Soberania do Estado

Suprema Corte alemã aprova ajuda à Grécia

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

8 de setembro de 2011, 13h03

O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha[1] tomou uma decisão histórica, cujos efeitos podem abalar a manutenção do euro como moeda comum da União Europeia ou, quando menos, interromper o fluxo da ajuda financeira alemã aos países com alto nível de endividamento, como é o caso da Grécia. Essa ajuda é denominada de bailout, que se dá, grosso modo, pela aquisição de ações, títulos da dívida e outros papéis de um grande devedor, em situação de dificuldade, a fim de evitar sua falência ou que venha a sucumbir à ação especulativa. É uma maneira disfarçada de realizar aportes financeiros a uma empresa (ou um Estado, como ocorre no caso europeu), sem que haja a necessidade de oferta de garantias típicas de um empréstimo típico.

Foi precisamente em razão do aporte financeiro do governo da República Federal da Alemanha à República Helvética que um grupo de renomados professores,[2] que há anos militam na causa antieuropeia, ingressou com reclamações constitucionais[3] contra a legislação alemã e europeia editadas para tentar resolver a atual crise econômica e o problema de dívida na área do euro.

Segundo os reclamantes, o Tratado de Maastricht, de 7 de fevereiro de 1992, estabelecia uma política monetária comum aos Estados signatários, de modo a que se introduzisse, de modo gradual, uma união monetária europeia, a qual, em último nível, seria objeto de transferência à administração comum de um sistema europeu de bancos centrais. Ainda conforme o resumo da inicial, feito no relatório do acórdão, a Grécia, que é Estado-membro da União desde 2001, não agiu com lealdade em relação aos demais aderentes ao Tratado de Maastricht, o que é comprovável pela correção, em 2009, de seu déficit de 5% para 13% do Produto Interno Bruto (PIB), com aumento da dívida pública a patamar de 125% do PIB, no ano de 2010. Em 11 de fevereiro de 2010, reunidos em Bruxelas, os chefes de Estado e de Governo decidiram adotar medidas para assegurar a estabilidade monetária europeia. Em razão, porém, da agitação dos mercados financeiros, que não confiavam na implementação das ações recessivas pelo governo grego em ordem a reduzir drasticamente a dívida pública, no dia 11 de abril de 2010, os ministros da Fazenda europeus firmaram um acordo com o objetivo de permitir empréstimos bilaterais de Estados da zona do euro, o que serviria de fundamento à ajuda alemã aos gregos.

A participação alemã foi a maior de entre todos os Estados da zona do euro. E, a fim de lhe conferir suporte jurídico, o Bundestag [Congresso Nacional] aprovou, em 7 de maio de 2010, a Lei de Estabilidade Financeira da União Monetária, conhecida pelo acrônimo WFStG[4].

As reclamações constitucionais voltaram-se contra vários dispositivos da WFStG, por ofensa a normas da Lei Fundamental (Grundgesetz — GG, como será referida no texto), como os artigos 38, 1; 14, 1 e 2º, 1. O ponto central das regras impugnadas estava na autorização a que o Ministério Federal das Finanças assumisse garantias até o limite total de 22,4 bilhões de euros para empréstimos à República Helênica, ditos na própria lei como necessárias para manter a solvência da Grécia.[5] A lei ressalvava que, antes da aquisição das garantias, o Comitê Financeiro do Bundestag deveria ser notificado, exceto se for necessária a atuação do Ministério por razões imperativas.

Os reclamantes centraram sua argumentação na ofensa ao artigo 38, 1, GG. Em seus termos, os princípios do Estado Social, as regras de finanças públicas e os limites constitucionais de endividamento foram atingidos diretamente. Em última análise, o direito de propriedade teria sido também ameaçado (artigo 14, GG).

Decisão salomônica
A análise do caso pelo Tribunal Constitucional alemão, divulgada nesta quarta-feira (7/9), pode ser considerada um típico exemplo de “decisão salomônica”. Aparentemente, os juízes da Corte alemã não desejaram ter sobre suas cabeças a responsabilidade por inviabilizar (por completo) o programa de salvação financeira dos países deficitários da zona do euro. Por outro lado, eles não facilitaram a vida dos que defendem a ajuda como única forma de se conservar a unidade monetária: o acórdão rejeitou as reclamações, mas o fez com diversas ressalvas e pontificou que o Parlamento não pode ser abstraído do processo de autorização dos empréstimos-garantias, muito menos delegar essa função a órgãos alheios à soberania alemã.

