Usucapião de função

STF ainda discute concurso público para tabelião

Autores

2 de abril de 2012, 22h06

A história do notariado e dos registros públicos é tão densa quanto antiga. Essas atividades se originaram com a finalidade de atender a necessidades sociais de imprimir segurança e estabilidade nas relações interpessoais, jurídicas ou não, permitindo, assim, a perpetuação no tempo de negócios privados e, consequentemente, preservando os direitos daí derivados. Como observa Aliende, “é o escriba, encontrado na civilização egípcia e no povo hebreu, o antepassado do notário[1]”.

O desenvolvimento dessas atividades nos países que adotam órgãos de fé pública ao redor do mundo está caracterizado pelo exercício privado de funções públicas. Assim ocorre, em maior ou menor escala, na Itália, na França, na Espanha, na Alemanha e em Portugal. O mesmo se dá no Brasil, em que, salvo fracassadas experiências em contrário, como as trágicas (e já superadas) estatizações de cartórios feitas nos estados da Bahia e do Acre, o exercício da função pública notarial e de registro se dá em caráter privado por particulares em colaboração com o Poder Público — delegados de ofício público.

Com efeito, dentre os sistemas notariais existentes, o mais difundido, e ainda em franca expansão, é o sistema de documento público (também conhecido, devido à sua origem, como sistema do notariado latino)[2]. Tal sistema caracteriza-se, principalmente, pelo fato de serem os serviços notariais exercidos em caráter privado, mediante delegação estatal. Essas características estão, inclusive, bem explicitadas na Resolução de 18 de Janeiro de 1994, do Parlamento Europeu. Confira-se:

1. Delegación especial del poder del Estado para asegurar el servicio público de la autenticidad de los contratos y de las pruebas;

2. Actividad independiente que se ejercita en el marco de un cargo público, bajo la forma de una profesión liberal, pero sometida al control de los poderes públicos en cuanto a la observancia de las normas referentes al documento notarial y a la reglamentación de las tarifas en interés de los clientes.

3. Función preventiva a la del Juez, encaminada a reducir los litigios y funciones de asesor imparcial. [3]

No Brasil, Brandelli[4] lembra que a legislação sobre os serviços notariais e de registros manteve-se estática por muito tempo, regida pelas ordenações portuguesas, que estabeleciam competir ao Poder Real a nomeação dos tabeliães no país. Aliende acrescenta que tais cargos “eram providos por doação, com investidura vitalícia, podendo ser obtidos por compra e venda ou sucessão causa mortis, sem preocupação com o preparo ou aptidão para o exercício da função[5]”. Esse recurso possibilitava à Coroa assegurar lealdades e recompensar aliados.

A política brasileira de tratar o notariado e os registros públicos como verdadeira moeda de troca ou de posicionamento estratégico de aliados conduziu a doutrina especializada estrangeira a denominar essa área como de “evolução atrasada ou frustrada” no país e também se deve a esse descaso o profundo desconhecimento da população em geral e da comunidade jurídica, em especial, acerca da função notarial e de registro, até os dias de hoje.

No entanto, desde o Brasil Império, diversas iniciativas normativas foram tomadas no sentido de tentar romper com essa esdrúxula realidade.

Já em 28 de abril de 1885 (há quase cento e trinta anos, portanto), o Imperador Dom Pedro II tornou público o Decreto 9.420, que, em regulamento anexo, introduziu pela primeira vez no ordenamento jurídico nacional a exigência de concurso público para o provimento dos mencionados ofícios (art. 1º). Pouco tempo depois, em 14 de julho de 1887, o art. 1º do Decreto 3.322, da lavra da Princesa Isabel Leopoldina, regente do Império, confirmou a referida exigência.

Como nenhuma destas medidas foi suficiente para expurgar da política brasileira a prática nefasta de favorecer “apadrinhados”, quase cem anos após o advento da primeira norma suprareferida, promulgou-se, em 29 de junho de 1982, a Emenda 22 à Constituição Federal de 1967, que, a par de estabelecer requisitos para a efetivação de substitutos em caráter excepcional (art. 208) — na verdade, um dos tantos “trens da alegria” que já ocorreram no país —, constitucionalizou a obrigatoriedade de concurso público para o ingresso na atividade notarial ou de registro (art. 207). Por apresentar caráter nitidamente moralizador, este preceito foi mantido na Constituição Federal de 1988 (art. 236, § 3º). Por fim, em 18 de novembro de 1994, foi editada a Lei 8.935, que, nos arts. 14 a 19, fixou normas para o ingresso nessas atividades.

Porém, nem assim os concursos foram realizados. O que se presenciou, na expressiva maioria dos estados, foram nomeações interinas e, o que é pior, efetivações não precedidas de concurso público, movidas, também nos dias atuais, pelos mesmos interesses que ensejavam as doações de cartórios no Brasil Império. Observe-se.

