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Como citar o réu que é Estado estrangeiro

Autor

  • Antenor Madruga

    é sócio do FeldensMadruga Advogados doutor em Direito Internacional pela USP especialista em Direito Empresarial pela PUC-SP e professor do Instituto Rio Branco.

28 de setembro de 2011, 17h00

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Em artigo anterior publicado nesta ConJur, abordamos a questão da citação do Estado estrangeiro para responder a ação no Brasil. Defendi a posição de que se deve sempre determinar a citação do Estado estrangeiro para que este possa exercer — ou não — o eventual direito à imunidade de jurisdição. Como se sabe, a imunidade à jurisdição não é absoluta, não existindo em todos os casos.

No presente artigo, comparamos essa posição que defendemos com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.

No Recurso Ordinário 85/RS[1], relatado pelo ministro João Octávio de Noronha, a 4ª Turma do STJ entendeu que a comunicação processual ao Estado estrangeiro visa apenas “informar o ente estrangeiro de que há uma ação ajuizada contra si no âmbito da jurisdição pátria, convidando-o a dela participar, hipótese em que deverá renunciar à sua imunidade”. Assim, segundo esse acórdão, não se pode falar em citação, “porquanto não se busca com este ato a angularização da relação jurídica processual.

Citar, continua o precedente em referência, “significa chamar ou convocar alguém a juízo, dando-se-lhe notícia da existência de ação proposta contra si, oportunizando-lhe defender-se. A citação previne a jurisdição, torna a coisa litigiosa, induz litispendência, constitui o devedor em mora e interrompe a prescrição”.

Ainda de acordo com esse acórdão, “nenhum desses efeitos se verifica no presente feito, em razão da imunidade de que goza o Estado estrangeiro quando se pretende discutir em juízo questões relativas à sua soberania… Trata-se de comunicação que não gera ônus e nem produz efeitos em face do Estado estrangeiro, nada obstante a existência de uma ação, cujos atos processuais, para serem desenvolvidos, dependem da manifestação do mencionado Estado.

Com o devido respeito, divergimos da conclusão do STJ. O prosseguimento de ação contra o Estado estrangeiro somente depende da manifestação do mencionado Estado quando se verifica, no caso concreto, hipótese de imunidade de jurisdição. Se não houver imunidade, a ação deve prosseguir contra o Estado estrangeiro ainda que este seja revel.

É bem verdade que, nesse precedente, o STJ havia considerado, prima facie¸ que o Estado estrangeiro faria jus à imunidade. Entretanto, mesmo na hipótese de o Estado estrangeiro fazer jus à imunidade, entendo, com a devida vênia do STJ, que o Estado deveria ser citado e não apenas “comunicado” para responder à ação contra ele proposta.

Não se discute que o silêncio do Estado réu não significa renúncia à imunidade de jurisdição, mas, ao contrário, afirmação dessa prerrogativa. Em outras palavras, o silêncio do Estado estrangeiro demandado em ação perante a Justiça nacional deve ser “ouvido” como um exercício do direito à imunidade.

Uma ação judicial contra Estado estrangeiro pode transcorrer normalmente, até a sentença final, se, no caso, não se configurar a imunidade de jurisdição ou se houver ocorrido a renúncia dessa imunidade. É por essa razão que a sorte da ação contra Estado estrangeiro não pode ser conhecida pela simples análise da petição inicial. O ajuizamento de um pedido contra réu soberano não é, por si, juridicamente impossível.

