Ideias do Milênio

Os mulçumanos precisam mudar, o islamismo não

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9 de setembro de 2011, 12h28

Globo News
Entrevista de Tariq Ramadan, doutor em Teologia e professor da Universidade de Oxford, considerado uma das 50 pessoas mais influentes do mundo pela revista americana Foreign Policy, ao jornalista Silio Boccanera para o programa Milênio, da Globo News, transmitido em 29 de agosto. A entrevista faz parte de uma série que marca os 10 anos dos ataques terroristas de 11 de setembro. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça; 5h30 de quarta; e 7h05 de domingo. Leia, a seguir, a transcrição da entrevista:

1,3 bilhões de muçulmanos se espalham pelo mundo, a maior parte em países onde são maioria. Do mundo árabe à Indonésia, do Paquistão à Malásia e ao Afeganistão. Vivem em minoria nas regiões de tradição cristã como a Europa, onde são quase 20 milhões, Estados Unidos onde somam 10 milhões, e se encontram ainda em outras partes do mundo, inclusive no Brasil. Variam na maneira de cultuar a religião fundada pelo profeta Maomé no século VII. Interpretam o seu livro sagrado, o Corão, de formas tão diversas quanto um protestante escocês e um ortodoxo russo fazem com a Bíblia. Existem muçulmanos que leem o Corão como um tratado jurídico ou a Constituição de um país, a ser obedecida em cada cláusula, sem levar em conta a época ou as circunstâncias em que foi escrito. Mais minoritários ainda são os islamitas, os que fazem uso político do Islã. Destes grupos extremistas saem os Osama Bin Laden, versão atual dos torquemadas da inquisição, cristãos que se autoproclamavam donos da verdade religiosa e queimavam supostos infiéis na fogueira. Sob ataque como um todo por causa da ação extremista de uns poucos, o Islã prossegue em missão de se explicar. Uma das vozes respeitadas nessa tarefa é a de Tariq Ramadan, nascido na Suíça, onde seu pai egípcio buscou exílio político. Educado em Genebra e no Cairo, Ramadan obteve doutorado em Teologia, dá aulas e palestras pelo mundo. A revista americana Foreign Policy o inclui na lista das 50 pessoas mais influentes do mundo. O Milênio foi encontrá-lo para esta conversa.

Silio Boccanera — Gostaria que descrevesse sua visão da identidade muçulmana não só em países de maioria muçulmana, mas também no Ocidente. Os muçulmanos se identificam, por exemplo, em 1º lugar, como muçulmanos e, só depois, como, digamos, britânicos, paquistaneses, argelinos ou suíço-egípcios? Que identidade eles sentem e é prioritária para eles?
Tariq Ramadan — Essa questão da identidade hoje, no Ocidente e nos países do Sul, como, por exemplo, Brasil e países africanos, está sendo discutida. Identidade é algo limitado para nós. Sempre perguntamos qual é a identidade primeira da pessoa. Isso é errado e provém de nossa obsessão de saber quem somos e quem não somos. Pergunta-se aos muçulmanos quem eles são em 1º lugar para colocá-los numa situação em que eles são o outro. Criam o outro com a definição de “nós”, ao perguntarem quem ele é. Você e eu temos múltiplas identidades. Quando eu encarno minha morte, sou muçulmano. É minha filosofia de vida. Eu acho que vou voltar para Deus. Mas, quando vou voltar, eu sou suíço, e essa vira minha identidade. Tudo depende do ambiente e do contexto. Não há uma resposta simplista. Os muçulmanos ocidentais se sentem tão britânicos, franceses ou até brasileiros quanto os outros conterrâneos.

Silio Boccanera — Nesse sentido, nós temos uma percepção deles. Estou fazendo uma comparação. Nos anos 1960, nos EUA durante o movimento pelos direitos civis, se perguntássemos a um negro se ele sentia que era negro ou americano, mesmo ele sendo os dois, ele dizia primeiro que era negro, depois, americano.
Tariq Ramadan — É aí que eu quero chegar. Naquela época, naquele contexto, eles lutavam pela negritude deles. Essa era a dimensão essencial. Eles eram negros, em oposição aos americanos que os discriminavam. Muitos jovens argelinos, após uma partida de futebol entre a França e a Argélia, se perguntados quem eles eram, eles diriam que eram argelinos, para mostrarem que não iriam aceitar que se impusesse a eles que eles eram franceses. É uma luta de forças contextualizada, mas isso não significa que eles não fossem franceses. Ao se afirmarem como argelinos, contestando você, eles demonstravam, por outro lado, que eram franceses. Às vezes, nós reduzimos a identidade das pessoas e quem nós somos. Eu diria que, hoje, uma das maiores dificuldades é não engolir isso nem cair nessa armadilha da identidade reducionista. Quando me perguntam sobre mim, eu repito que sou egípcio na memória, suíço na nacionalidade, muçulmano na religião, europeu na cultura e universalista nos princípios. Isso é importante. Não estou brincando. Em todos os países que eu visitei, inclusive o Brasil, eu conheci pessoas de criações diferentes, e ninguém pedia a elas que fossem cristãs para serem brasileiras ou que elas só falassem português. Elas eram de tudo.