Efetivações inconstitucionais nos cartórios

Com claro intuito de burlar a regra do concurso público, foram criadas, tanto em Constituições Estaduais, quanto em leis ordinárias, normas estabelecendo alguns requisitos para que os substitutos fossem efetivados, como se a Constituição da República permitisse tal manobra. Assim é que foram efetivados interinos que estavam em exercício na data da instalação da Assembleia Nacional Constituinte (RO), na data da promulgação da Constituição Federal (SC, RJ, ES e GO) e na data da publicação da Lei n. 8.935, ou seja, 21 de novembro de 1994 (novamente, SC). Todas essas efetivações foram declaradas inconstitucionais, e, portanto, inválidas, pelo Supremo Tribunal Federal, por afronta ao art. 236, § 3º, da Constituição Federal (ADI’s 363, 126, 552, 690 e 417).

De fato, o STF, em diversas oportunidades, reconheceu a auto-aplicabilidade da norma insculpida no referido dispositivo constitucional, que estabelece a exigência de concurso público para ingresso nos serviços notariais e de registro (RE 182.641/SP, RE-AgR 302739/RS, RE-AgR 252313/SP, REAgR 527573/ES, entre muitos outros). Nem poderia ser diferente, uma vez que o princípio do concurso público simplesmente decorre do da isonomia, direito fundamental dos cidadãos, que encontra assento até na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948: “toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país” (art. 21).

Além disso, a obrigatoriedade de aprovação em concurso público para a obtenção da delegação em comento está imbricada com os princípios republicanos e democráticos que regem toda a Carta de 1988, tais como: legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência.

Nítida também é a má-fé dos beneficiados por tais efetivações inconstitucionais, uma vez que, como “profissionais do Direito” que são (Lei 8.935/94, art. 3º) têm — ou pelo menos deveriam ter — a obrigação de conhecer (e se submeter ao) texto constitucional vigente, norma-ápice do sistema normativo brasileiro. Certamente, nenhum brasileiro em sã consciência teria coragem de afirmar que essas efetivações não precedidas de concurso público tenham ocorrido por absoluta boa-fé dos envolvidos.

A atuação da Corregedoria Nacional de Justiça

Pois bem, exatamente com o escopo de dar efetivo cumprimento ao princípio do concurso público, cujo desrespeito reflete típica política feudal de apadrinhamento, em 9 de julho de 2010, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por intermédio de sua Corregedoria, após trabalho hercúleo, declarou vagas milhares de serventias notariais e de registro ocupadas por pessoas que não passaram por prévia seleção pública, nos termos da Resolução 80, do referido Conselho.

Ocorre que, após essa declaração maciça de vacâncias, os atingidos pela decisão do CNJ impetraram incontáveis mandados de segurança perante o Supremo Tribunal Federal, atacando a decisão do Conselho e sustentando, entre outros argumentos, que as “nomeações” (“titularizações” ou “efetivações”), embora não precedidas de aprovação em concurso público, ocorreram há mais de cinco anos, motivo pelo qual, nos termos do art. 54 da Lei 9.784/99, restariam intocáveis e teriam como conseqüência a impossibilidade de as serventias a elas relacionadas serem levadas a concurso público.

Como se pode perceber, uma vez acolhido o entendimento defendido pelos “efetivados”, a regra do concurso público para o ingresso na atividade notarial e de registros estará definitivamente vilipendiada em nosso país, com a convalidação de milhares de nomeações nulas, reeditando-se o chamado “Trem da Alegria dos Cartórios” previsto no art. 208 da Constituição pretérita e criando-se uma odiosa espécie de usucapião de função pública no Brasil.

E, de fato, está-se diante de nulidade absoluta, conforme expressamente estabelecido pelo Poder Constituinte Originário no artigo 37, § 2º, que, aliás, deve conduzir os agentes públicos que praticaram tais atos à responsabilização por improbidade administrativa. Sob outra perspectiva, estabeleceu o Constituinte que, em eventual colisão entre os princípios do concurso público e da segurança jurídica, deve aquele prevalecer, podendo este ser aplicado, tão somente, para efeito de não se exigir dos efetivados irregularmente, salvo comprovada má-fé (que, nesse caso, “só não vê quem não quer”), a devolução aos cofres públicos dos emolumentos que perceberam no período e para possibilitar a convalidação dos atos por eles praticados perante a população.

Aliás, mutatis mutandi, é exatamente esse raciocínio que levou o Tribunal Superior do Trabalho a publicar a Súmula 363 de sua Jurisprudência Uniforme, muitas vezes já apreciada e considerada constitucional pelo STF, in verbis: “A contratação de servidor público, após a CF/1988, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS”.

O papel decisivo do Supremo Tribunal Federal

Exatamente por força de tais nomeações vulnerarem frontalmente o que estabelece o texto constitucional é que o Conselho Nacional de Justiça, a Procuradoria-Geral da República e a Advocacia-Geral da União, em muitos casos, rechaçaram a tese da decadência administrativa para a revisão de tais atos, o que, porém, parece ainda não ter convencido o Supremo Tribunal Federal, já que, conquanto também tenha afastado a absurda tese da decadência no MS 28.279, julgado em 16.12.2010, está apreciando novamente o assunto nos autos do MS 26.860. Nesse último writ, o relator, ministro Luiz Fux, repeliu a decadência; a ministra Rosa Weber divergiu e, logo após, o julgamento foi suspenso por força de pedido de vista formulado pelo ministro Dias Toffoli.

