Tempo em abrigos

Burocracia judicial dificulta adoção de menores

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18 de setembro de 2011, 17h12

Eles gostam de pular corda, bater figurinhas e, principalmente, de jogar futebol. Jorge, de 13 anos, Gustavo, de 10, e Pedro (nomes fictícios), de 9, dominam com precisão as normas dessas e de outras brincadeiras. Mas nenhum dos garotos consegue explicar as regras da vida para que não tenham uma família como outras crianças. Ao serem questionados, os meninos abaixam a cabeça. A assistente social Susana Maia, diretora do Lar Marista, onde eles estão abrigados, lamenta a situação. “Os três já estão aqui há dois anos, sem passar por processo de adoção”.

Jorge, Gustavo e Pedro pertencem ao grupo de 4.856 crianças, no Brasil, que têm mínimas chances de encontrar uma nova família, segundo o site Dia a dia. O problema não está na falta de pais pretendentes. Na fila dos adotantes estão 27.478 pessoas, uma média de cinco interessadas para cada criança.

A solução numérica não funciona na prática porque grande parte dos menores não tem o perfil procurado pelos candidatos a pais. “O filho sonhado não pode ser negro, ter irmão ou idade superior a 2 anos ou ser soropositivo”, afirma a coordenadora da Política de Convivência Familiar e Comunitária da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência da República, Alice Bittencourt.

A cada aniversário da criança, diminui a probabilidade dela ser adotada. O Cadastro Nacional de Adoção do Conselho Nacional de Justiça revela que cerca de 20% dos pais desejam um filho com até 3 anos. Quando o menino ou a menina chega aos 4, as chances de ganhar um lar caem pela metade (9,96%). Mas as menores faixas de interesse se concentram entre os 6 e os 17 anos: 2,99% e 0,06%, respectivamente.

Também há uma preferência majoritária por crianças brancas. Mais de 90% dos pais em potencial querem um filho nesse perfil. Já os dispostos a acolher um negro representam quase um terço disso: 33,38%. Desejos bem distantes da realidade dos jovens à espera de uma família. Negros e pardos aptos à adoção são 3.146 (64%), enquanto o total de brancos é de 1.656 (34%). “Não conseguimos casar os números. Esbarramos no preconceito”, constata Alice.

A intenção dos pais pretendentes revela uma cultura que repudia também o sexo masculino. “A maioria quer uma menina, porque acha que é mais fácil de criar”, argumenta a diretora jurídica da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (Angaad), Silvana do Monte Moreira.

As preferências vêm da falta de informação sobre o universo infantojuvenil, diz a coordenadora técnica da Vara Cível da Infância e Juventude de Belo Horizonte, Rosilene Miranda. Ela avalia que os pais acreditam ser mais simples resolver, por exemplo, o desvio de caráter de um recém-nascido do que o de um garoto de 10 anos. “Os adultos têm medo das experiências já vividas pela criança”.

Silvana, da Angaad, ressalta que a educação de um menor sempre será um desafio. “A gente não diz que adotar significa entrar em um mundo cor-de-rosa. Mas mostramos como é bom enfrentar isso tudo para formar uma família com base no amor e no afeto”, diz a diretora, também mãe adotiva.

Amor vence a resistência dos pai
Moradores de São João del-Rei, no Campo das Vertentes, Weber Neder Issa, de 58 anos, e Raquel, de 38, também tinham preferências quando resolveram adotar um filho. “No começo, a gente queria um recém-nascido”, conta Raquel.

Mas depois de conhecer, pela internet, experiências bem-sucedidas de outras famílias e de participar de uma palestra sobre o assunto, o casal mudou de ideia. Conheceu C. e decidiu adotá-la.

Na época, a menina tinha 10 anos e vivia em um abrigo a 100 quilômetros de São João del-Rei. “Durante o estágio de convivência, todo fim de semana a gente fazia esse trajeto duas vezes, para levá-la e buscá-la”, recorda Raquel.

