Ideias do Milênio

"Há mais ditaduras do que regimes democráticos"

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30 de setembro de 2011, 13h09

Milênio/GloboNews
Entrevista de Natasha Ezrow, professora de Estudos de Governos na Universidade de Essex na Inglaterra, ao jornalista Silio Boccanerapara o programa Milênio, da Globo News, transmitido no dia 21 de setembro. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça; 5h30 de quarta; e 7h05 de domingo. Leia, a seguir, a transcrição da entrevista:

Há mais ditaduras no mundo do que regimes democráticos. Só na China quase um bilhão e meio de pessoas vivem sob o poder arbitrário do Partido Comunista Chinês. Não tão repressivo hoje quanto na época de Mao Tsé-Tung, que mandou matar dezenas de milhões de chineses, mas o partido permanece intolerante de oposição. Há ditadores que escancaram seu poder pessoal. Muammar Kadafi serve de exemplo recente. Há ditadores que fazem o gênero totalitário pitoresco. Antonio Salazar em Portugal preferia ser discreto, ditador nas sombras. Outros representam a cúpula militar que manda mas escolhe o plantonista da vez. Ou respondem a um partido único como Vietnã ou Laos. Certas ditaduras misturam personalismo e partido único. Sem esquecer dos ditadores caricatos, ou dos metidos a sérios ao prometer criar sociedades igualitárias e perfeitas. Alguns ditadores se excederam na capacidade de matar em escala industrial. Outros preferiam matar menos e roubar mais. Ditaduras e ditadores formam o tema do livro recém-lançado da Natasha Ezrow, professora de Estudos de Governos na Universidade de Essex na Inglaterra, onde o Milênio foi encontrá-la.

Silio Boccanera — Enquanto conversamos, a temporada de caça a ditadores está aberta no mundo árabe: Tunísia, Egito, Líbia, Síria, Iêmen, Bahrein. Todos os ditadores há muito no poder estão sendo atacados agora. Qual é a sua leitura sobre o que ocorre no mundo árabe? Por que agora?
Natasha Ezrow —
Sempre pensamos que o Oriente Médio fosse a área mais estável para ditaduras. Isso é tudo muito surpreendente, mas consideramos essa revolução em cascata parecida à que ocorreu no Leste Europeu. Aconteceu uma revolução e as outras seguem. A situação na Tunísia foi a catalisadora. Quando o Egito viu a possibilidade da Tunísia, seguiu os mesmos passos. Vimos o que houve no Bahrein, na Síria, no Iêmen, na Líbia. Parece um resultado da globalização. As pessoas conseguem coordenar como nunca, através de redes sociais, além de terem maior consciência do que acontece.

Silio Boccanera — Todas essas ditaduras foram muito repressoras. Mas a sua pesquisa trata do que faz uma ditadura durar tanto tempo. Não é só repressão, é?
Natasha Ezrow —
Não, é uma mistura de fatores. A repressão, sozinha, não conseguiria. Também é preciso cooptar alguns opositores no momento certo para manter as pessoas felizes. O Estado não tem poder físico para oprimir todo mundo. Além de cooptar pessoas, há outras estratégias, como realocar pessoas, trocar posições, manter todo mundo alerta, tentar se manter neutro, culpar outras pessoas, permitir participação simbólica, partidos simbólicos de oposição, e o carisma também ajuda.

Silio Boccanera — Acha que pode ser o caso do Marrocos, onde o povo diz que gosta do rei. Quer que haja mudanças, mas gosta do rei. Isso me lembra Cingapura. O líder de muitos anos Lee Kuan Yew era linha-dura, mas as pesquisas indicavam que o povo gostava dele. É possível existir uma ditadura benigna?
Natasha Ezrow —
Sim, sem dúvida. No caso de monarquias, como o Marrocos, as monarquias são consideradas muito legítimas. Podem usar sua legitimidade histórica para obter a aprovação da população. Muitas vezes, não foram tão repressivas em comparação com outras ditaduras. No caso do Marrocos, apesar de quererem se envolver mais no processo político, não querem necessariamente derrubar o rei, pois é grande parte de sua identidade. No caso de Cingapura, temos um Estado com índice baixíssimo de corrupção, um dos mais baixos do mundo, e um índice altíssimo de crescimento econômico. É uma ditadura que sabe o que faz na política econômica. A população provavelmente está satisfeita. Também no caso de Cingapura, há mecanismos de feedback. Eles fazem eleições, embora não haja nada que leve a uma mudança no poder, mas é uma maneira de ver se o partido político está se saindo bem, o PAP, que está no poder.