É inconcebível que os demais componentes do Excelso Pretório não encontrem inspiração nas sábias palavras proferidas pela ministra Ellen Gracie, ao relatar o leading case julgado em 2010, in verbis:

“Imbuídos de espírito genuinamente republicano, nossos Constituintes romperam com a tradição política feudal de atribuições de titulações de cartórios.

A Constituição de 1988 instaurou a legitimidade em relação ao provimento das serventias notariais e de registro em nosso país.

É que vivíamos até a promulgação da atual Constituição como se estivéssemos ainda no Império. As titularidades de cartórios equivaliam, na prática, a algo parecido às extintas concessões de baronato, criando-se uma espécie de classe aristocrático-notarial, atualmente inadmissível.

Hoje um jovem de origem modesta também pode sonhar em ingressar em tão importante atividade, sem depender de favores de autoridades, bastando para tal desiderato vocação e dedicação aos estudos jurídicos.

A esta Suprema Corte foi legada a maior de todas as missões: ser a guardiã da Constituição da República Federativa do Brasil. Como juízes da mais alta Corte de Justiça deste País, não podemos e não devemos transformar a Constituição em refém de leis e de interpretações contrárias ao espírito da própria Lei Maior.

Os princípios republicanos da igualdade, da moralidade e da impessoalidade devem nortear a ascensão às funções públicas.

Os milhões de brasileiros e brasileiras que se debruçam diariamente sobre livros durante horas a fio a estudar em busca de um futuro melhor não merecem desta Suprema Corte resposta que não seja o repúdio mais veemente contra esses atos de designação ilegítimos.

A tese defendida pelo impetrante faz letra morta do art. 236, § 3º, da Constituição Federal, que estabelece a exigência de prévia aprovação em concurso público para o ingresso na atividade notarial e de registro, razão por que não deve ser acolhida pela Corte.

O que se busca no presente writ é, em verdade, o reconhecimento de uma espécie de usucapião da função pública de notário ou registrador, pretensão inadmissível.”

Assim, a prevalecer a tese da decadência administrativa, o STF, a um só tempo, desrespeitaria o princípio da separação entre os poderes (CF, art. 2º), uma vez que não poderia, até por falta de legitimidade democrática, contrariar a nulidade dessas nomeações estabelecida pelo Poder Constituinte Originário no art. 37, § 2º, e transformaria em regra meramente utópica a republicana exigência estatuída no art. 236, §3º, também da Constituição.

Como se pode perceber, quase cento e trinta anos após a primeira norma brasileira exigindo prévio concurso público para o ingresso nas atividades notariais e de registros (“cartórios”), o Poder Judiciário, pela sua mais alta Corte, ainda debate se dará ou não efetiva força normativa a tal mandamento. Vê-se que não é somente nas obras de infraestrutura para a Copa de 2014 que o Brasil precisa de um forte “chute no traseiro” para ir adiante, não é verdade? A “bola”, nesse caso, está mais uma vez com o Supremo Tribunal Federal.


[1] RIBEIRO. Luís Paulo Aliende. Regulação da função pública notarial e de registro. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 12.

[2] A respeito da abrangência do sistema de notariado latino, cf. texto publicado no site do Consejo General Del Notariado (http://www.notariado.org/liferay/web/notariado/el-notario/el-notariado-en-el-mundo):

El sistema europeo continental del Notariado es el latino-germánico, que se agrupa en la Unión Internacional del Notariado (UINL).

El modelo continental del Notariado consigue unas transacciones más seguras y con menos costes para los usuarios y muchos países de otras culturas jurídicas ya lo han adoptado como propio.

Hoy en día es el modelo mayoritario en el mundo, utilizado por el 70 por ciento de la población mundial.

La función primordial del notario continental es el asesoramiento imparcial y el control estricto de la legalidad.

[3] Sobre esse assunto, veja-se, também, texto publicado no site da União Internacional do Notariado Latino (http://uinl.net/notariado_mundo.asp?idioma=esp&submenu=NOTAIRE):

EL NOTARIO Y LA FUNCION NOTARIAL

El Notario es un profesional del derecho, titular de una función pública, nombrado por el Estado para conferir autenticidad a los actos y negocios jurídicos contenidos en los documentos que redacta, así como para aconsejar y asesorar a los requirentes de sus servicios.

La función notarial es una función pública, por lo que el Notario tiene la autoridad del Estado. Es ejercida de forma imparcial e independiente, sin estar situada jerárquicamente entre los funcionarios del Estado.

La función notarial se extiende a todas las actividades jurídicas no contenciosas, confiere al usuario seguridad jurídica, evita posibles litigios y conflictos, que puede resolver por medio del ejercicio de la mediación jurídica y es un instrumento indispensable para la administración de una buena justicia.

[4] BRANDELLI, Leonardo. Teoria geral do direito notarial. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 42.

[5] RIBEIRO. Luís Paulo Aliende. Ob. cit. p. 28.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!