Consultor Tributário

Brasil deve obedecer regras fiscais do jogo

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4 de abril de 2012, 8h20

Caricatura Roberto Duque Estrada [Spacca]

As águas do fim de março nos levaram Chico Anysio – o homem de mil faces – e Millôr Fernandes – simples (mente) genial. Figuras humanas incrivelmente talentosas, inteligências ímpares, marcadamente presentes na formação de diversas gerações de brasileiros, que tiveram a oportunidade de, no seu dia a dia, com eles se divertirem, refletirem e aprenderem.

A vida segue – esse breve intervalo que é nossa existência – e há muito ainda o que fazer. Como bradou L. F. Veríssimo em sua coluna de O Globo no último domingo: “Chega! Chico Anysio e Millôr, um depois do outro. Ninguém está achando graça”.

É por isso que, nesse mês de abril que começa mais pobre e sem graça, vamos nos dedicar a boas notícias.

Parece estar chegando ao fim, depois de doze anos, a polêmica judicial instalada pelo Ato Declaratório (Normativo) número 1, de 5 de janeiro de 2000, lamentável manifestação de autoritarismo fiscal do Brasil.

O site do Superior Tribunal de Justiça informa que no último dia 23 de março o Tribunal “(….) começou a decidir se é possível a aplicação de convenções bilaterais para deixar de recolher na fonte o Imposto de Renda sobre valores que empresas brasileiras pagam por prestação de serviço de empresas estrangeiras que não têm estabelecimento permanente no Brasil”.

A questão é objeto do Recurso Especial 1.161.467 e tem como relator o ministro Castro Meira para quem, segundo o mesmo site, “a tese (da Fazenda Nacional) é engenhosa, mas não convence. Para o ministro, as interpretações da Fazenda Nacional levam ao absurdo de equiparar “lucro das empresas estrangeiras” (termo que consta das Convenções Brasil-Canadá e Brasil-Alemanha, aplicáveis ao caso) com “lucro real das empresas estrangeiras” – termo usado para definir o lucro líquido do exercício, já ajustado pelos cálculos permitidos na legislação tributaria. O ministro esclareceu que essa tese acolhe a bitributação internacional como regra de convenções que objetivam justamente coibi-la”.

Para a perfeita compreensão do assunto em debate no STJ é necessário um breve retrospecto, voltando ao ano de 1999, quando a polêmica começou.

Em janeiro de 1999, foi editada a Lei 9.779, cujo artigo 7º estabeleceu o seguinte: “Os rendimentos do trabalho, com ou sem vínculo empregatício, e os da prestação de serviços, pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos a residentes ou domiciliados no exterior, sujeitam-se à incidência do imposto de renda na fonte à alíquota de 25%”.

Assim, de acordo com a lei interna os rendimentos da prestação de serviços pagos a residentes no exterior sujeitam-se à tributação pelo imposto de renda na fonte de 25%. Referida disposição legal foi consolidada pelo Decreto 3.000, de 26 de março de 1999, (“RIR/99”), constando do seu artigo 685, II, “a”.

Sucede, porém, — e isso sempre fora ponto pacífico para a doutrina especializada — que nas relações com prestadores de serviços domiciliados em países que celebraram tratados contra a dupla tributação com o Brasil a incidência estabelecida pela lei interna ficaria derrogada (artigo 98 do Código Tributário Nacional).

Isto porque, em todas as convenções contra a dupla tributação que seguem o Modelo OCDE (como é o caso das celebradas pelo Brasil) os rendimentos decorrentes da prestação de serviços, por serem elementos componentes do “lucro” das empresas, só podem ser tributados pelo Estado de residência do prestador de serviços.

A única exceção à competência tributária exclusiva do Estado de residência ocorre quando os serviços são prestados através de um estabelecimento permanente (por exemplo, uma filial) situado no país de domicílio do contratante dos serviços. Nesse caso – e apenas nesse caso – em razão de uma conexão mais intensa com o país onde os serviços são prestados é que os tratados autorizam a tributação. Mas, mesmo assim, não será uma tributação analítica, por retenção na fonte sobre os rendimentos, mas sim uma tributação sintética, sobre o “lucro” do estabelecimento, já que poderão ser deduzidos todos os custos suportados pela unidade prestadora para consecução de sua atividade.

A leitura do artigo 7º, parágrafos 1 e 3 do Tratado Brasil-Equador (Decreto 95.717, de 11 de fevereiro de 1988) que tomamos como exemplo, ajuda a compreender o que se afirmou:

“1. Os lucros de uma empresa de um Estado Contratante só são tributáveis nesse Estado, a não ser que a empresa exerça sua atividade no outro Estado contratante por meio de um estabelecimento permanente aí situado. Se a empresa exercer sua atividade na forma indicada, seus lucros são tributáveis no outro Estado, mas unicamente na medida em que forem atribuíveis a esse estabelecimento permanente. (….)

