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Lei do sistema de saúde dos EUA desafia a doutrina

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4 de abril de 2012, 18h38

Além da produção própria da redação — o leitor já sabe — este site reverencia textos importantes sobre Direito e Justiça publicados em outros veículos. São úteis para todos. A reportagem que se segue, produzida pelo correspondente da revista Veja em Nova York, André Petry é um bom exemplo disso. Com um texto enxuto e direto, o jornalista dá um retrato nítido do momento jurídico americano, dá o contexto e o pano de fundo da disputa judicial e uma descrição preciosa da Suprema Corte e seus ministros.

Leia a reportagem:

Em cartaz, o show da lei

Ao analisar se a reforma do sistema de saúde de Obama é constitucional ou não, a Suprema Corte americana protagoniza um espetáculo que encanta o mundo: como funciona a supremacia da lei

André Petry, de Nova York

A fila começou a se formar três dias antes. Houve briga por um dos lugares, apesar do policiamento. Contratar alguém para garantir um lugar custava até 50 dólares por hora. A imprensa cobriu todos os detalhes, dentro e fora da Suprema Corte. Na internet foram feitas atualizações a cada minuto. Os advogados, contratados para redigir pareceres contra e a favor, cobraram de 25 mil a 100 mil dólares. Cerca de 140 entidades se apresentaram como amicus curiae (amigos da corte, em latim), um instituto de longa tradição no direito americano que permite a terceiros participar de uma ação dando subsídios ao tribunal. Na segunda-feira, no início de três dias de audiência pública, uma pesquisa com 66 advogados que já atuaram em casos na Suprema Corte ou trabalharam com os atuais magistrados informava que as chances de a lei ser derrubada eram de 35%.

A lei em questão é a reforma do sistema de saúde do presidente Barack Obama, aprovada pelo Congresso em 2010. Ela obriga os americanos a comprar um seguro-saúde ou, então, pagar uma multa. Obriga também os estados a dar cobertura de saúde a pobres e deficientes, sob pena de serem desqualificados do Medicaid, o programa de saúde bancado pelo governo federal. Mas as perguntas essenciais para a Suprema Corte, como em todos os seus julgamentos, são, primeiro, se os direitos fundamentais do indivíduo foram violados pela lei da saúde e, segundo, se a União pode intervir daquela maneira no funcionamento dos estados. Os nove juízes da Suprema Corte vão responder se o governo pode mesmo forçar o cidadão a comprar determinada coisa — no caso, um seguro-saúde — ou puni-lo por não fazê-lo. Os debates dessa envergadura na Suprema Corte acabam sendo, ao fim e ao cabo, uma avaliação dos poderes do Congresso, da autonomia dos estados e da liberdade de cada indivíduo. Enfim, uma revisão geral do funcionamento da nação americana.

Como a Suprema Corte não trabalha no vácuo, o julgamento é também um espetáculo da política. A reforma da saúde opõe duas visões clássicas. Os democratas de Obama defendem uma ruptura com o passado ao reconhecer que o estado cumpre seu dever ao viabilizar a cobertura de saúde para os 40 milhões de americanos que não a têm, atendendo assim a um direito fundamental de todos os cidadãos. A oposição republicana considera que obrigar o cidadão a ter cobertura de saúde é uma violência contra a liberdade individual, pois cada um deve ser livre para escolher se quer ou não um seguro-saúde — e arcar com as consequências de sua decisão. A Suprema Corte é o palco privilegiado para esse tipo de debate, que encanta e influencia tribunais do mundo inteiro. A história da corte é, em si mesma, a história dessa tensão entre o indivíduo e a comunidade, os direitos individuais e a responsabilidade social. William Rehnquist, que presidiu a corte de 1986 a 2005, dizia que, por mais que os governos tentem, “a maioria sempre vai determinar quais são os direitos constitucionais da minoria”. Rehnquist ressaltava que não se referia à maioria dos juízes da corte, mas à maioria da população. Antes dele, Robert Jackson, juiz de 1941 a 1954, escreveu que a Constituição americana foi concebida para pôr os direitos fundamentais “fora do alcance das maiorias”. Em um estupendo livro sobre a história da corte, Peter Irons escreveu: “O conflito recorrente entre esses dois princípios agita a política americana desde que a Constituição nasceu”.

Agitou, de novo, na semana passada. Na terça-feira, quando se debateu a obrigação de ter seguro-saúde, o advogado-geral do governo, Donald Verrilli, falando em defesa da lei, começou mal. Repetiu-se, gaguejou, pediu desculpas. Antes que concluísse o primeiro parágrafo, já estava sob bombardeio de perguntas cortantes feitas pelos magistrados. Surpreendido pela artilharia verbal, Verrilli passou seus sessenta minutos diante da corte em estado pré-nocaute. Numa característica fascinante do tribunal, os magistrados — de hoje e de ontem, de esquerda e de direita — costumam questionar os advogados com extrema acurácia. Vão à essência das coisas, recorrem a paralelos com a vida real e debulham a complexidade das questões em pauta em recursos até visuais, produzindo uma simplicidade em que até o mais leigo dos cidadãos entende o que está acontecendo (veja trechos ao fim deste texto). O tom hostil de alguns juízes abalou as certezas iniciais de que as chances de que a lei seja derrubada eram de apenas 35%. A ala conservadora da corte, formada por Clarence Thomas, Antonin Scalia, Samuel Alito e John Roberts, tende a votar contra a lei. A liberal é integrada por Stephen Breyer e três mulheres: Ruth Ginsburg, Sonia Sotomayor e Elena Kagan. Eles tendem a apoiar a lei. O juiz Anthony Kennedy é o fiel da balança.