Silio Boccanera — Quando falamos sobre ditaduras, muitas delas, e tentamos compará-las, há sempre a questão do grau. Algumas são piores que outras, há as mais repressoras e as menos. E chegamos à distinção entre regimes autoritários e regimes totalitários. Explique essa distinção.
Natasha Ezrow —
Com regimes totalitários, falamos mais dos anos 50. São regimes como os de Stalin e Hitler. Regimes totalitários querem unificar a sociedade, para que ela seja totalmente subserviente ao Estado. Ocorre uma fusão. Eles querem apagar personalidades, controlar a psicologia das pessoas. Querem que a população fique ativada e completamente mistificada, ou totalmente apaixonada pelo líder. Só vemos isso atualmente na Coreia do Norte. Temos esse nível de opressão e ênfase no líder. É quase uma lavagem cerebral. O regime autoritário deseja manter a população despolitizada e apática, sem envolvimento na política, pouco se importando com a política. Essa é a principal distinção. Não tenta controla assim a vida diária das pessoas.

Silio Boccanera — Voltando ao mundo árabe, a essa revolta disseminada, as pessoas ficam empolgadas e encorajadas ao verem a população nas ruas se movendo e se mobilizando contra ditadores. Mas sua pesquisa indica que a maioria das ditaduras rui internamente. Na verdade, são pessoas próximas ao ditador que o eliminam.
Natasha Ezrow —
Exato. Revoluções são muito raras. É muito difícil haver a coordenação do povo. Há muito medo do que o protesto pode causar em uma ditadura. Por isso, são difíceis de prever e são raras. O que costuma acontecer é a elite negociar sua saída. Sentem que os benefícios de uma pequena democratização superam o custo da incerteza de uma eleição. Por isso, vemos ocorrerem essas transições geralmente com a elite negociando, em vez de revoltas populares.

Silio Boccanera — Há vários motivos para uma ditadura surgir, para passar a existir. Você pesquisou muitos motivos. Existem causas comuns para o estabelecimento de ditaduras?
Natasha Ezrow —
Bem, há causas comuns quando há muito instabilidade. Quando há grave instabilidade, é a oportunidade certa para os militares tomarem o poder. Embora os militares talvez não governem, um ditador pode surgir dessa situação. Pode imaginar diversos motivos para a instabilidade. Quando temos um Estado fraco, instituições fracas, altos índices de pobreza, uma diversidade que tende a ser muito polarizada, a possibilidade de uma guerra civil, a ameaça de outra potência. Todos esses fatores geram instabilidade e levam ao surgimento de uma mão mais forte para a retomada da estabilidade.

Silio Boccanera — Falou agora das causas comuns para o estabelecimento de uma ditadura, mas e as condições para evitar uma ditadura? Manter as forças armadas do mesmo lado, tentar manter uma situação econômica razoável. O que mais?
Natasha Ezrow —
Bem, é basicamente isso. Manter as forças armadas profissionalizadas, evitando que se envolvam na política. Não se pode politizá-las. Precisam aceitar o fato de que não vão se envolver na política, e isso requer que sejam profissionais. O que cria uma mudança tanto no colapso do autoritarismo quanto na mudança da democracia é a instabilidade, que vem com uma crise econômica de algum tipo.