3. No cálculo dos lucros de um estabelecimento permanente é permitido deduzir as despesas que tiverem sido feitas para a consecução dos objetivos do estabelecimento permanente, incluindo as despesas de direção e os encargos gerais de administração assim realizados”. (grifos nossos)

Para aqueles menos familiarizados com os tratados contra a dupla tributação é importante esclarecer certos conceitos. Há o Estado de residência (por exemplo, Brasil) e o Estado da fonte (por exemplo, Equador). Os tratados contêm normas de reconhecimento de competência tributária para referidos Estados que poderão ser exclusivas ou cumulativas.

São exemplos clássicos de competência tributária exclusiva, os lucros de empresas em geral, os lucros de empresas de transporte internacional, as remunerações públicas. São exemplos clássicos de competência tributária cumulativa, os rendimentos de aluguéis de imóveis, os dividendos e os juros.

Em caso de atribuição de competência tributária exclusiva, a eliminação da dupla tributação obtém-se, obviamente, pela concentração do poder de tributar em apenas um dos Estados em presença. Somente um dos dois países terá competência para tributar.

Nos casos de atribuição de competência tributária cumulativa, ambos os países podem tributar. O Estado da fonte pode tributar pelo imposto de renda na fonte (geralmente fixando-se alíquotas máximas), cabendo ao Estado de residência o dever de eliminar a dupla tributação mediante a aplicação de um dos métodos previstos nas convenções para o efeito.

E quais são esses métodos? Em linhas gerais são dois: (i) o método do crédito, em que o imposto retido pelo Estado da fonte é compensado contra o imposto devido no Estado de residência sobre os mesmos rendimentos; e (ii) o método da isenção, em que os rendimentos tributados pelo Estado da fonte pelo mecanismo da retenção estão isentos de uma nova tributação no Estado de residência.

Os Estados de residência apenas estão obrigados a eliminar a dupla tributação nos casos de competência cumulativa. Nos casos de competência exclusiva, não há lugar a qualquer obrigação de eliminação da dupla tributação, porque se espera que o Estado da fonte cumpra com as regras do tratado, deixando a competência tributária ser exercida em termos exclusivos pelo Estado de residência.

Feitos esses esclarecimentos conceituais, vejamos agora um exemplo do que se passaria em uma prestação de serviços de engenharia consultiva por uma empresa domiciliada no Brasil (Estado de residência) para um contratante domiciliado no Equador (Estado da fonte).

Em nosso exemplo, a empresa brasileira presta serviços de consultoria relacionados à construção de uma ponte no Equador. Os trabalhos são executados na sede da empresa no Brasil, por engenheiros seus empregados, sem haver qualquer presença física no Equador que pudesse caracterizar a existência de um estabelecimento permanente naquele país.

Como há tratado contra a dupla tributação, o contratante equatoriano, quando fizer a remessa do preço, não deverá (ainda que haja lei no Equador assim prevendo) promover qualquer retenção de imposto, eis que à hipótese aplica-se o artigo VII do Tratado Brasil-Equador que confere ao Brasil competência exclusiva para tributar os lucros da empresa residente no Brasil.

A ratio da norma é muito simples de compreender: só se poderá saber se foi obtido lucro com aquela prestação de serviços após o confronto, no país de residência do prestador (Brasil), de todas as receitas e despesas incorridas para execução daquele empreendimento.

É o que nos ensina Alberto Xavier: “As razões pelas quais o artigo 7º, no que concerne às prestações internacionais de serviços, reserva a competência tributária exclusiva ao país de domicílio do prestador, vedando a tributação na fonte pelo país em que se localiza o beneficiário, resultam de o fenômeno ter natureza substancialmente idêntica à de uma importação de bens ou mercadorias. Quanto a estas jamais se confundiu o pagamento do preço da coisa importada com renda, pelo que nunca se pretendeu a incidência de imposto de renda relativamente ao valor da importação. Na verdade, uma coisa é “renda” – que corresponde a uma remuneração de um fator de produção -, outra coisa e “pagamento de capital”, que corresponde a uma transação que envolve troca de bens que integravam previamente o patrimônio das partes em presença. O produto da venda de bens não é renda, mas receita bruta operacional. A renda – a haver – resultará da diferença entre as receitas das vendas e os custos ou perdas necessários à produção dos bens vendidos, consistindo no lucro líquido tributável”.[1]

Assim, caso um determinado país – o Equador – descumprisse o tratado e promovesse a retenção do imposto, o Fisco brasileiro iria recusar-se a reconhecer o crédito daquele tributo para fins de apuração do imposto de renda devido pela empresa brasileira, uma vez que, nos termos das regras do tratado, apenas e tão somente o Brasil poderia tributar referidos rendimentos.

