Limites do poder

Ativismo judicial é tema de curso na TV Justiça

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25 de setembro de 2011, 8h52

O programa Saber Direito, da TV Justiça, discutirá, a partir de segunda-feira (26/9), o ativismo judicial. O curso, que será exibido de segunda a sexta-feira, às 8h com reprise às 23h30, será ministrado pelo advogado e professor de Direito Constitucional Saul Tourinho Leal.

Nas aulas, Tourinho Leal esclarece as origens do constitucionalismo, destacando a importância das constituições e dos direitos fundamentais. Na sequência, ele fala da origem da expressão ativismo judicial e das novas perspectivas trazidas pelo Direito Constitucional contemporâneo. O professor dedica uma aula às experiências das cortes constitucionais estrangeiras na proteção dos direitos fundamentais. No último encontro aborda o chamado ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal, destacando as últimas decisões do tribunal, como a Marcha da Maconha e o reconhecimento das relações homoafetivas.

Saul Tourinho Leal é piauiense e mora em Brasília há seis anos. Ele integra o escritório Pinheiro Neto Advogados, faz doutorado em Direito Constitucional na PUC-SP e dá aulas no Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb). É autor dos livros Controle de Constitucionalidade Moderno e Ativismo ou Altivez? O outro lado do STF. O Saber Direito também está no YouTube. Para assistir às aulas, basta acessar o canal do programa (www.youtube.com/saberdireitoaula). O advogado adiantou à revista Consultor Jurídico os principais pontos discutidos em suas aulas.

Leia a entrevista:
ConJur — Por que criar um curso sobre ativismo judicial para estudantes de Direito?
Saul Tourinho Leal — Muitos estudantes de Direito são bombardeados pela acusação de que o Supremo Tribunal Federal é arbitrário. Nem sempre eles têm contato com o outro lado da moeda. Um mestre chega na sala de aula e diz: "O STF é ativista! Vocês viram? Que absurdo!", e isso é repetido diariamente. Achei oportuno mostrar uma outra perspectiva e permitir que eles tirem suas próprias conclusões.

ConJur — O STF é ativista?
Tourinho Leal — Em alguns casos, sim. A tentativa de fazer uma reforma política pela via judicial esbarrou em problemas incontornáveis. O Tribunal Superior Eleitoral criou a verticalização das coligações partidárias. Veio o Congresso e reformou a Constituição. Depois tivemos a fidelidade partidária. A decisão quanto à posse dos suplentes foi amplamente desrespeitada pelo Congresso, até que o próprio STF mudou de posição. O TSE investiu em campanhas esclarecendo que o eleitor poderia votar portando o seu título de eleitor. Na semana anterior à eleição, o STF disse que o eleitor só votaria se portasse algum documento com foto. Há ainda os casos em que governadores derrotados foram empossados no lugar dos eleitos. Por fim, temos o trauma da Lei da Ficha Limpa. Dois dias de discussão para, ao final, a Corte, desfalcada, dizer que não tinha conseguido chegar a uma resposta. Esse episódio foi muito traumático.

ConJur — O STF não deveria entrar nessas questões?
Tourinho Leal — Com a intensidade que tem feito, penso que não. Se assim o for, não faz sentido termos o TSE. Também não vejo aqui exatamente direitos fundamentais a serem protegidos. Uma Corte Constitucional debatendo se o documento de identificação do eleitor deve ter uma foto? Imagino que o TSE tem condições de disciplinar isso.

ConJur — Em quais matérias a atuação da Corte não poderia ser tida como ativista?
Tourinho Leal — Veja o caso do reconhecimento das relações homoafetivas. Um Congresso Nacional que, por meio de suas maiorias políticas, bloqueia o livre desenvolvimento dos debates legislativos acerca desse tema. Propostas são apresentadas e não conseguem seguir seu caminho natural. Nesse caso temos, evidentemente, o sufocamento de direitos fundamentais das minorias por parte das maiorias. Daí o STF, por meio do seu poder contra-majoritário, forçar a maioria a aceitar a outorga de direitos às minorias. Nada de ativismo.