Silio Boccanera — Isso nos traz outra discussão. A distinção que você fez entre autoritarismo e totalitarismo. A China foi totalitária com Mao. Milhões de pessoas foram massacradas, milhões de chineses. Controle total, a tentativa de criar o novo homem etc. Atualmente ainda há um só partido lá. Mas, embora limitada, eles têm mais liberdade, podem viajar, não há total liberdade de expressão, mas há alguma, e claro que se tornaram uma econômica capitalista. Era um governo totalitário, se tornou autoritário. Como se faz essa distinção? Porque continua havendo um só partido.
Natasha Ezrow —
Regimes totalitários não se sustentam tanto tempo, porque o esforço necessário para manter o nível de energia e entusiasmo pelo regime é impossível, principalmente em um país tão populoso. Quando Deng Xiaoping assumiu, com a morte de Mao, o Estado se transformou muito. Ainda era um regime autoritário, mas havia um único partido no poder, e dentro dele começou a haver muita democracia, havia muitos freios e contrapesos ao líder. Mas, ao mesmo tempo, não permitem que nenhum outro partido assuma. Por esse motivo, ainda são autoritários.

Silio Boccanera — Você classifica as ditaduras em várias categorias. Há as ditaduras que chama de “personalizadas”, e um exemplo perfeito é a de Kadafi. A “ditadura militar”, que ocorreu muito na América Latina no passado. A “ditadura unipartidária”, da antiga União Soviética e do Leste Europeu recentemente. Mas também há combinações entre elas. Explique.
Natasha Ezrow —
Há momentos em que um partido político divide o poder com um líder popular. Há momentos em que os militares dividem o poder com um líder popular. E há momentos, como foi no Egito, em que havia um partido forte, o Partido Nacional Democrático, com Mubarak, um líder fortíssimo, e os militares dividindo o poder. Também o caso da Síria. Há um partido político forte, há os militares e um líder forte. O que significa quando há mais de uma pessoa no poder é que há mais pessoas com interesses no regime. Isso dificulta a derrubada do poder, porque todos têm interesse em mantê-lo. Há um grande partido com interesses. Toda a elite tem interesse em manter o status quo. De certa forma, são mais duradouros, porque é mais difícil eliminá-los.

Silio Boccanera — Em que categoria você colocaria uma situação como a de Cuba com os Castro? Que combinação seria?
Natasha Ezrow —
É um regime unipartidário personalista, o que explica sua longevidade e explica por que será difícil de derrubar, mesmo após a morte de Fidel Castro. Ele é uma pessoa muito carismática, e boa parte da autoridade vem do carisma dele, mas o partido é fortíssimo. Tem lealdade aos irmãos Castro. Há muitas pessoas nesse regime com interesse em manter o status quo, o que tornará possível que se mantenha após sua morte.

Silio Boccanera — Como classifica Hugo Chávez?
Natasha Ezrow —
Ele está tentando fazer a transição para uma liderança personalista, na qual todo o poder se concentre nas mãos dele. Está em transição. A questão da Venezuela é que o país tem um histórico de democracia, apesar de ser uma democracia com falhas. O povo estava acostumado a votar e a participar. Havia partidos políticos. Estavam acostumados à concorrência. Não é um processo simples. Ele está tentando desinstitucionalizar — é o que um ditador personalista tenta fazer — todo o aparato do regime.

Silio Boccanera — O Brasil era levemente diferente nos 21 anos de ditadura militar. Os generais no poder mudavam periodicamente, eram sempre escolhidos pelo alto comando, não pelo voto popular. Não havia um partido todo-poderoso. Obviamente, as forças armadas estavam no comando. Como caracteriza esse tipo de ditadura?
Natasha Ezrow —
Normalmente, ditaduras militares não duram muito. Quando os militares assumem o poder, perdem o aspecto profissional. Começam a se formar fissões, facções. Os militares preferem manter sua coesão corporativa, em vez de se manter no poder. Os militares brasileiros eram interessantes, pois conseguiram se manter no poder mais de 20 anos, o que é um feito inédito, já que regimes militares duram, em média, 3 anos. Mas eles conseguiram porque, embora eu não dê crédito aos militares por contribuir com o crescimento econômico, houve um crescimento estável nesse período, e eles eram muito bem institucionalizados. Garantiam que o poder de liderança fosse trocado e mantiveram a unidade corporativa, até que ficou claro que não seria mais assim. A economia ia mal, e eles sabiam que teriam que negociar uma saída. E eles negociaram a saída.