O poder do tribunal de derrubar leis do Congresso é um legado americano. Nos anos 1780, quando a Constituição foi promulgada, os juízes estaduais começaram, com cuidado e timidez, a impor restrições ao que as assembleias legislativas aprovavam. O caso emblemático aconteceu na ação Marbury versus Madison, em 1803. William Marbury, nomeado juiz de paz, pediu à Suprema Corte que ordenasse ao secretário de Estado, James Madison, a efetivação de sua nomeação, já que o Congresso aprovara lei ampliando os poderes da corte para tal. John Marshall, chefe da corte, surpreendeu todo mundo ao decidir que não podia dar ordens a Madison. Arguto, entendeu que, se o Congresso podia ampliar os poderes da corte, também poderia restringi-los. E derrubou a lei. Era o triunfo da revisão judicial, a doutrina que dá aos tribunais o poder de cancelar leis inconstitucionais do Parlamento. No Brasil, a doutrina chegou com a criação do Supremo Tribunal Federal, em 1890. No decreto, Campos Salles escreveu que o STF não seria “instrumento cego ou mero intérprete” dos atos do Congresso, mas também teria o “direito de exame”.

A revisão judicial popularizou-se depois da II Guerra, quando as ideias constitucionais dos EUA se tornaram mais influentes. Hoje, mais de 100 países incorporam a revisão judicial nas suas Constituições. O Brasil o faz desde a primeira Constituição republicana, de 1891, mas deu enorme amplitude ao controle de constitucionalidade na atual Carta, de 1988. Em poucos países, talvez em nenhum outro, o direito de contestar a legalidade de uma lei é tão democrático quanto no Brasil. A soberania da lei sobre a tirania de executivos fortes é uma conquista do século XX, mas nem sempre os tribunais tomam decisões que merecem aplausos, inclusive a Suprema Corte americana. Em 1896, no caso Plessy versus Ferguson, os juízes decidiram que o estado de Louisiana tinha o direito constitucional de determinar vagões separados para brancos e negros nos trens — desde que os vagões fossem rigorosamente idênticos. Criou-se, assim, a doutrina “separados mas iguais”. Seis décadas depois, no caso Brown versus The Board of Education, a Suprema Corte revogou a sua própria decisão, ao proibir os estados de impor a segregação racial nas escolas. O ilustrador Norman Rockwell capturou a essência daquela decisão e do papel maior da Suprema Corte. Rockwell pintou a garotinha negra Linda Brown caminhando, indiferente às tomatadas, para a escola de brancos. Ela ia escoltada por seguranças.

Traduzindo para a vida real
Nas audiências da Suprema Corte, os juízes costumam ir à essência – muitas vezes, até visual – das questões em debate. A seguir, exemplos ocorridos na semana passada durante os questionamentos da lei da saúde.

O advogado-geral do governo, Donald Verrilli, mostrava que, se todos os americanos tivessem um seguro de saúde, os preços ficariam mais acessíveis para todos. Antonin Scalia comparou:

Se as pessoas não compram carros, o preço cai subir. Então, para evitar que o carro fique caro demais, devemos punir as pessoas que não estão comprando carros?

Verrilli dizia que o governo quer regular a participação de todas as pessoas no mercado da saúde porque, de um modo ou de outro, todas elas estão nesse mercado. Antonin Scalia, intrigado com definição tão ampla para o “mercado de saúde”, perguntou:

Todo mundo, mais cedo ou mais tarde, precisa comprar comida. Se isso for definido como ‘mercado de comida’, todos estamos nesse mercado. O governo então pode me obrigar a comprar brócolis?

Verrilli dizia que o governo queria que todos tivessem seguro-saúde porque, em algum momento da vida, virtualmente todo mundo precisa de assistência à saúde, e, nessa hora, ter cobertura fará toda a diferença. John Roberts perguntou:

Então, o governo pode exigir que eu compre um celular porque o aparelho vai ser útil na hora de uma emergência?”

Verrilli defendia a ideia de que todos precisavam ter um seguro de saúde porque todos precisarão de cuidados com a saúde em algum momento. Quem não tiver acabará jogando o custo do seu tratamento no bolso dos outros. Samuel Alito, entendendo que os contribuintes também bancam o custo de enterro de indigentes, perguntou:

“Podemos comprar um seguro-funeral. Podemos comprar um seguro-saúde. A maioria das pessoas vai precisar de assistência à saúde. Quase todos nós. Mas todo mundo será enterrado ou cremado um dia. Qual a diferença?

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