EMBARGOS CULTURAIS

Freud e a teoria psicanalítica para a hermenêutica

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

4 de setembro de 2011, 7h04

No momento, estou satisfeito com a obtenção dessa parcela de novos conhecimentos. Se adotarmos o método de interpretação de sonhos que aqui indiquei, verificaremos que os sonhos têm mesmo um sentido e estão longe de constituir a expressão de uma atividade fragmentária do cérebro, como têm alegado as autoridades. Quando o trabalho de interpretação se conclui, percebemos que o sonho é a realização de um desejo

A hermenêutica é a ciência (ou o discurso) da interpretação das várias circunstâncias, instâncias e códigos da vida. A disciplina (Foucault impugnaria a afirmativa) radicaria mais precisamente nos dilemas enfrentados por alguns tradutores dos textos bíblicos, a exemplo, principalmente, de Martinho Lutero1. A Igreja reformada dependia de várias compreensões politicas de excertos das Escrituras. Precisava-se fixar um Estado laico, que admitiria inclusive a usura, cuja institucionalização era convergente ao desenvolvimento do ethos capitalista, do qual dependia o Estado que então se organizava2.

Max Weber é o grande porta-voz desta leitura institucionalista, por exemplo, da tradição calvinista. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo é texto que, por excelência, define a premissa: as instituições importam.

Hermenêutica e tradução exprimem grandezas muito parecidas: traduzir é interpretar; e a recíproca é verdadeira. Umberto Eco insistiu nas fragilidades dos processos de tradução.

Num contexto mais estritamente jurídico, a hermenêutica é também meio e fim de um processo de tradução. O legislador traduz em norma a vontade de um grupo de pressão que representa. O magistrado traduz em sentença sua percepção de determinada contenda, carregando-a com todas as idiossincrasias e tintas de uma pré-compreensão de mundo. O advogado traduz em argumento as pretensões de seu cliente. Os órgãos de controle traduzem em ação uma moralidade administrativa presentemente dominante.

Por outro lado, não é esse o panorama que se tem no debate brasileiro. Os modelos de hermenêutica existentes no pensamento jurídico brasileiro podem ser classificados em três grupos relativamente distintos, assumindo-se, no entanto, os riscos decorrentes de procedimentos de simplificações e de omissões. Uma hermenêutica clássica, prioritariamente diretiva, dado que enuncia regras de interpretação, qualifica a obra de Carlos Maximiliano. Uma hermenêutica sistemática, com influências da filosofia analítica, centrada em problemas de antinomias e de hierarquização, informa o pensamento de Juarez Freitas, produzido sob influência de Eros Roberto Grau e de Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Uma hermenêutica filosófica, de marcante matiz linguístico, identifica o trabalho de Lenio Luiz Streck. 

As fontes que oxigenaram a obra de Carlos Maximiliano estão dispersas nos pensadores do liberalismo jurídico continental e em quantidade menos significativa na sociologia jurídica norte-americana. Maximiliano parece conhecer muito bem os autores que cita, de modo que seus enunciados hermenêuticos são substancializados por atraente honestidade intelectual. Montesquieu, François Geny, Rudolf Stammler, Edmund Picard, Marcel Planiol, Rudolf von Iehring, Hermann Kantarowicz e Roscoe Pound, entre tantos outros, transcendem as notas de rodapé e realmente dão os contornos conceituais aos problemas e soluções evidenciados pelo autor de Hermenêutica e Aplicação do Direito. Na mesma linha, os trabalhos de Alipio Silveira e mais recentemente Limongi França, João Batista Herkenhoff e Uadi Lammêgo Bulos.

Juarez Freitas incorporou à hermenêutica brasileira as reflexões de Norberto Bobbio (com quem não concorda totalmente), de Karl Larenz, de Claus-Wilhelm Canaris, de Niklas Luhmann, de Hans Kelsen, de Konrad Hesse, de Theodor Viehweg, entre outros, na promissora tarefa de plasmar um direito marcado pela coerência e pela abertura. Juarez Freitas também conhece autores norte-americanos de filosofia do direito, de vertente liberal, a exemplo de Ronald Dworkin e de John Rawls. Alexandre Pasqualini comentou e contribuiu para uma maior compreensão da obra de Juarez Freitas.