Na prática, o tribunal validou os procedimentos já adotados, mas limitou os próximos aportes à participação prévia do Legislativo. Dada a natureza extremamente sofisticada desses mecanismos, tornou-se inviável a concepção de que a ajuda será concedida por efeito de um ato discricionário dos comitês europeus de ministros de Fazenda ou pelos colegiados financeiros ad hoc. Para os professores-reclamantes, que há anos propõem reclamações contra o processo de integração europeia e seus atos normativos, não deixou de ser uma grande vitória.

Adiantado o dispositivo do julgamento, interessa agora examinar alguns de seus fundamentos, especialmente naquilo que interessa à realidade jurídico-constitucional brasileira.

Inicialmente, o tribunal considerou que a WFStG poderia ter sua constitucionalidade apreciada, na condição de ato de autoridade pública alemã.

O artigo 38, GG, segundo a decisão, assegura o direito fundamental dos cidadãos a participarem do processo de escolha dos representantes ao Parlamento alemão. Esse ato não se restringe ao mero exercício do direito de voto, mas se dilata para que se assegure um governo efetivamente baseado na vontade do povo. Assim, o artigo 38, GG, nos termos do acórdão, é uma garantia contra a perda de substância da autoridade constitucional do Bundestag, que não pode transferir suas funções e competências, permanentemente ou por completo, a órgãos supranacionais.

Ademais, a tomada de decisão sobre as receitas e despesas, no âmbito orçamentário nacional, encontra-se no cerne das prerrogativas parlamentares em uma democracia. O ato de votar seria desvalorizado se o Parlamento alemão fosse impedido de controlar atos governamentais relativos ao emprego das despesas e responsabilidades orçamentárias.

Em seguida, porém, a despeito das observações até então formuladas, o Tribunal Constitucional entende que não houve um esvaziamento da competência constitucional do Bundestag e, com isso, não se ofendeu o princípio democrático. Essa aparente contradição argumentativa explica-se por ter sido a decisão extremamente difícil e com grande dissenso entre os juízes constitucionais em sua redação final. Parece ter havido uma solução de compromisso para não destruir o esforço europeu de salvamento do euro, mas sem se deixar no texto uma série de advertências.

A corte considerou que, ao menos até agora, não há como se censurar as operações realizadas com base na lei de estabilização monetária. Teria havido uma avaliação parlamentar em relação aos riscos e ao montante das garantias. Assim, a legislação impugnada, em princípio, não apresenta elementos capazes de permitir uma intervenção do Tribunal Constitucional.

Em síntese, preservou-se a manifestação do Bundestag, que deve exercer seu controle orçamentário, e, ainda, se rejeitaram as reclamações, o que, em tese, implica a preservação do marco normativo de estabilização monetária do euro.

A decisão pode ser vista como conservadora das prerrogativas do Parlamento alemão e, mais que tudo, da manutenção de parcelas do poder nacional em face de acordos internacionais.

Para além do problema factual do impacto desse acórdão na situação do euro e da crise econômica que o mundo volta a experimentar de modo agudo, essa decisão tem impacto na própria definição dos limites da delegação de poderes dos Estados-nacionais às instituições comunitárias. E, em larga medida, ela rompe com a trajetória do Tribunal Constitucional, especialmente após o Tratado de Maastricht, que deu amplo suporte às instituições jurídicas da União Europeia. Desta vez, os eurocéticos alemães tiveram algum sucesso e uma nova visão sobre as sutis relações entre soberania e união comunitária possa advir desse acórdão.


[1] Bundesverfassungsgericht.

[2] Prof. Dr. Wilhelm Hankel, Prof. Dr. Wilhelm Nölling, Prof. Dr. Karl Albrecht Schachtschneider, Prof. Dr. Dr. h.c. Dieter Spethmann e Prof. Dr. Dr. h.c. Joachim Starbatty, todos representados pelo Prof. Dr. Karl Albrecht Schachtschneider, que possui intensa atuação política e histórica contra a União Europeia e sua constituição juridica.

[3] Verfassungsbeschwerden.

[4] Währungsunion-Finanzstabilitätsgesetz.

[5] Art. 7o, WFStG.

Autores

  • é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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