A mãe – que se deleita em falar das qualidades da filha, alegre e comunicativa – desmistifica a crença de que uma criança mais velha não se apega facilmente à família, por conta de experiências antigas. “Ela me abraça, beija. E até imita o jeito do Weber falar”, diz Raquel, que não viu entraves à maternidade na idade “avançada” de C., na cor parda da pele, na gagueira ou na leve paralisia facial que a menina tem.

Entre crianças e adolescentes aptos à adoção no Brasil, 1.090 apresentam problemas de saúde. O que não deveria ser um fator limitante para os futuros pais, diz a advogada Eni Coimbra, de 60 anos. Para ela, quem quer ser pai ou mãe deve estar disposto a amar sem restrições. “Filho não é igual a sapato. Se me calça bem, eu levo. Se não, deixo no abrigo”, exemplifica.

Há três anos, Eni conheceu Wellington. O menino, então com 7 anos, nunca havia frequentado a escola, não tinha noções básicas de higiene e apresentava apenas 2% da visão do olho direito. Em um primeiro momento, Eni e o marido se comprometeram a cuidar das necessidades urgentes da criança. “Mas após uma semana de convivência a gente já queria ficar com ele para sempre”, lembra. Hoje, o garoto estuda, recuperou 50% da visão e está a caminho de ter os dentes saudáveis.

Abrigos, o endereço dos "inadotáveis"
Meninos e meninas preteridos no cadastro de adoção são condenados a passar a vida dentro de instituições. Entretanto, a situação dos “inadotáveis” representa apenas uma parcela do problema do acolhimento em abrigos no Brasil, segundo o advogado especialista em direitos da criança Rubens Naves. Uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz, encomendada pela Secretaria de Direitos Humanos (SDH) do Governo federal e divulgada no início do ano, mostra que 36.929 crianças e adolescentes estão institucionalizados no país.

Nem todos terão como destino uma família substituta. O menor só é registrado no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) depois que a destituição de poder dos pais biológicos for concluída.

Mas devido à morosidade dos processos judiciais e à falta de qualificação dos profissionais dos abrigos, esses jovens estão fadados a viver longe de um lar, explica a presidente da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (Angaad), Bárbara Toledo.

“Há crianças que não recebem qualquer visita nos abrigos, mas também não têm possibilidade de sair de lá. Mesmo assim, em muitos casos, o processo de destituição do poder familiar nem começou”, alerta.

Segundo Bárbara, cabe aos gestores das casas-lares e aos juristas da varas cíveis da Infância e Juventude tentar acelerar esse trâmite. A agilidade evitaria que as crianças “envelheçam”, o que diminui as chances de adoção.

Mas o encaminhamento para uma nova família é a última alternativa prevista tanto na Lei Nacional de Adoção, sancionada em 2009, quanto no Estatuto da Criança e Adolescente (ECA). Os dois textos consideram ideal a permanência do menor com os parentes – se não for possível com os pais, tentativas devem ser feitas com avós, tios e primos. Apenas se o retorno à família biológica não der certo é que o pequeno deve ser preparado para adoção.

A lei de 2009 também determina que o tempo de institucionalização não deve exceder dois anos, salvo exceções. E que a cada seis meses a situação do abrigado seja reavaliada.

O objetivo é fazer com que a permanência nos abrigos seja, de fato, provisória. “O tempo da criança é outro, porque esses menores não podem esperar. Doem muito as sequelas do abandono e a sensação de não pertencer a ninguém”, analisa a coordenadora da Política de Convivência Familiar e Comunitária da SDH, Alice Bittencourt.

Mas, aos poucos, ações começam a acontecer para dar a esses menores chances de uma nova vida. Desde 2009, uma força-tarefa tenta resolver a situação de 4.730 mineiros institucionalizados. Em dois anos, o número de abrigados caiu para 3.004. “Do total, 1.478 voltaram para as famílias e 248 foram destinados à adoção”, diz Eliane Quaresma, coordenadora da Política Estadual Pró-Criança e Adolescente.