Lenio Luiz Streck incluiu na agenda dos temas hermenêuticos os problemas decorrentes da expansão do neoliberalismo. A diminuição do Estado gera uma nova formatação de um de seus produtos: o Direito. Por consequência, a interpretação do conteúdo normativo das relações inserem-se num novo mundo da vida, irreconhecível para o liberalismo burguês convencional. Ainda, Streck preocupou-se com o novo planisfério epistemológico determinado pelo giro linguístico da filosofia ocidental, refletindo a partir do criticismo habermasiano, aproximando-o da hermenêutica renovadora de Martin Heidegger e de Hans Gadamer. Estes dois filósofos alemães também foram estudados por Kelly Susane Alflen da Silva, que se ocupou com a hermenêutica ontológica, como proposta originariamente por Heidegger.

Em nenhum dos exemplos aqui indicados contemplou-se objetivamente a tese de que vontade do intérprete seja soberana. O que temos muitas vezes é uma tradição ingênua que sugere que o intérprete maneje recursos lógicos. No entanto, deve-se reconhecer, na senda do realismo jurídico norte-americano, que o intérprete interpreta o que quer, e como quer. Traduz essa vontade, porém, em linguagem que apresenta certo refinamento teórico que instrumentaliza e legitima o ato interpretativo. É este o tema do presente ensaio.

Nesse sentido, a hermenêutica jurídica se assemelha à teoria psicanalítica da interpretação dos sonhos, tema do presente estudo. Para Sigmund Freud, a atividade onírica nada mais seria do que a manifestação de um desejo. Com base nesta premissa entende-se que o conteúdo dos sonhos possa, no limite, revelar os desejos de quem sonhou. Convergências haveria assim entre uma teoria da interpretação jurídica e uma teoria da interpretação dos sonhos. Nesta última releva-se a vontade de quem sonha, que no sonho se revela. Naquela primeira, impõe-se a vontade do intérprete.

Com o propósito de demonstrar a tese aqui proposta exemplifico com o sonho da injeção de Irma, texto canônico no corpus literário freudiano.

A injeção de Irma é o relato de um sonho que Sigmund Freud teve de 23 para 24 de julho de 1895. O comentário sobre o interessante sonho está no vol. 1 do instigante A Interpretação dos Sonhos (Die Traumdeutung). A interpretação dos sonhos é na opinião de quem conviveu com Freud e o biografou o seu trabalho mais original; as conclusões fundamentais eram inteiramente novas e inéditas (…) isso se aplica tanto ao tema propriamente, o da estrutura do sonho, quanto a vários outros temas que surgem incidentalmente no livro3. O mais fino exemplo de teorização científica em Freud se encontra em A Interpretação dos Sonhos, segundo outro estudioso do formulador da teoria psicanalítica4.

Para outro biógrafo, o sonho da injeção de Irma é um sonho histórico5. E ainda, o sonho da injeção de Irma é provavelmente o mais famoso da história, depois dos sonhos do faraó interpretados por José6

Deve-se insistir também na qualidade dos escritos de Freud, e o fragmento do relato do sonho de Irma é um exemplo, confirmando-se a assertiva, no sentido de que a grandeza de Freud como escritor capacitou-o a granjear reconhecimento mundial não apenas como representante do espírito cosmopolita da velha Viena dos Habsburgo mas também como uma pessoa com notável compreensão das complexidades da alma humana7.

O fragmento relativo ao sonho de Irma é antecedido por um pequeno preâmbulo. A análise que Freud fez do próprio sonho é excerto seminal na teoria psicanalítica. Mostra-se como o passo essencial na concepção da importância dos sonhos, da análise da atividade onírica, e da percepção de que o sonho seja a realização de um desejo. 