Ainda que o caso apresentado pelo autor preencha, visivelmente, os requisitos que caracterizam a imunidade de jurisdição soberana, deve o juiz chamar o Estado réu a se defender, pois haverá sempre a possibilidade de sua submissão voluntária. É exatamente esta a orientação que se extrai de decisão monocrática do ministro Sepúlveda Pertence na Ação Cível Ordinária para execução de dívida ativa fiscal proposta pela União (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional) contra o Consulado Geral da República da Coreia em São Paulo. Antes de extinguir o processo por ausência de jurisdição, em face da verificação de evidente imunidade do Estado demandado, determinou o ministro Pertence a citação do Estado demandado, acatando parecer do Ministério Público, exarado pelo subprocurador-geral da República Flávio Giron ([2]):
“Com vista dos autos, opinou pelo Ministério Público Federal o il. Subprocurador-Geral Flávio Giron, assim ementado o parecer — f. 14:
‘Ação Cível Originária. Execução fiscal movida pela Fazenda Federal contra Estado estrangeiro. Imunidade de jurisdição. O Estado acreditante, e somente ele, pode renunciar, se entender conveniente, às imunidades de índole penal e civil de que gozam seus representantes diplomáticos e consulares. Parecer no sentido de que seja solicitado ao Estado estrangeiro manifestação a respeito de sua renúncia à imunidade de jurisdição’.”

No julgamento da mesma ação, o ministro Celso de Mello, na linha do ministro Sepúlveda Pertence, também entendeu que antes da extinção do processo devido ao reconhecimento do afastamento da jurisdição pela incidência da imunidade, é preciso dar ao réu a oportunidade de manifestar sua recusa ou aceitação do foro. Todavia, o ministro Celso de Mello, preferiu, antes de determinar a citação, instar o Estado réu a se pronunciar sobre a sua eventual submissão à jurisdição brasileira([3]):
“Antes de ordenar a citação, no entanto — e atento às implicações que desse ato podem resultar, em face do que dispõem os Artigos 22 e 30 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (v., a propósito, GERALDO EULÁLIO DO NASCIMENTO E SILVA, "A Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas", p. 107, 2ª ed., 1978, Brasília) -, determino que se transmita o inteiro teor do presente despacho ao Senhor Ministro de Estado das Relações Exteriores, para que Sua Excelência inste a República dos Camarões a pronunciar-se, por intermédio de sua Missão Diplomática, sobre a sua eventual submissão à jurisdição do Poder Judiciário brasileiro.”

A solução encontrada pelo ministro Celso de Mello e também pelo precedente estabelecido pela 4ª Turma do STJ no julgamento do RO 85, tem o mérito de permitir que a citação — e os ônus dela decorrentes — somente tenha lugar após a resolução do incidente de imunidade, quando o juiz já formou sua convicção sobre a propriedade da recusa à jurisdição. Se rejeitada a alegação de imunidade, o Estado réu ainda teria oportunidade e prazo para, querendo, contestar a ação. Porém, entendemos que essa solução provoca desnecessariamente dois chamamentos do réu para responder à mesma ação, contrariando o princípio da economia processual. Se ele já foi chamado uma vez, por que chamá-lo novamente, caso não aceite sua recusa à jurisdição?

É justa a preocupação de que o incidente de imunidade não exaure o prazo da contestação. Não se deve exigir que o Estado soberano, crendo ser imune à jurisdição estrangeira, tenha de, ao mesmo tempo, apresentar a declinatoria fori e promover as demais defesas preliminares e de mérito para se acautelar contra a hipótese de que a imunidade pleiteada não seja reconhecida. Essa cautela seria recomendável se o incidente de imunidade exaurisse o prazo da contestação. Mas esse problema pode ser evitado aplicando-se analogicamente ao incidente de imunidade o regime da exceção de incompetência, especialmente no que diz respeito à suspensão do processo, nos termos do artigo 265, III, do Código de Processo Civil. Oposta a exceção de imunidade de jurisdição, o prazo para contestação seria suspenso e voltaria a correr a partir do momento em que o Estado fosse intimado da decisão de não acatar a alegada imunidade. Esta é a solução apontada pela lei argentina de 1995:
ARTICULO 4º – (…)
La interposición de la defensa de inmunidad jurisdiccional suspenderá el término procesal del traslado o citación hasta tanto dicho planteamiento sea resuelto.