Silio Boccanera — Não foi o tipo de ditadura que é derrubada, que muda inesperadamente, como na Argentina. Eles negociaram o final, a transição para um governo civil. Essa é geralmente uma saída boa ou ruim?
Natasha Ezrow —
É ótima para os militares. E é normalmente o que eles fazem. Querem se certificar de que suas promoções estejam intactas, para que o governo não interfira nas promoções, enquanto ganham ou em seu acesso a armas. Querem manter sua autonomia. Eles têm o desejo de voltar aos quartéis. Talvez nem gostem tanto de governar. Muitas vezes, os regimes militares veem uma oportunidade, sabem que podem negociar sua saída, negociar condições muito vantajosas para eles — como foi também o caso na Turquia, quando os militares saíram — e isso lhes permite manter ainda muito do poder, embora não estejam diretamente no comando.

Silio Boccanera — E a outra coisa que os ditadores fazem, que é combater um inimigo comum? Qual é a importância de ter esse inimigo facilmente identificável?
Natasha Ezrow —
É importantíssimo um tipo de bode expiatório, e é o que vemos na Guerra Fria. Mas o fim da Guerra Fria fez uma diferença enorme. Era uma abertura, não havia mais o medo daquele inimigo para distrair a população para justificar a necessidade daquele comando autoritário. Há necessidade de um inimigo, de um bode expiatório, é importante, pois é preciso que se esqueçam de que o líder não é legítimo.

Silio Boccanera — Uma pessoa como Mobutu, no Zaire, que tinha claramente apoio dos EUA e da Europa, que sabiam que ele era um homem terrível, mas era ele que representava o inimigo do outro lado. Os comunistas queriam tomar o Zaire, hoje, o Congo.
Natasha Ezrow —
Ele era um especialista. Era um especialista em manipular o Ocidente e fazer o Ocidente pensar que ele era a peça mais importante naquela batalha da Guerra Fria na África. Por isso, ele conseguiu obter muita ajuda, muito apoio militar, que ele nem mesmo usou, e se tornou um dos homens mais ricos do mundo. Ele conseguiu colocar potências umas contra as outras. Tudo porque a Guerra Fria estava acontecendo e ele se projetou como um anticomunista.

Silio Boccanera — Mobutu, Idi Amin, Abacha… Só para citar alguns, já mortos, dos quais as pessoas se lembram bem. Eram todos militares, mas o regime deles não era. Então, na África, existe o ditador personalizado. O fato de terem vindo do exército não importa.
Natasha Ezrow —
Exatamente. A maioria das ditaduras tem início no exército. Para dar um golpe e tomar o poder, é preciso ter poder.

Silio Boccanera — Kadafi e Mubarak também.
Natasha Ezrow —
Exatamente. Eles têm formação militar. O que acontece no caso dos ditadores personalistas da África é que as instituições são muito fracas e os próprios militares nunca são tão profissionais. Não tiveram a verba dos militares latino-americanos, muito profissionais e unificados, que poderiam governar por períodos mais longos. Esses ditadores personalistas saíram de exércitos muito fracos e divididos, cheios de grupos étnicos. É muito fácil chegar ao topo, jogar diferentes facções umas contra as outras e chegar À posição superior.

Silio Boccanera — No caso de Saddam Hussein, no Iraque: o partido Baath era uma grande máquina. Ele não precisava, mas criou assim mesmo. Eles fizeram até eleições. Por que o partido?
Natasha Ezrow —
Em alguns casos, eles surgem do partido. O partido tem o poder antes deles. Foi o caso de Saddam Hussein. Ele era membro do Partido Baath, mas conseguiu eliminar sistematicamente os inimigos e subiu através do partido. Outra ideia para a criação de um partido é que eles, supostamente, oferecem alguma legitimidade, é um mecanismo de recrutamento. As pessoas serão leais a você. O partido é uma instituição que pode ajudar a distribuir apoio e outros serviços, por isso, acham que o partido pode ajudar a intensificar a legitimidade da ditadura. Por alguns motivos podem criar um partido e até mesmo partidos simbólicos de oposição. Mas é tudo fachada.