Mais. Do ponto de vista epistemológico, o sonho da injeção de Irma é um auto- experimento que marca toda uma disciplina, um modo de pensar: Freud fixa metodologia, que vai acompanhá-lo, em seus passos essenciais. O sonho da injeção de Irma pode assinalar uma certidão de nascimento da psicanálise. O relato é documento fundante da teoria psicanalítica. Irma era uma jovem viúva, que sofria de ansiedade8.


Na conclusão da análise do sonho de Irma, Freud marcava uma pedra fundamental, testemunhando, e de certa forma adiantando a linha conceitual que vai seguir em trabalhos posteriores:

“ (…) se adotarmos o método da interpretação de sonhos que aqui indiquei, verificaremos que os sonhos têm mesmo um sentido e estão longe de constituir a expressão de uma atividade fragmentária do cérebro, como têm alegado as autoridades. Quando o trabalho de interpretação se conclui, percebemos que o sonho é a realização de um desejo”9.

Mais tarde, ao que consta, ao se referir à casa na qual tivera o famoso sonho, Freud teria sugerido que ali se gravasse uma plaqueta de mármore indicando-se que naquela casa o segredo dos sonhos fora por ele revelado. Naquela casa, ao que parece, um enigma havia sido desvendado. Freud tornava-se o Édipo de nossos tempos, aquele que resolveu enigmas esfíngicos. O preço, no entanto, foi caro, e o incesto, circunstância que tanto preocupou Freud, é a maldição que se abateu sobre Édipo. Mas desse mal Freud não teria padecido.

No preâmbulo, Freud observou que vinha tratando a uma jovem senhora que mantinha laços cordiais de amizade com ele e com sua família. Por isso, observava, a relação de amizade o perturbava, como perturbaria a qualquer outro médico. Teria havido uma interrupção no tratamento de Irma, quando Freud recebera a visita de outro médico, colega mais novo na profissão, que também estivera com a paciente. O médico teria observado que Irma estava bem, porém não totalmente curada. Freud reconheceu que se aborreceu com o tom das palavras do amigo. E justamente naquela noite Freud sonhou com circunstâncias vividas naquele momento, o que nos indica também que sonhos carregam muito dos resquícios do dia vivido. Freud relatou o sonho, do modo seguinte, que reproduzo, exatamente como colhido em tradução:

Um grande salão – numerosos convidados a quem estávamos recebendo. – Entre eles estava Irma. No mesmo instante, puxei-a de lado, como que para responder a sua carta e repreendê-la por não ter ainda aceitado minha “solução”. Disse-lhe: “Se você ainda sente dores, é realmente apenas por culpa sua. “Respondeu ela: “Ah! Se o senhor pudesse imaginar as dores que sinto agora na garganta, no estômago e no abdômen… – isto está me sufocando.” – Fiquei alarmado e olhei para ela. Parecia pálida e inchada. Pensei comigo mesmo que, afinal de contas, devia estar deixando de perceber algum distúrbio orgânico. Levei-a até a janela e examinei-lhe a garganta, e ela deu mostras de resistências, como fazem as mulheres com dentaduras postiças. Pensei comigo mesmo que realmente não havia necessidade de ela fazer aquilo. – Em seguida, ela abriu a boca como devia e, no lado direito, descobri uma grande placa branca, em outro lugar, vi extensas crostas cinza-esbranquiçadas sobre algumas notáveis estruturas recurvadas, que tinham evidentemente por modelo os ossos turbinados do nariz. – Chamei imediatamente o Dr. M., e ele repetiu o exame e o confirmou… O Dr. M. tinha uma aparência muito diferente da habitual; estava muito pálido, claudicava e tinha o queixo escanhoado… Meu amigo Otto estava também agora de pé ao lado dela, e meu amigo Leopold a auscultava através do corpete e dizia: “Ela tem uma área surda bem embaixo, à esquerda. “Indicou também que parte da pele do ombro esquerdo estava infiltrada. (Notei isso, tal como ele fizera, apenas do vestido.)… M. disse: “Não há dúvida de que é uma infecção, mas não tem importância; sobrevirá uma disenteria, e a toxina será eliminada.” …Tivemos também pronta consciência da origem da infecção. Não muito antes, quando ela não estava se sentindo bem, meu amigo Otto lhe aplicara uma injeção de um preparado de propil, propilos… ácido propiônico… trimetilamina (e eu via diante de mim a fórmula desse preparado, impressa em grossos caracteres) … Injeções como essas não deveriam ser aplicadas de forma tão impensada… E, provavelmente, a seringa não estava limpa10.