A resposta do réu soberano pode limitar-se à recusa, expressa ou tácita, do foro (declinatoria fori). O Estado recusa tacitamente o foro quando silencia e não responde à citação. Alternativamente, pode recusar expressamente o foro, por petição ao Juiz ou por nota diplomática enviada ao Ministério das Relações Exteriores. A recusa expressa é mais cortês com o Estado acreditante e, mesmo quando dirigida por petição ao Juízo, não implica abdicação da imunidade, como já teve oportunidade de se manifestar o ministro Rafael Mayer ao relatar a Apelação Cível 9.684 (caso Lizarda dos Santos v. Embaixada da República do Iraque):
“Pode a autoridade diplomática estrangeira, uma vez citada, comparecer ao feito, simplesmente, para excepcionar a jurisdição pela afirmação da sua condição de imune, sem que tal diligência processual importe em abdicar da extraterritorialidade.”

No direito comparado, encontramos dispositivos legais expressos reconhecendo que a alegação de imunidade de jurisdição não deve ser interpretada como aceitação de jurisdição, especificamente nas leis inglesa, australiana e argentina.

A recusa do foro por alegação direta ou indireta de imunidade de jurisdição cria o que chamamos de incidente processual de imunidade. Antes que o processo tenha continuidade, deve o juiz, nos próprios autos, resolver esse incidente, avaliando a alegação de imunidade à luz do direito internacional vigente ou de lei interna que eventualmente disponha sobre a imunidade dos Estados estrangeiros.

O processo contra Estado estrangeiro soberano tem a peculiaridade de dever ser extinto sem julgamento do mérito quando se verificar a ocorrência de imunidade de jurisdição. O Código de Processo Civil não dispôs sobre essa hipótese de extinção do processo, o que exige a construção de regras procedimentais específicas para enfrentá-lo.

A analogia com outras causas de extinção do processo é o principal método a ser observado, porém tendo-se presente sempre que o objetivo é encontrar o processo adequado à aplicação das regras de imunidade. Parte da jurisprudência tem feito exatamente o contrário, buscando lapidar a regra material para preservar o processo. Um dos exemplos dessa constatação é o fundamento que os tribunais buscam para extinguir o processo quando verificada a imunidade de jurisdição.

No caso Ovídio Alves Marins v. Embaixada da República Popular da Hungria([4]), o Supremo Tribunal Federal extinguiu o feito nos termos do artigo 267, VI, do CPC, sem contudo especificar qual das condições da ação considerava inexistente, se a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes ou o interesse processual. O mais provável é que se estivesse referindo à impossibilidade jurídica do pedido, haja vista serem indiscutíveis a legitimidade das partes e o interesse processual do autor, que reclamava indenizações trabalhistas por demissão sem justa causa (na época do acórdão o STF ainda aceitava imunidade nessas causas). Noutro caso, Elias Farah v. Consulado Geral do Líbano([5]), julgado poucos dias depois, o Supremo foi mais específico e expressamente dispôs que extinguia o processo por impossibilidade jurídica do pedido. Em Félix Fischer v. Consulado-Geral da República Popular da Polônia([6]), o Supremo respaldou decisão de primeira instância que, diante da imunidade de jurisdição, também extinguia o processo com fundamento no art. 267, VI, do CPC, “por reconhecer que o pedido é juridicamente impossível na jurisdição brasileira”.

O fundamento que o Supremo Tribunal Federal utilizou nesses três casos para justificar a extinção do processo, quando verificada a imunidade de jurisdição, é claramente inadequado. O fato de o réu ser imune à jurisdição não significa que o pedido é juridicamente impossível. Um pedido é juridicamente impossível, como explicam Cintra, Grinover e Dinamarco, “quando não tem a menor condição de ser apreciado pelo Poder Judiciário, porque já excluído a priori pelo ordenamento jurídico sem qualquer consideração das peculiaridades do caso concreto([7]). A impossibilidade jurídica do pedido não permite o prosseguimento da ação ainda que o réu consinta no exercício da jurisdição, pois a possibilidade de prestação jurisdicional estaria excluída do ordenamento jurídico. O exemplo clássico é a ação de divórcio nos países em que o casamento é indissolúvel. Situação completamente diferente é a ação contra Estado estrangeiro que, mesmo nas situações em que a análise do caso concreto indique haver imunidade de jurisdição, a prestação jurisdicional será ainda possível se houver renúncia à prerrogativa.