ConJur — Mas a decisão foi muito criticada…
Tourinho Leal — Especialmente por quem discorda do seu mérito, ou seja, por aqueles que não aceitam que esse tipo de direito seja desfrutado por quem mantém uma relação homoafetiva. Do ponto de vista institucional não enxergo exorbitância. A Corte é provocada e atua sempre com os olhos na Constituição Federal que, por sua vez, veda discriminações relativas à opção sexual.

ConJur — Um dos pontos criticados nessa decisão foi a utilização do direito à busca da felicidade como fundamento, tendo o STF citado, inclusive, um trabalho de sua autoria a respeito do assunto…
Tourinho Leal — Não seria presunçoso supor que algumas pessoas que criticam a utilização do direito à busca da felicidade não têm tanta intimidade com esse tema. É aquela coisa do "não li e não gostei". Esse direito tem raízes filosóficas marcantes, basta ler Epicuro ou conhecer a escola utilitarista de Jeremy Benthan. O direito à busca da felicidade foi introduzido por Thomas Jefferson, a pedido de George Manson, na Declaração de Independência dos Estados Unidos. Hoje, o direito é assegurado por mais de 30 constituições estaduais daquele país. A Constituição do Japão também. Em 2007, o sociólogo holandês Ruut Veenhoven encantou a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em Roma, ao apresentar a palestra "Medidas da Felicidade Nacional Bruta". A Corte Constitucional da Coreia utiliza esse direito como fundamento de suas decisões acerca da liberdade de casar. A ONU, esse ano, estabeleceu que as nações devem tentar assegurar a felicidade de seus povos por meio de políticas públicas. Eu não posso acreditar de tudo isso seja à toa e que o ministro Celso de Mello, que foi quem invocou esse direito no caso das relações homoafetivas, não sabia sobre o que falava.

ConJur — As críticas ao STF são injustas?
Tourinho Leal — Não diria injustas. O STF é uma instância pública de deliberação e decisão. É muito importante apontar as falhas. Esse ano apresentei a palestra "Insegurança Jurídica em matéria tributária no STF". Nela mostro como a Corte oscila quanto a seus próprios procedimentos e faço inúmeras considerações. Contudo, muitas vezes se critica por criticar. Estamos falando de um especialista em STF? Ele tem uma vida dedicada a estudar a jurisdição constitucional? Caso não tenha, ele critica como cidadão, o que é legítimo, mas não como crítico especializado. Por isso, muitas vezes as críticas, inclusive as proferidas na academia, são retóricas, o que não ajuda.

ConJur — Quais críticas são oportunas?
Tourinho Leal — Todas são, mas uma coisa é criticar como cidadão, outra coisa é a crítica especializada. Inúmeros grupos de pesquisas Brasil afora divulgam resultados surpreendentes quanto às análises que fazem do STF. Isso é crítica especializada. Há também os estudiosos que realizam boas considerações quanto aos critérios de fundamentação das decisões do tribunal, especialmente quando invocam o princípio da proporcionalidade. Aqui também há enormes avanços.

ConJur — Um dos temas abordados no seu curso é a chamada judicialização da saúde. Nesse caso, há excessos?
Tourinho Leal — A atuação do Poder Judiciário, em regra, é inevitável, pedagógica e acertada. Mas nem sempre é assim. Há situações nas quais o STF defere o custeio de tratamentos experimentais em Cuba, em casos de retinose pigmentar, e depois o paciente retorna ao Brasil pior. Na audiência pública da saúde, realizada no STF, falou-se até mesmo de cegueira. Aqui temos um erro, pois zelar pela saúde e pela vida do paciente é exatamente não incentivá-lo a embarcar em aventuras. Contudo, temos outras hipóteses em que a atuação do Judiciário é importantíssima. No caso das listas de medicamentos fornecidos pelo SUS, temos uma defasagem imensa na atualização. O Judiciário, provocado pelas multidões desassistidas, começa a deferir o fornecimento de novos medicamentos e, com isso, força o Poder Público a avaliar a atualização das listas. Isso é pedagógico.