Depois de relatar o inusitado sonho, Freud fez um interessante comentário, no que se refere a eventual vantagem que o sonho teria, num contexto fático de problemas pelos quais passava, e que certamente influenciaram o conteúdo do que fora sonhado, como acima já afirmado:

Esse sonho tem uma vantagem sobre muitos outros. Ficou logo claro quais os fatos do dia anterior que haviam fornecido seu ponto de partida. Meu preâmbulo torna isso evidente. A notícia que Otto me dera sobre o estado de Irma e o caso clínico que eu me empenhara em redigir até altas horas da noite haviam continuado a ocupar minha atividade mental mesmo depois de eu adormecer. Não obstante, ninguém que tivesse apenas lido o preâmbulo e o próprio conteúdo do sonho poderia ter a menor ideia do que este significava. Eu mesmo não fazia nenhuma ideia. Fiquei atônito com os sintomas de que Irma se queixou comigo no sonho, já que não eram os mesmos pelos quais eu a havia tratado. Sorri ante a ideia absurda de uma injeção de ácido propiônico e ante as reflexões consoladoras  do Dr. M. Em sua parte final, o sonho me pareceu mais obscuro e condensado do que no início. Para descobrir o sentido de tudo isso, foi necessário proceder a uma análise detalhada11.

Freud passou a interpretar sistematicamente o sonho, desde o imaginário evento do salão. Para Freud, o salão — no qual o sonho se passava – – decorria da proximidade do aniversário de sua mulher, para o qual havia previsão de uma festa, na qual receberiam convidados. Por outro lado, indicando certa falibilidade do método, Freud confessou que não conseguia definir exatamente os porquês que Irma sentia dores na garganta, abdômen e estômago. No que se refere ao fato de que ficara alarmado porque não percebera em Irma nenhuma doença orgânica Freud registrou:

Fiquei alarmado com a ideia de não haver percebido alguma doença orgânica. Isso, como bem se pode acreditar, constitui uma fonte perene de angústia para um especialista cuja clínica é quase que limitada a pacientes neuróticos e que tem o hábito de atribuir à histeria um grande número de sintomas que outros médicos tratam como orgânicos. Por outro lado, uma ligeira dúvida infiltrou-se em minha mente – vinda não sei de onde – no sentido de que meu receio não era inteiramente autêntico. Se as dores de Irma tivessem uma base orgânica, também nesse aspecto eu não poderia ser responsabilizado por sua cura; meu tratamento visava apenas a eliminar as dores histéricas. Ocorreu-me, de fato, que eu estava realmente desejando que tivesse havido um diagnóstico errado, pois, se assim fosse, a culpa por minha falta de êxito também estaria eliminada12.

Há vários significados nos sonhos, indicando que há motivos e causalidade  na chamada atividade onírica. Pode-se explicar (ou tentar aplicar) quase tudo que se recorda. Por isso, e ilustrativamente, ainda no caso do sonho aqui comentado, quanto à temerosa placa que viu na garganta de Irma, Freud justificou:

A placa branca fez-me recordar a difterite e tudo mais da amiga de Irma, mas também uma doença grave de minha filha mais velha, quase dois anos antes, e o susto que passei naqueles dias aflitivos. As crostas nos ossos turbinados fizeram-me recordar uma preocupação sobre meu próprio estado de saúde. Nessa época, eu vinha fazendo uso frequente da cocaína para reduzir algumas incômodas inchações nasais, e ficara sabendo alguns dias antes que uma das minhas pacientes, que seguira meu exemplo, desenvolvera uma extensa necrose da membrana mucosa nasal13.