Imunidade de jurisdição do Estado soberano e impossibilidade jurídica do pedido são dois fundamentos distintos para a extinção do processo sem julgamento do mérito, embora o primeiro não esteja expressamente disposto no Código de Processo Civil, ao contrário do segundo, que pode ser lido no artigo 267, inciso VI. Parece-nos razoável supor que essa lacuna levou o STF a procurar em um dos fundamentos expressamente dispostos no CPC a razão para extinguir o processo, ainda que se colocando à margem do conceito de impossibilidade jurídica do pedido.

Porém, o reconhecimento da ausência de jurisdição em decorrência da imunidade do Estado soberano é o bastante para extinguir o processo sem julgamento do mérito, como fez o ministro Sepúlveda Pertence ao extinguir, por decisão monocrática, processo em que a República da Coréia, não respondendo à citação, manifestou-se pela imunidade que, no caso, se constatava([8]):
“Desse modo, ausente o pressuposto processual de jurisdição, extingo o processo sem julgamento do mérito.”

Ao determinar a citação, o Estado afirma, ainda que precariamente ou potencialmente, sua jurisdição sobre a causa. Se configurado o direito à imunidade soberana, pode o Estado estrangeiro demandado, manifestando sua prerrogativa, afastar o exercício da jurisdição territorial do Estado do foro. Lembra Cosnard, com propriedade, que “l’immunité n’en est pas la négation, mais le non-exercice dans une situation particulière([9]). Perde-se a jurisdição territorial pelo reconhecimento da imunidade, como afirmou a Corte de Cassação francesa no julgamento do caso General National Marine Transport Company (g.n.m.t.c.) v. Marseille Frêt, ocorrido em 4 de fevereiro de 1986([10]).

Entretanto, não se pode negar ao jurisdicionado o direito  de instaurar o incidente de imunidade. A jurisdição para decidir esse incidente e determinar se o Estado estrangeiro faz jus à imunidade é do Estado do foro. Para tanto, entendemos ser necessária a citação do Estado, com as peculiaridades destacadas, e não uma “simples comunicação processual, atípica em relação às previstas no Código de Processo Civil, visando informar o ente estrangeiro de que há uma ação ajuizada contra si no âmbito da jurisdição pátria, convidando-o a dela participar, hipótese em que deverá renunciar à sua imunidade”, como estabeleceu o STJ.

 


[1] RO 85/RS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 04/08/2009, DJe 17/08/2009)
([2]) STF. Ação Cível Originária no 543, julgada em 15/02/2000, Relator: Ministro Sepúlveda Pertence.
([3]
) STF. Ação Cível Originária n575. Relator: Ministro Celso de Mello. Data do despacho: 01/08/2000.
([4]) STF. Apelação Cível no 9.695-5, julgada em 21/05/1987, Relator Ministro Oscar Correa.
([5]) STF. Apelação Cível no 9.704, julgada em 10/06/1987, Relator Ministro Carlos Madeira.
([6]
) STF. Apelação Cível no 9.701-3, julgada em 22/10/1987, Relator: Ministro Néri da Silveira.
([7]
) CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO. Teoria Geral do Processo. Op. cit., p.217.
([8]
) STF. Ação Cível Originária no 543, julgada em 15/02/2000, Relator: Ministro Sepúlveda Pertence.
([9]) COSNARD. Michel. La Soumission des Etats aux Tribunaux Internes…, op. cit., p. 42.
([10]
) Apud COSNARD. Michel. La Soumission des Etats aux Tribunaux Internes…, op. cit., p. 42, nota de rodapé no 37: ““ dès que les conditions nécessaires pour le jeu de l’immunité de juridiction … se trouvent remplies, le juge français perd — sauf renonciation à ce privilège — son pouvoir de juger.”

 

 

Autores

  • Brave

    é advogado, sócio do Barbosa Müssnich e Aragão; doutor em Direito Internacional pela USP; especialista em Direito Empresarial pela PUC-SP; professor do Instituto Rio Branco.

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