Silio Boccanera — Não importava.
Tariq Ramadan — Exato.

Silio Boccanera — Vamos tomar a Turquia como exemplo, não como modelo, de um caminho possível. Considerando a Primavera Árabe e a morte de Osama Bin Laden, por outro lado, esses foram eventos chaves que aconteceram. Nós estamos indo em direção a uma época animadora?
Tariq Ramadan — Eu acho que sim. Nós estamos vivenciando e testemunhando hoje uma época interessante. As coisas estão mudando. Mesmo que tudo ainda seja imprevisível… Ninguém sabe prever se a Tunísia vai se tornar um país transparente e uma verdadeira democracia. O mesmo vale para o Egito. Enquanto falamos aqui, o exército ainda tem muito poder. Temos que ter cuidado para não sermos ingênuos. Os processos e os protestos em massa não foram controlados de início. Mas o resultado deles pode ser controlado de uma forma ou de outra. Eu ouvi atentamente o discurso do presidente Obama. Ele disse que vai apoiar o povo e que, depois de tudo, o FMI e o Banco Mundial vão ajudar. É possível haver independência política com dependência econômica, uma nova dependência. É importante que tenhamos cuidado. É por isso que eu digo que há sinais de que algo positivo pode ocorrer. Não só o Ocidente olha para os países de maioria muçulmana. Esses países também olham para o Ocidente e para eles mesmos. Precisamos de algo novo no processo. A morte de Osama Bin Laden foi mais importante para o Ocidente do que para os muçulmanos. Ele não era seguido pela maioria dessas pessoas. Ele estava à margem e era marginalizado, mas ele se tornou uma figura muito simbólica para o Ocidente. O que deveria ocorrer no Oriente Médio era que os países não só se libertassem de ditaduras, mas se relacionassem. Falta uma dinâmica entre os países do Sul.

Silio Boccanera — Você falou da importância da construção da democracia, de uma convivência com o islamismo. Os comentários sobre a falta de democracia nos países de maioria islâmica apontam para algo que eu li. Há 57 nações na Conferência Islâmica, mas nenhuma delas é uma democracia. O islamismo é fundado sobre a certeza. A democracia é fundada sobre a dúvida. A ideia de igualdade seria inaceitável para o islamismo, pois não crentes não podem ser iguais aos crentes. Você diria que democracia e islamismo são incompatíveis?Tariq Ramadan — Meu objetivo principal no nosso debate é dizer que não existe contradição entre islamismo e democracia. Os cinco princípios essenciais do sistema democrático são Estado de Direito, cidadania igual, direito universal de voto, prestação de contas e separação de poderes. Nada disso está em contradição com o islamismo. Mas os modelos históricos que existem, o brasileiro, o europeu, o americano, são diferentes, pois surgiram de diferentes experiências históricas, culturas e psicologias coletivas. Eu sou cidadão suíço. Nossa democracia é muito estranha e nosso país é muito pequeno. Isso veio de uma História específica. Vamos deixar o povo encontrar o seu modelo, sem abrir mão dos princípios que citei. Como muçulmano, digo que a democracia não é contra o islamismo. Eu diria hoje, como europeu, que preciso trabalhar para melhorar os processos democráticos no próprio Ocidente, pois eles não estão funcionando bem. Hoje, eu vejo populistas jogando com o medo das pessoas para vencerem as eleições. E eles estão vencendo! Na Suíça, o principal partido é um partido populista. Isso é muito perigoso para a democracia.