No que se refere à presença do amigo, Freud também lançou um interessante registro que se caracteriza por uma recorrente associação de ideias:

Meu amigo Otto estava agora de pé ao lado da paciente, e meu amigo Leopold a examinava e indicava que havia uma área surda bem abaixo, à esquerda. Meu amigo Leopold era também médico e parente de Otto. Como ambos se haviam especializado no mesmo ramo da medicina, era seu destino competirem um com o outro, e frequentemente se traçavam comparações entre eles. Ambos haviam trabalhado como meus assistentes durante anos, quando eu ainda chefiava o departamento de neurologia para pacientes externos de um hospital infantil. Cenas como a representada no sonho muitas vezes ocorreram ali. Enquanto eu discutia o diagnóstico de um caso com Otto, Leopold examinava a criança mais uma vez e fazia alguma contribuição inesperada para nossa decisão. A diferença entre o caráter de ambos era como a existente entre o meirinho Bräsig e seu amigo Karl: um se destacava por sua rapidez, ao passo que o outro era lento, porém seguro. Se no sonho eu estabelecia um contraste entre Otto e o prudente Leopold, evidentemente o fazia em favor do segundo. A comparação era semelhante  à que eu fazia entre minha desobediente paciente Irma e sua amiga, que eu considerava mais sensata do que ela. Percebia então outra das linhas ao longo das quais se ramificava a cadeia de pensamentos no sonho: da criança doente para o hospital infantil.  – A área surda bem abaixo, à esquerda  parecia-me coincidir em todos os detalhes com um caso específico em que Leopold me impressionara por sua meticulosidade. Tive também uma ideia vaga sobre algo da ordem de uma afecção metastática, mas isso também pode ter sido uma referência à paciente que eu gostaria de ter em lugar de Irma. Até onde eu pudera julgar, ela havia produzido uma imitação de tuberculose14.


Freud insistiu no fato de que o sonho carregava uma grande ira dele para com o amigo, que recorrentemente apareceu no sonho de Irma. É o que se percebe, por exemplo, na avaliação feita a respeito à observação de que as injeções utilizadas no sonho não poderiam ser aplicadas de forma impensada:

Injeções como essas não deveriam ser aplicadas de forma tão impensada. Aqui, uma acusação de irreflexão era feita diretamente contra meu amigo Otto. Pareceu-me recordar ter pensado em qualquer coisa da mesma natureza naquela tarde, quando as palavras e a expressão dele pareceram demonstrar que estava tomando partido contra mim. Fora uma ideia mais ou menos assim: “Com que facilidade os pensamentos dele são influenciados! Com que descaso ele tira conclusões apressadas!” – Independentemente disso, essa frase no sonho lembrou-me mais uma vez meu amigo morto, que com tanta pressa recorrera a injeções de cocaína. Como já tive ocasião de dizer, eu nunca havia considerado a ideia de que a droga fosse ministrada por injeções. Notei também que, ao acusar Otto de irreflexão no manuseio de substâncias químicas, eu estava mais uma vez aludindo a história da infeliz Mathilde, que dera margem à mesma acusação contra mim. Aqui, eu estava evidentemente reunindo exemplos de minha conscienciosidade, mas também do inverso15.

A mesma carga de rancor pode ser captada no fragmento do sonho que indicava que a seringa utilizada em Irma não estava limpa:

E, provavelmente, a seringa não estava limpa. Essa era mais uma acusação conta Otto, porém derivada de uma fonte diferente. Ocorre que, na véspera, eu encontrara por acaso o filho de uma velhinha de oitenta e dois anos em que eu tinha de aplicar uma injeção de morfina duas vezes ao dia. No momento, ela se encontrava no campo e, disse-me o filho, estava sofrendo de flebite. Eu logo pensara que deveria ser uma infiltração provocada por uma seringa suja. Orgulhava-me do fato de, em dois anos, não haver causado uma única infiltração; empenhava-me constantemente em me certificar de que a seringa estava limpa. Em suma, eu era consciencioso. A flebite remeteu-me mais uma vez a minha mulher, que sofrera de trombose durante uma das vezes em que estava gravida, e então me vieram à lembrança três situações semelhantes, envolvendo minha esposa, Irma e a falecida Mathilde. A identidade dessas situações evidentemente me permitira, no sonho, substituir as três figuras entre si16