Silio Boccanera — Com o regime militar no Brasil.
Natasha Ezrow —
Exatamente. Criam partidos para que o povo pense que é mais democrático.

Silio Boccanera — Por que se incomodar em fazer eleições? Saddam Hussein sempre fazia eleições. Claro que tinha 99% dos votos toda vez. Mas por que isso? Ele tinha o poder, podia fazer o que quisesse, e ainda assim fazia eleições. E os soviéticos também.
Natasha Ezrow —
Exato. É apenas um método para o líder reafirmar sua legitimidade com a população. Mesmo que todos façam a encenação, que todos saibam qual será o resultado, é um determinado período para o líder ser exaltado pelo povo e para que diga ao mundo que foi eleito com 99% dos votos. Não há um significado. É apenas para engrandecimento pessoal, gratificação pessoal.

Silio Boccanera — Estamos falando em ditaduras, mas uma hora elas acabam, os ditadores são depostos etc. E elas acabam de diferentes maneiras. Vimos o efeito dominó no mundo árabe, sofrendo pressão de baixo, do povo. O império soviético durou décadas até que desmoronou em um processo rápido. Com Saddam Hussein foi preciso uma imensa intervenção, como aconteceu com Manuel Noriega, no Panamá. No Brasil, como citamos, foi uma transição negociada que pôs fim à ditadura. Obviamente, não existe uma fórmula mágica para acabar com uma ditadura. Mas existem métodos melhores que outros?
Natasha Ezrow —
Vai depender do tipo de ditador com quem se lida. Se tiver um líder personalista, ele não vai sair. Não concebe a existência de uma vida sem ele no poder. A saída é sempre muito demorada, prolongada e sangrenta. Como foi o caso de Saddam Hussein. Foi preciso haver intervenção externa, uso violento de força, e o problema é que muita gente morre nesse processo. É muito sangrento. É o que estamos vendo acontecer no caso de Kadafi. Se houver um militar ou um partido único no poder, há maior chance de negociar a saída. O problema da saída negociada é que ainda haverá elites nos bastidores com mais influência e poder do que se desejaria. Mas a vantagem é que não é violento, costuma ser feito de forma pacífica e estável. Por esse motivo, é preferível que a pessoa saia naturalmente, em vez de contar com uma força externa para tirá-la do poder.

Silio Boccanera — Natasha, muito obrigado.

Natasha Ezrow — Eu que agradeço.

Extra

Silio Boccanera — Seu livro faz distinção entre ditadores e ditaduras. Pelo que você vê acontecer no mundo árabe hoje, parece que os ditadores vão sair, mas as ditaduras vão permanecer?
Natasha Ezrow —
No caso do Egito, vai ser uma transição muito difícil, porque os militares ainda têm enorme poder. Eles possuem 50% da capacidade das fábricas e não é provável que eles saiam de cena. Ou eles vão comandar dos bastidores ou terão um tremendo poder de veto. Isso, além do fato de o Egito não ter um histórico de partidos políticos fortes, me deixa muito cética quanto ao que a transição trará. A Tunísia, pelo menos, tem algum histórico de partidos políticos, instituições, uma legislação que funciona. Só quando Ben Ali tomou o governo foi que ele personalizou o poder e surgiu uma ditadura pra valer, com todo tipo de opressão. A Tunísia tem uma chance bem melhor de fazer a transição do que o Egito.

Silio Boccanera — Podemos ver como uma consequência disso que os países mais ricos sejam menos inclinados a ditaduras ou que países mais pobres sejam mais inclinados a elas?
Natasha Ezrow —
Pela tendência geral, e isso é só uma correlação, os países mais ricos tendem a ser democráticos. Há exceções no Oriente Médio por causa do petróleo. Recursos do petróleo podem ser usados para manter o povo feliz.

Silio Boccanera — A Arábia Saudita é um exemplo.
Natasha Ezrow —
Exatamente. Alguns dos Estados com muito petróleo que sejam ricos podem manter o povo feliz distribuindo a riqueza proveniente do petróleo. Mas, em geral, se você tem uma classe média ativa com uma população que trabalhe pela economia… Na Arábia Saudita, poucos trabalham na economia do petróleo, eles trabalham para o Estado. E ficam felizes. Se você tem uma classe média ativa, verá que a maioria desses países tende a ser democrática.