Silio Boccanera — Isso nos leva à questão das mulheres. Isso é o que gera as maiores críticas em relação ao islamismo, pois, até no Alcorão está escrito que as mulheres têm uma posição inferior. Você acha que o Alcorão põe as mulheres numa posição inferior ou é a prática que põe?
Tariq Ramadan — Nós temos dois problemas. Primeiro, quando lemos o Alcorão e as Tradições Proféticas, os dois textos que são as referências para os muçulmanos, no Alcorão, há versos que, se lidos literalmente, vão produzir discriminação. Interpretações reducionistas são feitas pelos literalistas, os salafistas, ou wahhabistas, como a mídia os chama. Os salafistas reduzem o texto ao seu significado literal. Isso é um problema. O segundo problema é muito diferente, é a projeção cultural. O islamismo, como o cristianismo, o judaísmo e os monoteísmos, veio da sociedade patriarcal. Portanto, há uma projeção cultural sobre o texto. A maioria dos leitores das fontes é homem. As fontes falam dos papéis das mulheres, não das mulheres por si só. O primeiro passo para um processo de liberação é não negarmos que, em países de maioria muçulmana e em comunidades muçulmanas, há muita discriminação contra as mulheres. Isso é claro. Temos que nos perguntar por quê. A literatura islâmica sobre as mulheres se concentra muito no papel delas como mãe, esposa, filha e irmã, e não como mulher. Está faltando feminilidade na literatura. Temos que criar um novo discurso, falando de mulheres, feminilidade e autonomia da mulher. Se criarmos um novo discurso, passaremos para outro nível. Vamos falar do lenço na cabeça, que é um símbolo. Vou dizer algo simples. Ninguém pode obrigar que uma mulher o vista, pois é da fé dela, e ninguém pode obrigar que a mulher o tire, pois ela é livre.

Silio Boccanera — Quando os clérigos dizem que a mulher deve estar nessa posição, eles alegam que o Alcorão determina isso e que, portanto, elas têm que aceitar essa posição submissa.
Tariq Ramadan — É aí que precisamos de diálogo crítico intracomunitário. A leitura que as pessoas fazem dos textos é reducionista. Eles estão sendo literais, não estão contextualizando. Às vezes, as posições das pessoas vêm da cultura delas, não do Alcorão.

Silio Boccanera — Não vem da religião.
Tariq Ramadan —
Isso. A cultura árabe faz sua interpretação de trechos que criticam a cultura árabe. Hoje, em mesquitas de países de maioria muçulmana, mesmo no Ocidente, mulheres são impedidas de entrar ou de frequentar. Não é aceitável. Eu estou pronto para a aceitação da diversidade no islamismo, pois essa aceitação existe. Mas eu jamais aceitaria discriminação em nome da minha religião porque alguns interpretam os textos de modo a se darem direitos e os tirarem das mulheres.

Silio Boccanera — Você colocaria no mesmo contexto o uso da violência? As pessoas alegam que isso está no Alcorão. Isso tem a ver com o período em que ele foi escrito? A interpretação é reducionista demais?
Tariq Ramadan — É, sim. Eu não agrado a muitos muçulmanos, porque eu digo que, no Alcorão, há versos que falam de violência. Todas as religiões relatam violência. A questão não é evitar a violência, é o modo de falar dela. Há versos que falam de violência, mas temos que ser cuidadosos. Muitos dizem que devemos democratizar a leitura do Alcorão. Tudo bem, mas os jovens, depois de duas semanas lendo o Alcorão, vão ler o verso “Mate onde os encontrar”. Se o jovem interpretar isso do modo que ele quiser, devido à democratização da leitura do texto, por essa interpretação, ele vai achar que pode matar, pois está escrito. A maioria das pessoas mortas pelos extremistas violentos é muçulmana. Isso não é só não islâmico, mas anti-islâmico. Isso é contra a minha religião. Então, eu vou me levantar e dizer que não posso aceitar isso em nome de uma interpretação, pois essa interpretação está traindo a essência da nossa mensagem.

Silio Boccanera — Qual é o principal erro de interpretação do islamismo no Ocidente, por ignorância ou falta de familiaridade?
Tariq Ramadan — Muita gente atribui isso apenas à ignorância. Mas não é só ignorância. Leopold Weiss, um intelectual austríaco judeu, se converteu ao islamismo e escreveu um livro. Ele escreveu vários e traduziu o Alcorão. Ele diz que, quando tratamos com o Ocidente, nós lidamos com algo que, na psicanálise, nós chamamos de “trauma”. Ocorreu no passado, mas ainda tem efeitos. A relação entre o islamismo e o Ocidente não é problemático só hoje, tem sido há anos. A construção da cultura europeia foi feita, não totalmente, por meio da diferenciação dela dos muçulmanos.