Grupos de apoio facilitam adoção e convivência
Como leis não mudam uma cultura de imediato, agentes do governo, membros de ONGs e da sociedade civil se mobilizam para buscar alternativas para crianças e adolescentes que estão à espera de uma família.

Duas medidas a longo prazo são sugeridas por especialistas: a conscientização dos pais pretendentes nas Varas da Infância e Juventude e a participação deles em grupos de apoio à adoção.

Outra solução seria o apadrinhamento, quando adultos se tornam “responsáveis” pelos jovens abrigados e convivem com eles em determinadas situações. Geralmente, durante fins de semana, feriados e datas comemorativas.

No Brasil, existem mais de cem grupos de adoção, segundo a Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (Angaad). O Adote Legal, em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, reúne, uma vez por mês, 30 pessoas interessadas em adotar um filho ou que já o fizeram. Nos encontros, são debatidos temas relacionados ao processo judicial e ao relacionamento com os menores.

Felicidade junto a irmãos de pele parda
A professora Débora Cortezzi, de 39 anos, é uma das diretoras do Adote Legal. Mãe de Henrique, de 11 anos, e de Carlos, de 9, ela conta que junto com o marido, Marcos Luiz Costa, de 46, remou contra a maré: levou para casa irmãos, algo repudiado por 81,93% dos pais pretendentes cadastrados no CNJ.

Na época, o garoto mais velho estava com 5 anos. “Nem tenho mais vontade de ter um filho biológico. Não mudaria em nada minha família”, afirma a professora, mãe de meninos de pele parda.

A Secretaria de Direitos Humanos pretende montar um protocolo nacional com parâmetros mínimos para os grupos de adoção, como temas a serem tratados nas reuniões. “Os pais precisam conhecer a realidade que temos”, diz Alice Bittencourt. Quem quer uma criança branca, recém-nascida e sem problemas de saúde terá que esperar, em média, de quatro a seis anos por ela.

Diretora jurídica da Angaad, Silvana do Monte Moreira reforça a necessidade de uma mudança cultural. “Antes, a adoção servia para dar um filho a quem não tinha condições biológicas de gerar o seu. Hoje, a ideia é dar uma família à criança que dela realmente necessite”.

Padrinhos por vocação
Quando chega o fim de semana, Laura, de 16 anos, se prepara para passar algumas horas longe do abrigo, na companhia da professora Gislene Barbosa, de 45 anos. Há seis anos, Gislene participa do programa de apadrinhamento do Centro de Voluntariado de Apoio ao Menor (Cevam). A iniciativa consiste em proporcionar um convívio familiar esporádico para crianças e adolescentes entre 4 e 17 anos.

Enquanto os menores não podem ser acolhidos definitivamente em uma família, o apadrinhamento desponta como uma solução, diz a coordenadora técnica da Vara Cível da Infância e Juventude de Belo Horizonte, Rosilene Miranda. A convivência cumpre a função de trazer uma espécie de “exemplo” do adulto para o jovem. E proporciona um momento de individualidade dele. “No abrigo, tudo é de todo mundo. Mas a criança ou adolescente precisa ter algo só seu para construir a própria identidade”.

Sensibilizadas com a realidade desses “inadotáveis”, a juíza federal Vânila de Moraes e duas amigas fundaram a Associação Alegria, há seis anos, na tentativa de dar um lar a seis meninas. Hoje, as adolescentes entre 16 e 18 anos se consideram irmãs. Estudam em escolas diferentes, têm objetos pessoais e dividem o serviço da casa. “É como uma república”, diz Vânila.

Uma das moradoras é Tatiane Maria de Oliveira, de 18 anos. Ela cursa o 3º ano do Ensino Médio, trabalha desde os 16 anos e sonha em se mudar para a Inglaterra. Também se considera mais feliz do que muitas meninas da sua idade. “Com certeza sou mais. Muita gente tem uma vida mais difícil que a minha”. 

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