizem: “isso foi exatamente o que aconteceu comigo”. Quando você começa a questionar as certezas estabelecidas e convenções, a vida nunca mais será a mesma. Esse é o perigo de se estudar filosofia política assim, mas também é a beleza e a felicidade disso. Por que o que significa, no final das contas, a meu ver, ser um ser humano, é questionar, é não se acomodar com relação às nossas certezas. Filosofia é isso. Então, esse desassossego, esse desconforto, são o primeiro passo da educação, são o primeiro passo a ser dado na educação cívica e, nesse sentido, o primeiro passo para quem aspira a uma vida boa.
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