Silio Boccanera — Certamente, nos países ibéricos, Portugal e Espanha.
Tariq Ramadan — Mas não só neles. Na França, o Iluminismo é europeu. As tradições sombrias e velhas são do outro. A Europa foi construída e formada assim. Denis de Rougemont fala que, no amor, nós fomos muito influenciados pelo islamismo e que, agora, rejeitamos o islamismo, como o oposto do nosso conceito de amor. Você toma de alguém e o rejeita, pois não quer ser semelhante a ele. Isso vem de longe. Hoje, existem muito cidadão na Europa que não conhecem o islamismo, pois há muita ignorância. Mas, em relação aos intelectuais e aos políticos, não posso dizer isso. Alguns deles instrumentalizam a ignorância do povo para espalhar desconfiança e medo. Essa instrumentalização do medo que chamo de “ideologia do medo”, usa o medo do povo para criar, primeiro, uma ameaça e, depois, uma rejeição. Algo que é importante para mim, como cidadão europeu, como ocidental, é respeitar o medo dos meus concidadão, e rejeitar a instrumentalização dos políticos e intelectuais.

Silio Boccanera — Você diria que, nos últimos 10 anos, que coincidentemente se iniciam com o 11 de setembro — apesar de a pergunta não estar relacionada a isso, pois só chamou a atenção das pessoas para os muçulmanos no Ocidente, cuja presença não era percebida — esse processo de despertar e de educação, tanto da sociedade tradicional do Ocidente, do Ocidente judaico-cristão e dos muçulmanos, esse processo de integração e de adaptação a uma sociedade multicultural progrediu ou parou?
Tariq Ramadan — Nós vemos mais consciência. Esse é o impacto positivo de uma história muito triste.

Silio Boccanera — As pessoas abriram os olhos.
Tariq Ramadan — Exato. As pessoas entenderam que precisam se expressar e ser visíveis do modo certo, de modo distinto e ético, não só pelo modo como se vestem, mas com a presença delas. Eu acho que, nos últimos 30 anos, incluindo os últimos 10, houve uma revolução silenciosa, que está dando certo. Eu repito aos governos que eu não estou enganado e que não vou me deixar levar pela retórica de nacionalidade dos populistas em nível nacional, que ocorre em Paris, em Londres e em Washington. O que me desperta mais preocupação e interesse é o que ocorre na base popular. Nessa base, as coisas funcionam melhor do que se pensa.

Silio Boccanera — Com uma perspectiva histórica, é o 10º aniversário do 11 de setembro, o evento que fez as pessoas se voltarem para o islamismo radical e a violência associada a isso. Dez anos depois, essa situação melhorou? A radicalização está avançando na direção certa, ou seja, está se dissolvendo em vez de crescer?
Tariq Ramadan — Em nossas discussões, no caso dos países de maioria muçulmana e no Oriente Médio, eu não diria que isso está acabando, pois tudo pode acontecer, mas isso não vai mais ser tão problemático. Se o Ocidente estiver pronto para conversar, mesmo que não goste e tenha que conversar com islâmicos moderados, isso vai ser necessário. Quanto mais consistentes formos com nossos valores no Ocidente, menos radicalização vai haver em países de maioria muçulmana. É uma questão de equiparação e consistência. Ao mesmo tempo, o importante para os muçulmanos daqui é serem críticos em relação ao que se faz em nome do islamismo, ou seja, a promoção da violência; sem abrirmos mão dos princípios. Lutar pela justiça de modo não violento é o futuro. O apoio do movimento global aos palestinos e ao movimento não violento deles é importante para mim. É dando esse apoio que podemos ganhar nossa própria luta, assim como a mente e o coração das pessoas, que vão ver que o importante não é o poder e matança, mas dignidade, autoconfiança e envolvimento. Há uma narrativa e uma racionalidade que vêm dos muçulmanos de todo o mundo, inclusive do Ocidente, que estão mais focados nisso. Isso é positivo. Mas não podemos evitar encarar nossa própria responsabilidade. No Ocidente, pois temos essa responsabilidade, não podemos falar em liberdade se apoiarmos ditadores. Não podemos falar de democracia, dos belos valores dela nem de esclarecimento, ao lidarmos com pessoas ruins, que matam inocentes. Essa é a nossa consistência no Ocidente. Vamos esperar, pois é importante, se quisermos ir além da radicalização. Algo de que precisamos hoje é ir além das culturas e das religiões, é estabelecer relações entre os países do Sul. Eu tenho dito isso há anos. Eu tenho visitado países sul-americanos e asiáticos. A África, a América do Sul e a Ásia precisam entender que nosso futuro está em nossas relações, Se não quisermos ser alienados por um centro equivocado seja ele nos EUA ou na China. Precisamos saber o que queremos alcançar no futuro.

