Dignidade da criança

Móveis de quarto do bebê não podem ser penhorados

Autor

24 de setembro de 2011, 7h04

istockphoto.com
Em meio às tantas data venia e dura lex, sed lex das decisões judiciais, uma sentença do último 14 de setembro, proferida pelo juiz Ney Stany Morais Maranhão, chama atenção justamente pela leveza lexical. As palavras soneca, carinho, pequenino, ternura, maternidade, amamentação e bebê substituem o latim e, juntamente com o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Constituição Federal, levaram o juiz federal do Trabalho a liberar a penhora de bens do quarto de um menino, filho dos executados.

A cômoda, a poltrona para a mãe amamentar e uma central de ar condicionado foram os únicos bens encontrados em boas condições no quarto do menino. Sobre esse último, o juiz comentou, na decisão: "Sabe-se que por aqui, na Região Norte, ter ar condicionado não é luxo, mas sim uma imperiosa necessidade, ainda mais quanto se trata de criança pequena (no caso, com menos de dois anos de idade)."

Ney Maranhão atua no Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (Pará e Amapá), mais precisamente na 3ª Vara trabalhista do município paraense de Ananindeua. Na tarde desta quinta-feira (22/9), os termômetros da cidade marcavam 33ºC. Na visão do juiz, esses bens representavam um patamar mínimo de dignidade a ser preservado.

Logo no começo da decisão, o juiz declara que "a beleza da maternidade e o conforto de uma criança não merecem, em hipótese alguma, ameaça de invasão" e, sendo a casa asilo inviolável, como manda o artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal, "o quarto de um bebê, então, é mais que sagrado, por ser locus reservado à troca desinteressada de olhares, à dedicação humana, à construção de vínculos afetivos".

Segundo ele, tomando como base o artigo 3º do ECA, o menino, "mesmo pequenino, goza plenamente de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, cabendo-lhe o resguardo, por lei ou por outros meios, de todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhe facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade".

Sobre a cadeira de amamentação, o juiz também teceu comentários, mais uma vez guiando-se pelo ECA. "A lei", escreve, "impõe ao poder público, às instituições e aos empregadores a obrigação de propiciar condições adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães submetidas a medida privativa de liberdade". E continua: "o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, além dos espaços e objetos pessoais".

De acordo com a decisão, o crédito trabalhista, "mesmo detendo alto grau de respeito, não pode dificultar o cumprimento da nobre missão materna" e nem "solapar" a dignidade da criança e de seus pais. Ele então cita o que classifica como "a fria letra da lei": o artigo 649, inciso II, do Código de Processo Civil. O dispositivo estabelece que "são impenhoráveis os móveis, pertences e utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida". 

Processo: 0001651-02.2010.5.08.0121

Leia abaixo a íntegra da decisão:

Vistos etc.

Conheço dos embargos, porque atendidos os pressupostos legais.

Como se vê do certificado à fl. 95, os bens penhorados (central de ar condicionado, uma cômoda e uma poltrona para amamentação) guarnecem quarto de bebê, filho dos embargantes, cuja certidão de nascimento fora acostada à fl. 94, pelo que pretendem a retirada da constrição judicial. Embora regularmente instado (fl. 87), o embargado se quedou silente.

Ao me debruçar sobre a questão, vem-me à mente, de pronto, que a beleza da maternidade e o conforto de uma criança não merecem, em hipótese alguma, ameaça de invasão.

Perceba-se que se a casa é asilo inviolável (CF, art. 5º, XI), o quarto de um bebê, então, é mais que sagrado, por ser locus reservado à troca desinteressada de olhares, à dedicação humana, à construção de vínculos afetivos – o que, enfim, mais importa nessa vida.

Sabe-se, ademais, que, por aqui, na região norte, ter ar condicionado não é luxo, mas sim uma imperiosa necessidade, ainda mais quando se trata de criança pequena (no caso, menos de dois anos de idade).

Demais disso, o ar condicionado, a cômoda e a poltrona — como qualquer pai sabe — são objetos essenciais para um mínimo de dignidade à criança e à mãe, seja quando da ternura da amamentação, seja quando daquele carinho tranquilizador antes da soneca — imprescindível mesmo quando a criança já tenha saído da fase de amamentação. Isso não se lê em livros; a vida o ensina.

Destaco, ainda, que XXX, mesmo pequenino, goza plenamente de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, cabendo-lhe o resguardo, por lei ou por outros meios, de todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhe facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade (Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 3º).

E não é só. Constitui dever não apenas da família, mas também da comunidade, da sociedade em geral e do próprio poder público assegurar, para o XXX, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 4º).

Vale dizer que a lei impõe ao poder público, as instituições e os empregadores a obrigação de propiciar condições adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães submetidas a medida privativa de liberdade (Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 9º), destacando-se que o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, além – frise-se bem – dos espaços e objetos pessoais (Estatuto da Criança e do Adolescente, artigo 17).

É também dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor (Estatuto da Criança e do Adolescente, artigo 18).

Todos esses dispositivos densificam os preceitos estampados no artigo 227 da Constituição Federal, a demonstrar que o quarto de XXX é referência de enlace afetivo-espiritual, afigurando-se mesmo intocável.

No caso em análise, os bens constritos se revelam instrumentos sagrados, não pelo que são, em si, mas pelo que propiciam: o desenvolvimento sadio de um bebê, que personifica alegria não apenas para os pais, mas também para cada um de nós, que nele enxerga, sempre, a possibilidade de projeção de um mundo muito melhor do que esse que agora vivemos.

O crédito trabalhista, mesmo detendo alto grau de respeito, não pode dificultar o cumprimento da nobre missão materna, muito menos solapar a dignidade de XXX e de seus pais, materializada no escopo de ofertá-lo o melhor que puderem, enquanto condições materiais mínimas para o seu adequado desenvolvimento físico e afetivo.

Não fosse tudo isso, segue ainda a fria letra da lei: são impenhoráveis os móveis, pertences e utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida (CPC, artigo 649, II).

Vê-se, portanto, que os bens penhorados não apenas guarnecem a residência do reclamado, mas integram o mais inviolável de seus cômodos: o quarto de XXX, sendo que esses objetos (central de ar condicionado, uma cômoda e uma poltrona para amamentação), sem qualquer sombra de dúvida, integram um patamar mínimo de dignidade humana (CF, artigo 1º, III) que se pode emprestar aos devedores e sobretudo ao bebê, que nada deve, antes, pelo contrário, é credor, da parte de todos, do mais profundo carinho e respeito, na esperança de que, daqui a algum tempo, ajude-nos nessa árdua missão de construir um mundo mais justo e solidário (CF, artigo 3º, III).

Por fim, registro que o silêncio do exequente, ao ser chamado a falar sobre o teor dos embargos, é deveras eloquente. Afinal, o que dizer em um caso desses?…

Acolho os embargos. Libero a penhora.

Saúde e felicidade ao pequeno XXX!

Publique-se.

Ananindeua/PA, 14 de setembro de 2011.
Ney Stany Morais Maranhão – Juiz Federal do Trabalho Substituto"

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!