Silio Boccanera — Devemos lembrar aos espectadores que não são só países pobres que têm ditaduras. Nos anos 1970, tivemos Espanha, Portugal, Grécia — o berço da democracia — e todo o Leste Europeu. Eram todos países com ditaduras. Eram países razoavelmente modernos e democráticos… Bem, não sei se democráticos, mas eram ricos, e se tornaram ditaduras assim mesmo. Então, a riqueza de um país não é impedimento para que tome esse rumo.
Natasha Ezrow —
Não necessariamente. Quando existe um tipo de perturbação, a ameaça do comunismo ou qualquer tipo de ameaça, isso gera instabilidade, que é o ambiente propício para que o povo precise de uma mão firme. Talvez não comece como ditadura, mas vai piorando gradativamente.

Silio Boccanera — Hitler.
Natasha Ezrow —
Exatamente. Com toda a instabilidade econômica que havia, vimos a ascensão de um líder para aplacar o medo do povo.

Silio Boccanera — Em um país muito rico.
Natasha Ezrow —
Exatamente.

Silio Boccanera — Muitos tendem a pensar que ditaduras sejam exceções em um mundo no qual a maioria dos países é democrática, mas, segundo pesquisas que você estudou, é o oposto.
Natasha Ezrow —
Exato. A maior parte do mundo, 2/3 da população, vive sob regime de ditadura. Boa parte por causa da China, que tem mais de 1 bilhão de habitantes. Mas se você classificar as ditaduras com base naquelas em que o poder muda de mãos e aquelas em que não muda, verá que a maior parte do mundo vive sob regimes em que não há mudança no poder. Só tem um partido, um militar ou um líder no poder durante muitos anos.

Silio Boccanera — Quando ouvimos alguns argumentos dos ditadores na América Latina e, agora, no mundo árabe, geralmente há a justificativa de que o povo de um determinado país não está pronto para a democracia, por isso aceita carregar esse fardo do governo centralizado. Isso existe? O povo não estar preparado para a democracia?
Natasha Ezrow —
Acho que existe o caso de haver culturas políticas com orientações variadas quanto à democracia. Algumas talvez não tenham uma orientação tão positiva com relação à democracia. Mas o maior obstáculo não é necessariamente a cultura política, e sim se existem partidos políticos, se há legislações e instituições. Se existem tais instituições fundamentais à democracia, o povo se adapta rapidamente à situação. Há exemplos em que o povo quis uma mão mais firme, um líder muito poderoso, mas o argumento de que o povo não está preparado para uma democracia é o que ditadores usam para justificar seu comando.

Silio Boccanera — Na África, ouve-se muito isso com relação às divisões étnicas.
Natasha Ezrow —
Exato.

Silio Boccanera — Os grandes homens, os grandes líderes dizem que eles precisam de um pode forte e centralizado, um poder ditatorial, para o país não ruir com tantos grupos étnicos.
Natasha Ezrow —
Certo. Mas a democracia pode se instalar na África. Sabemos que esse não é um motivo válido. As instituições sempre foram muito pobres na África, possivelmente devido ao Colonialismo ou a outros fatores, a pouca ajuda que chega, mas por haver partidos políticos tão fracos, legisladores fracos, poder judiciários fraco, um lei fraca, ficou difícil para a sociedade civil, para o povo se organizar. Por esse motivo, pode haver instabilidade e os líderes dizerem: “O país precisa de uma liderança forte.” Com tanto grupos étnicos diferentes e tanta diversidade, eles se aproveitam desse medo de que precisam de um líder forte para unir todo mundo.

Silio Boccanera — Voltamos ao que já falamos. Para evitar um golpe e uma ditadura militar, ou qualquer tipo de ditadura, é preciso que haja instituições fortes.
Natasha Ezrow —
Exatamente.

Silio Boccanera — Para que o líder não alegue que é a única solução.
Natasha Ezrow —
Exatamente, e é esse o problema na África.

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