Guerra dos portos

Incentivos fiscais e o desenvolvimento da indústria

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3 de abril de 2012, 18h44

Um efervescente debate nacional surgiu com o Projeto de Resolução do Senado 72/10, que uniformiza a alíquota de ICMS sobre as importações fixando-a em zero para as operações que envolvam bens e mercadorias importadas do exterior e destinadas à revenda. Já há alterações no projeto original e, hoje, as comissões falam da instituição da alíquota ao patamar de 4%.

A proposta invoca o fortalecimento da indústria nacional. O que ocorre é que alguns estados, unilateralmente e sem observância da regra constitucional de deliberação prévia pelo Confaz, instituem benefícios fiscais que reduzem o ICMS para favorecer operações de importação de mercadorias em seus territórios, atraindo investimentos desse segmento da economia (tradings, por exemplo) — é o fenômeno da “guerra dos portos”.

Nesse contexto, há algumas premissas ditas e repetidas.

A primeira é que essa “guerra” reduziria a arrecadação total do ICMS para os demais estados que não possuem os benefícios, pois os ganhos decorrentes dessa postura não compensariam as perdas dos destinatários das mercadorias subsidiadas.

A segunda diz que a manutenção do cenário de concessão de incentivos pelos estados prejudica a indústria nacional, pois enquanto a tributação pelo ICMS das mercadorias importadas é de 12%, nos estados que concedem benefícios, essa alíquota é reduzida, por exemplo, a 2%.

Pela terceira, a proposta prejudicaria o orçamento estatal, pois haveria redução na arrecadação sem qualquer compensação, daí ela dever ser rejeitada ou alterada.

É importante extrair a essência do raciocínio empregado no PRS 72/10: a mercadoria estrangeira terá alíquota zero do ICMS na operação interestadual, cabendo ao estado destinatário a sua tributação, o que incentivaria a indústria nacional, já que os produtos importados não poderiam ser agraciados com benefícios fiscais nos estados em que são importados.

Fixado esse raciocínio, também é importante quatros importantes aspectos pelos quais a defesa da indústria nacional precisa ser examinada: (i) a relação da guerra fiscal com o pacto federativo; (ii) o compromisso constitucional de desenvolvimento regional sócio-econômico; (iii) a carga tributária nacional e (iv) a gestão das receitas.

A chamada “guerra fiscal” consiste na sucessão de incentivos fiscais concedidos unilateralmente pelos estados, que vão desde as reduções de base de cálculo do ICMS passando por diferimento e chegando a financiamento para pagamento da exação. Qualquer benefício fiscal somente pode ser estabelecido pelos estados com prévia autorização do Confaz (art. 155, § 2º, XII, “g”, da CF/88), o que não tem ocorrido.

Esse fenômeno está diretamente ligado a dois importantes elementos fundantes do Estado brasileiro: o pacto federativo e a construção de ambientes propícios ao desenvolvimento econômico e social do Brasil. O pacto federativo é caracterizado pela descentralização política, a repartição de competências e a autonomia dos estados. Pelo princípio federativo, a Constituição deve fornecer condições para que a autonomia dos estados possa ser exercida e, no caso em análise, ela confere ao Confaz a deliberação sobre benefícios fiscais.

No entanto, a Lei Complementar 24/75, que regula o Confaz exige, para a aprovação dos benefícios, unanimidade de votos, o que inviabiliza o exercício da esperada autonomia. Isso porque, na federação, os estados podem e devem ter autonomia para instituir regras próprias, dentre as quais a atribuição de regime tributário menos oneroso para que possam atrair investimentos para seus territórios, principalmente quando sofram de condições geográficas e econômicas menos favoráveis ao desenvolvimento, tais como mão-de-obra pouco qualificada e infra-estrutura precária.

Logo, nem todo benefício fiscal seria inconstitucional, pois a Constituição Federal não apenas não veda, como o permite, desde que autorizado pelo Confaz.

De fato, pela leitura sistêmica da Constituição e considerando a autonomia dos estados, os benefícios fiscais somente poderiam ser afastados pela Constituição acaso provocassem competição desleal entre os entes federados, deixando, por exemplo, de ser instituído para compensar as condições econômicas e geográficas desfavoráveis ao desenvolvimento regional. Nesse aspecto, caberia ao Congresso Nacional ou ao Confaz fixar os critérios em que tais situações ocorreriam, tomando sempre como premissa a possibilidade de concessão de benefícios fiscais.

Outro aspecto de relevo é o seguinte: o projeto de resolução do Senado pretende fortalecer a indústria nacional coibindo a instituição de incentivos fiscais para a importação. Ocorre que a oneração das importações ataca equivocadamente o fator que enfraquece a indústria nacional, pois o prejuízo que ela tem suportado não vem dos incentivos fiscais concedidos pelos estados, mas, sob a ótica fiscal, da carga tributária incidente sobre a produção no Brasil.

O estudo intitulado “Pesquisa Internacional sobre Tributação”, encomendado pela Deloitte(1) mostra que a carga tributária brasileira incidente sobre a produção é duas vezes maior que a média mundial, considerando o ICMS, o IPI, além dos tributos que afetam o preço indiretamente, como IRPJ, a CSLL e PIS/Cofins.

Ademais, a sobretaxação das importações, além das vantagens que a própria Constituição Federal já concede (imunidade do IPI e do ICMS à exportação) não é medida que se alia à proposta política de inserção dos bens e mercadorias brasileiras em competição internacional. Todavia, esse efeito não tem condições de tornar o produto brasileiro competitivo no exterior. Por essa razão, é oportuna uma das medidas anunciada pela presidente Dilma quanto à desoneração das contribuições previdenciárias.

Ora, o processo de importação é bom para o Brasil, pois traz a necessidade de constante aprimoramento do processo produtivo interno, necessidade esta sobre a qual o governo deveria se debruçar propondo a desoneração da tributação interna, o fornecimento de infra-estrutura e o fomento do capital humano.

Na verdade, o Brasil precisa se debruçar sobre o objetivo de redução da carga tributária para a produção. E não há que se falar em redução da carga tributária sem que seja tratada, da mesma forma, a gestão dos recursos públicos e a sua redução. Não é factível reduzir tributos sem reduzir ou reorganizar despesas. Estudo da Câmara dos Deputados, de autoria do consultor legislativo Aurélio Guimarães Cruvinel e Palos, mostra que o crescimento das despesas públicas levou a “constantes alterações do sistema tributário com o fim de se aumentar a receita pública federal. A União, sobretudo por meio das contribuições sociais, elevou sua carga tributária entre 1994 e 2010 em 27,8%” (A Constituição de 1988 e o pacto federativo fiscal. Mar/2011.)

A uniformização da alíquota do ICMS interestadual sobre mercadorias importadas trará o fim da guerra dos portos e poderá incentivar a sociedade a consumir mais produtos nacionais, por falta de opção. Contudo, trará efeitos colaterais não mensurados devidamente no debate público adotado na condução da PRS 72/10: (i) não colaborará com o pacto federativo; (ii) não concretizará o comprometimento constitucional de desenvolvimento regional e; (iii) não significará melhoria da indústria nacional frente à estrangeira.

(1) O estudo foi elaborado visando comparar o perfil tributário de 34 países com base na carga tributária direta e indireta incidente sobre pessoas jurídicas e na existência de legislação sobre preços de transferência, normas antielisão, penalidades, incentivos fiscais para novos investimentos, etc. Os dados apresentados foram fornecidos pelos escritórios da Deloitte no exterior.

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