Por isso foi surpreendente a “virada de mesa” do Brasil que, rasgando as regras dos tratados que celebrou, lançou uma das medidas mais autoritárias e xenófobas jamais vistas: o Ato Declaratório (Normativo) n.º 1, de 5 de janeiro de 2000, segundo o qual:

“I – As remessas decorrentes de contratos de prestação de assistência técnica e de serviços técnicos sem transferência de tecnologia sujeitam-se à tributação de acordo com o art. 685, inciso II, alínea "a", do Decreto nº 3.000, de 1999.

II – Nas Convenções para Eliminar a Dupla Tributação da Renda das quais o Brasil é signatário, esses rendimentos classificam-se no artigo Rendimentos não Expressamente Mencionados, e, consequentemente, são tributados na forma do item I, o que se dará também na hipótese de a convenção não contemplar esse artigo.

III – Para fins do disposto no item I deste ato consideram-se contratos de prestação de assistência técnica e de serviços técnicos sem transferência de tecnologia aqueles não sujeitos à averbação ou registro no Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI e Banco Central do Brasil.”

Dizemos “virada de mesa” porque alguns meses antes da edição do malfadado Ato Declaratório já tinham sido divulgadas Soluções de Consulta[2] afirmando categoricamente que “não incide o imposto de renda na fonte sobre os pagamentos a empresa francesa que não possua estabelecimento permanente no Brasil, em decorrência da prestação se serviços técnicos que não se enquadrem no conceito de know how”.

Nesse ponto cabe um breve parêntesis para explicar a exceção do know how. O Brasil tradicionalmente adota em suas convenções regra nos termos da qual os pagamentos de serviços técnicos e de assistência técnica, por serem conexos a uma transferência de tecnologia, seguem o regime de tributação dos royalties que, no caso especifico dos tratados brasileiros, também podem ser tributados pelo Estado da fonte.[3]

Fechado o parêntesis, retomemos. Dizemos “rasgando as regras” porque, como se viu, é extreme de dúvidas que os rendimentos da prestação de serviços são componentes dos lucros da empresa estrangeira e não há outra hipótese de classificação que não a de submetê-los ao regime de competência exclusiva do artigo 7º.

A pretensão de classificá-los como “rendimentos não expressamente mencionados” e, na falta dessa classificação, tributá-los da mesma forma (!?!!!?), com o devido respeito, não passa de uma atitude autoritária de uma “criança mimada” que não quer jogar conforme as regras do jogo, criando regras próprias à sua conveniência.

A cláusula de “rendimentos não expressamente considerados” é residual e prevê a atribuição de competência cumulativa para hipóteses marginais, como é o caso de prêmios ganhos em loterias, anuidades de previdência social, pagamentos de manutenção a parentes.[4]

Chamamos a medida de autoritária porque, simplesmente, não há qualquer vestígio dos seus fundamentos. O Ato Declaratório (Normativo) foi outorgado, tal como um Ato Institucional, declarando, com eficácia normativa, uma interpretação dita oficial, engendrada dentro das repartições, desprovida (ou ao menos não revelada, o que significa o mesmo) de fundamentação jurídica.

Ao fim, dizemos xenófoba porque com a tributação praticada o Brasil simplesmente dificulta – por que torna muito onerosa – a contratação serviços junto a residentes no exterior por empresas brasileiras a preços razoáveis, de mercado, porque é evidente que o prestador estrangeiro domiciliado em país que celebrou tratado com o Brasil terá que repercutir no preço o ônus de um imposto na fonte irrecuperável no seu país de residência.

Imaginem por um momento se os trinta países que celebraram tratado com o Brasil começassem a retaliar, emitindo atos não fundamentados para declarar com eficácia normativa “interpretações” que mudam as “regras do jogo”. Será que o Brasil toleraria tais práticas? Penso que não.

Cabe urgentemente ao Brasil rever sua posição se quer ser um “ator” de relevância no cenário mundial. Se quiser ser respeitado, há que obedecer as regras do jogo. Oxalá se confirme o voto do ministro Castro Meira e a decisão do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.161.467 sirva como lição para o Brasil voltar a jogar conforme as regras do jogo.

[1] Cfr. Direito Tributário Internacional do Brasil, 7ª edição, 2010, Rio de Janeiro, ed. Forense págs. 567-568.

[2] Cfr. Decisão 9E97F007 da 9ª Região Fiscal (Tratado Brasil-França) e Decisão 274/98 da 7ª Região Fiscal (Tratado Brasil-Canadá).

[3] Nos termos das “Non-member countries positions” à Convenção Modelo OCDE “Brazil, Gabon, Ivory Coast and Tunisia reserve the right to include fee for technical assistance and technical services in the definition of “royalties””.

[4] Cfr. Alberto Xavier, op. cit., 569.

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