Para Freud, o sonho representava um estado de coisas específico, tal como ele desejara que fosse. Por isso, para Freud, seu conteúdo foi a realização de um desejo, e seu motivo foi um desejo17, ou de forma mais explicitada:

Acabo de concluir a interpretação do sonho. Enquanto a efetuava, tive certa dificuldade em manter à distância todas as ideias que estavam fadadas a ser provocadas pela comparação entre o conteúdo do sonho e os pensamentos ocultos por trás dele. Entrementes, compreendi o “sentido” do sonho. Tomei consciência de uma intenção posta em prática pelo sonho e que deveria ter sido meu motivo para sonhá-lo. O sonho realizou certos desejos provocados em mim pelos fatos da noite anterior ( a notícia que me foi dada por Otto e minha redação do caso clínico). Em outras palavras, a conclusão do sonho foi que eu não era responsável pela persistência das dores de Irma, mas sim Otto. De fato, Otto me aborrecera com suas observações sobre a cura incompleta de Irma, e o sonho me proporcionou minha vingança, devolvendo a reprimenda a ele. O sonho me eximiu da responsabilidade pelo estado de  Irma, mostrando que este se devia a outros fatores – e produziu toda uma série de razões. O sonho representou um estado de coisas específico, tal como eu desejaria que fosse18

É justamente este o núcleo do conceito freudiano da interpretação dos sonhos, vistos menos como uma circunstância aleatória e inevitável, e mais como a concreta realização de uma vontade, a exemplo da vontade que Freud tinha de acertar contas com o amigo, por conta de suas opiniões relativas ao tratamento de Irma. Na conclusão, Freud assentou:

Não tenho a pretensão de haver desvendado por completo o sentido desse sonho, nem de que sua interpretação esteja sem lacunas. Poderia dedicar muito mais tempo a ele, tirar dele outras informações e examinar novos problemas por ele levantados. Eu próprio conheço os pontos a partir dos quais outras linhas de raciocínio poderiam ser seguidas. Mas as considerações que surgem no caso de cada um de meus próprios sonhos me impedem de prosseguir em meu trabalho interpretativo. Se alguém se vir tentado a expressar uma condenação apressada de minha reticência, recomendo-lhe que faça a experiência de ser mais franco do que eu. No momento, estou satisfeito com a obtenção dessa parcela de novos conhecimentos. Se adotarmos o método de interpretação de sonhos que aqui indiquei, verificaremos que os sonhos têm mesmo um sentido e estão longe de constituir a expressão de uma atividade fragmentária do cérebro, como têm alegado as autoridades. Quando o trabalho de interpretação se conclui, percebemos que o sonho é a realização de um desejo19.

O relato do sonho de Irma marca a definição de que o sonho deva ser identificado como a realização de um desejo. Embora, bem entendido, (…) o sentido do sonho não é [seja] imediatamente acessível nem ao sonhador, nem ao intérprete20. Ainda, segundo Garcia-Roza,

A razão disso reside no fato de o sonho ser sempre uma forma disfarçada de realização de desejos e que nessa medida incide sobre ele uma censura cujo efeito é a deformação onírica. O sonho que recordamos após o despertar e que relatamos ao intérprete foi submetido a uma deformação cujo objetivo é proteger o sujeito do caráter ameaçador de seus desejos. O sonho recordado é, pois, um substituto deformado de uma coisa, de um conteúdo inconsciente, ao qual se pretende chegar através da interpretação21

O registro do sonho, e de sua interpretação, qualificam passo seminal na tradição cultural ocidental em geral e na tradição psicanalítica em especial. Para Sigmund Freud os sonhos descarregam desejos, realizando-os de alguma maneira. A constatação pode nos permitir, entre outros, que consigamos captar vontades mais inesperadas que carregamos, ainda que não reveladas, por sonhos também nunca antes sonhados.