ConJur — Você acha que o protagonismo do Brasil no combate ao HIV decorre da atuação do Judiciário?
Tourinho Leal — Não decorre exclusivamente dele, mas entendo que isso jamais teria acontecido sem o exercício intenso de cidadania constitucional por parte de ONGs que acionavam o Judiciário exigindo medicamentos para os soropositivos. As decisões começaram a pipocar no Brasil inteiro até chegar ao STF, que avalizou a postura judicial. O governo passou a enfrentar o problema como sendo um caso de interesse público. Em 2000, em Durban, na África do Sul, o país era aplaudido pelo seu modelo público de combate ao HIV. Teríamos chegado a esse patamar de excelência sem a intervenção judicial? Penso que não.

ConJur — No seu curso você fala de experiências estrangeiras com o chamado ativismo judicial?
Tourinho Leal — Sim. É importante que saibamos que a expansão da jurisdição constitucional não é invenção brasileira. Ao contrário, estamos ingressando nesse ambiente relativamente tarde. A África do Sul enfrentava uma epidemia de HIV nos recém-nascidos e a ministra da Saúde recomendava suco de beterraba para combater esse caos. Imagine só isso! Setenta mil crianças infectadas por ano e uma gestora aparece diante da sociedade e diz: "Bebam vitamina de beterraba!" Isso é aceitável? Creio que não. Daí a Corte Constitucional sul-africana ter apreciado o Caso TAC e garantido a implementação de um programa sério de combate ao HIV em recém-nascidos.

ConJur — E quanto à Marcha da Maconha?
Tourinho Leal — Para mim se trata de uma decisão absolutamente previsível, basta recordar o histórico jurisprudencial do STF. O tribunal anulou uma condenação criminal imposta ao teatrólogo Gerald Thomas, que havia mostrado as nádegas à plateia no teatro. Segundo a Corte, a atitude estava acobertada pela liberdade de expressão. Depois ela declarou a inconstitucionalidade do decreto do governo do Distrito Federal que impedia manifestantes de fazerem barulho em seus protestos na esplanada dos ministérios. O STF fixou não ser necessário diploma de jornalista, porque seria uma limitação à liberdade de expressão. Também declarou não recepcionada a Lei de Imprensa ao fundamento de que ela não era condizente com a Constituição Federal de 1988. Recentemente afirmou que exigir que músicos se filiassem a uma ordem para exercer suas profissões não tinha respaldo constitucional. Diante dessa trajetória, será que há mesmo surpresa em a Corte definir que a sociedade tem o direito de se reunir para debater a descriminalização do uso da canabis sativa?

ConJur — Há, no Congresso Nacional, vários projetos que visam alterar as competências do STF e até mesmo sua composição. O que você acha?
Tourinho Leal — Legítimo. Não há qualquer problema em debatermos outras possibilidades. Querem instituir mandato? Vamos debater. Querem reduzir o número de integrantes? Vamos debater. Não há qualquer problema.

ConJur — Mas há quem ache que é uma reação a esse ativismo judicial…
Tourinho Leal — Conduzir uma proposta por retaliação? Sou levado a não acreditar nisso. Talvez aqui e acolá seja possível que uma proposta represente um descontentamento, mas no geral acredito que o que se busca é o debate saudável. Temos o modelo canadense com o chamado diálogo institucional. Contudo, se formos pensar, algumas das propostas são desnecessárias. Uma delas diz que o Congresso pode ultrapassar uma decisão do STF quanto a Corte exorbitar de suas competências. Acontece que isso a própria Constituição Federal já prevê quando diz, no artigo 49, inciso XI, ser da competência do Congresso zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros poderes. No fundo, a nossa Constituição já nos dá todos os instrumentos necessários de freios e contrapesos.

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