Silio Boccanera — Tariq Ramadan, muito obrigado.

Extra
Silio Boccanera — Criticam o islamismo por não ter passado pelo Iluminismo. O cristianismo teve que passar por uma limpeza. O Iluminismo trouxe isso. É justo dizer que, por o islamismo não ter passado pelo Iluminismo, falta alguma coisa nele?
Tariq Ramadan —
Essa é uma discussão importante no diálogo das civilizações. Não podemos tomar a história ocidental ou europeia como o modelo para as outras. Na Idade Média, o cristianismo teve que passar por esse processo para a autoridade da Igreja poder superar a racionalidade. Isso não ocorreu na tradição islâmica. Nos séculos IX, X e XI, os muçulmanos, em nome da religião deles, promoveram a racionalidade, a filosofia e as ciências. Os muçulmanos precisam, hoje, como digo em meu livro, Radical Reform, não é uma reforma igual à reforma cristã. A propósito, a reforma cristã não foi tão positiva quanto se diz hoje. Houve muita luta e protestos.

Silio Boccanera — E violência.
Tariq Ramadan — Às vezes, as pessoas dizem que sou como Lutero. Lutero era fundamentalista e bitolado ao escrever. Nós precisamos reformar as mentes muçulmanas. Temos problemas com isso. Mas não comparo isso à experiência histórica cristã. Eu retomaria a história islâmica e tentaria achar as chaves e as articulações, pois temos ferramentas dentro da tradição islâmica que nos ajudariam a ir além. Estou trabalhando para aplicar a ética islâmica. Precisamos reformar as mentes muçulmanas. O islamismo não precisa de uma reforma, mas as mentes muçulmanas sim, para reinterpretar os textos.

Silio Boccanera — Há um evento que está atraindo a atenção mundial no presente, a Primavera Árabe. Os muçulmanos estão orgulhosos do que está acontecendo? Você sente isso?
Tariq Ramadan — Sinto, sim. Pelo menos, é importante para a união do nosso povo. O mundo árabe pensava que existiam apenas duas opções para escolher, ou os ditadores ou os islâmicos radicais. Agora, houve um protesto em massa de pessoas querendo liberdade e dignidade, e se opondo à corrupção e às ditaduras. Essas pessoas estão vindo. Tenho repetido, desde o início, que essa não é uma revolução nem uma conscientização islâmicos. Há pessoas que não têm ligações com o islamismo político. Elas não são islâmicas, mas são muçulmanas. Ou seja, veja essas pessoas no Egito, na Tunísia, na Líbia, na Síria, no Bahrein, clamando por justiça e liberdade. A maioria delas era muçulmana, mas havia coptas também. Se você perguntar a elas o que são em primeiro lugar, elas vão dizer que são egípcias e que querem liberdade.

Silio Boccanera — É a identidade delas nesse momento.
Tariq Ramadan — Porque o alvo delas é o ditador. Elas foram muito inteligentes e espertas em não atacar o Ocidente nem a hiperpotência americana. O que elas não queriam era o ditador e o regime. Foi uma posição política importante desde o início. Se você perguntasse qual era a identidade delas, elas diriam que eram egípcias. Tanto coptas quanto muçulmanos responderiam isso.

Silio Boccanera — Como você apontou, os grupos e partidos islâmicos não tiveram um papel importante.
Tariq Ramadan — Não. Eles foram pegos de surpresa. É necessário manter em mente, para entender o que está acontecendo, que a Irmandade Muçulmana, no Egito; o Nahad, na Tunísia; e todos os islâmicos do Iêmen, da Síria e do Bahrein não eram as forças liderantes por trás dos protestos. Na verdade, eles queriam achar um lugar para eles. Eles se revelaram no processo, nesse choque de gerações, que é bem claro, entre a geração mais velha de islâmicos e a geração mais jovem, ligada a outros jovens, atraída, às vezes, pelo modelo islâmico turco, que é o que os jovens almejam, baseados nas conquistas dele. Não é uma compreensão limitada das palavras tradicionais da Sharia nem das referências políticas do islamismo. Precisamos estudar mais o que está havendo.

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