De igual modo, uma teorização pragmática e realista da interpretação jurídica exige que percebamos a hermenêutica menos como uma operação desinteressada e ingênua, e mais como uma efetiva substancialização de uma vontade, que a expressão concreta de quem pretenda na interpretação do contrato ou da lei a obtenção de resultados práticos.

E porque o Direito não é lógica, é experiência, a teoria psicanalítica, enquanto dimensão privilegiada de experiências, oferece amplo campo de investigação e de referencial metodológico, que apreenderiam a vontade do intérprete da lei, especialmente quanto detenha legitimidade para fazê-lo.


1. Cf. Lutero, Martinho, Obras Selecionadas- O Programa da Reforma- Escritos de 1520. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2000. Tradução de Martin N. Dreher e outros.

2. Cf. Calvino, João, A Instituição da Religião Cristã, São Paulo: UNESP, 2008, Tradução de Carlos Eduardo de Oliveira.

3. Jones, Ernest, Vida e Obra de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1979, p. 348. Tradução de Marco Aurélio de Moura Mattos. 

4. Cf. Roazen, Paul, Freud- Political and Social Thought, New Brunswick: Transaction Publishers, 1999, p. 117.

5. Cf. Gay, Peter, Freud, a Life for Our Time, New York: Norton, 1988, p. 80.

6. Mezan, Renato, Freud, Pensador da Cultura, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 190.

7. Roazen, Paul, Como Freud Trabalhava, São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 13. Tradução de Carlos Eduardo Lins da Silva.

8. Isbiter, J. N., Freud, an Introduction to his Life and Work, Cambridge: Polity Press, 1985, p. 103.

9. Freud, Sigmund, A Interpretação dos Sonhos, Ed. Standard Brasileira, Volume IV, Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 155. 

10. Freud, Sigmund, cit. pp. 141-142.

11. Freud, Sigmund, cit, p. 142.

12. Freud, Sigmund, cit. p. 144.

13. Cf. Hopkins, James, The Interpretation of the Dreams ,in Neu, Jerome,  The Cambridge Companion to Freud, Cambridge: Cambridge Universtiy Press, 1996, p. 88.

14. Freud, Sigmund, cit. p. 146.

15. Freud, Sigmund, cit. p. 147.

16. Freud, Sigmund, cit. pp. 151-152.

17. Freud, Sigmund, cit., p. 152.

18. Freud, Sigmund, cit., p. 152.

19. Freud, Sigmund, cit. pp. 152-153.

20. Freud, Sigmund, cit., p. 155.

21. Garcia-Roza, Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 63.

22. Garcia-Roza, Luiz Alfredo, cit., loc.cit. 

BIBLIOGRAFIA

Calvino, João, A Instituição da Religião Cristã, São Paulo: UNESP, 2008, Tradução de Carlos Eduardo de Oliveira.

Freud, Sigmund, A Interpretação dos Sonhos, Ed. Standard Brasileira, Volume IV, Rio de Janeiro: Imago, 1996. 

Garcia-Roza, Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

Gay, Peter, Freud, a Life for Our Time, New York: Norton, 1988.

Hopkins, James, The Interpretation of the Dreams ,in Neu, Jerome,  The Cambridge Companion to Freud, Cambridge: Cambridge Universtiy Press, 1996.

Isbiter, J. N., Freud, an Introduction to his Life and Work, Cambridge: Polity Press, 1985.

Jones, Ernest, Vida e Obra de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1979. Tradução de Marco Aurélio de Moura Mattos. 

Lutero, Martinho, Obras Selecionadas- O Programa da Reforma- Escritos de 1520. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2000. Tradução de Martin N. Dreher e outros.

Mezan, Renato, Freud, Pensador da Cultura, São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Roazen, Paul, Como Freud Trabalhava, São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Tradução de Carlos Eduardo Lins da Silva.

Roazen, Paul, Freud- Political and Social Thought, New Brunswick: Transaction Publishers, 1999.

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