Embargos Culturais

A lição de Anísio Teixeira deve ser retomada no Brasil

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  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

30 de outubro de 2011, 7h54

Anísio Teixeira nasceu em Caetité, na Bahia, em 12 de julho de 1900. Fez seus estudos primários e secundários com os jesuítas[1]. Formou-se em Direito no Rio de Janeiro em 1922. Atuou como inspetor de ensino no Rio de Janeiro. Em 1924, de volta à Bahia, assumiu o cargo de diretor-geral de instrução. Durante três anos, de 1924 a 1927, revelou-se como incomparável administrador de problemas de ensino. Foi para os Estados Unidos em 1927; foi discípulo de John Dewey. Graduou-se como Master of Arts no Teacher´s College da Universidade de Columbia. Estudou nos Estados Unidos comissionado pelo Governo da Bahia[2].

Em 1931 começou a trabalhar no Ministério da Educação, então sediado no Rio de Janeiro. Em 1932 foi um dos signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação, ao lado, entre outros, de Fernando Azevedo. Pensavam um sistema educacional público, gratuito, obrigatório e leigo. Afastou-se da Igreja e sofreu dura campanha de Alceu Amoroso Lima.

Em 1935 foi nomeado Secretário-Geral de Instrução Pública no Distrito Federal. No mesmo ano, por causa do levante da Aliança Nacional Libertadora perdeu o cargo; foi substituído por Francisco Campos, de quem frequentemente discordava em assuntos pedagógicos.

Anísio passou por uma época de ostracismo. Tornou-se empresário na Bahia, atuando no campo de exportação de manganês. Em 1946 foi para a Europa, vivendo em Londres e Paris, onde trabalhou como conselheiro para a educação superior junto à UNESCO. Em 1947 voltou para o Brasil, onde foi Secretário de Educação no governo de Otávio Mangabeira, avô de Roberto Mangabeira Unger, filósofo brasileiro que leciona nos Estados Unidos.

Em 1951 Anísio Teixeira assumiu o Secretariado-Geral da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-Capes, junto ao Governo Federal. Posteriormente, foi diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos-INEP.

Em 1962 foi nomeado membro do Conselho Federal de Educação. No ano seguinte foi reitor interino da Universidade de Brasília, substituindo a Darci Ribeiro, que então assumiu o Gabinete Civil da Presidência da República, no Governo João Goulart.

Entre 1964 e 1966 Anísio Teixeira foi professor nos Estados Unidos, atuando em Nova Iorque e depois na Califórnia. Retornando ao Brasil foi consultor educacional na Fundação Getúlio Vargas. Em 1970 foi honrado como professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faleceu nesta cidade, em 11 de março de 1971.

Anísio não se atormentava com valores que se perdem, porquanto acreditava em valores que se adicionam. Em texto antigo, porém propício a nossos dias, o célebre educador brasileiro nos provocava:

No interessante período de transição que estamos vivendo, a cada nova crise que surge, surge uma nova inquietação entre os homens, preocupados com os valores que se vão perdendo nas idas e vindas da transformação social. Dispensável será dizer que há nessas transformações mais conquistas de novos, do que perda de antigos valores. Mas o homem é um animal de hábitos. E todas as vezes que lhe renovam as roupas e os pensamentos, ele julga que perdeu qualquer coisa… E, na sua necessidade de localizar os culpados dessas perdas, investe contra isso e contra aquilo. Mais do que tudo, costuma investir contra as escolas. Se há crise nas letras, se não se escreve como dantes, se a língua evolui e perde antigos sabores primitivos e ingênuos, é que as escolas já não são as mesmas e urge reformá-las. Se há crise do ‘espírito’, como hoje se diz, se os valores humanos, na sua perpétua transformação, conquistam novas formas, e velhas ilusões se vão desfazendo em troca de valores realistas e ásperos, – é que as escolas estão a falhar na sua finalidade espiritual… e urge reformá-las. Se há crise de costumes e de maneiras e o homem, longe de se comprazer na velha dissimulação habitual, reorganiza os seus valores com brutalidade quase, encarando a realidade de face, – é que as escolas á não formam o caráter… e urge reformá-las, ou antes, obrigá-las a voltar aos velhos ídolos e formas. É diante de uma dessas situações que nos encontramos presentemente (…) Assim fala, expressa ou tacitamente, o reacionário, que vive dentro de cada um de nós, repetindo a eterna linguagem dos reacionários de todos os tempos[3].

Quanto à Universidade de Brasília, por exemplo, onde Anísio atuou como reitor, o educador baiano, lembrou que esta nascera de um projeto em que colaborara a elite do magistério nacional, e o seu modelo refletia soluções a que chegara a consciência crítica desse magistério, no que tinha de mais novo, o seu corpo de cientistas físicos e sociais[4].

Anísio estudou com John Dewey nos Estados Unidos e lutou para instituir entre nós modelo de educação pragmática, chamada de Escola Nova. Ainda que dissolvida ao longo dos anos, apropriada e retrabalhada por outras propostas, uma educação jurídica de feição pragmática é estimulante. Porém, não se trata do que conhecemos no Brasil hoje.

O ensino jurídico brasileiro vai mal, vive crise de identidade, e precisa ser repensado. O ensino jurídico brasileiro contemporâneo, em alguns lugares e em algumas faculdades, bem entendido, é dimensionado pelo apego à literatura jurídica, que ordinariamente é reputada como corpo doutrinário. Aproxima-se de conteúdos epistemológicos teológicos, na forma e no fundo. Ao longo do curso, que dura cinco anos, o aluno é treinado para respeitar e idolatrar os grandes nomes de nossa literatura jurídica.

As aulas são de modelo coimbrão. Aulas expositivas possibilitam menos o debate e a fixação integradora dos conceitos do que a iconização de conteúdos vazios, indeterminados, e que variam ao sabor do autor predileto do professor. Há profusão de matérias propedêuticas, em nome da necessidade de se propiciar cultura humanista e visão libertadora do Direito.

Centra-se o estudo no culto ao Estado. Uma Teoria Geral dá o tom do que segue, e segue-se com a Constituição, e com miríade de princípios, que são tratados de modos assistemático e randômico. As provas, em geral, prestam-se para cobrar o que se decorou; não há notícias do uso generalizado de problemas da vida real: vivem-se questões que se esgotam em si mesmas, e que não transcendem à subtilidade e ao preciosismo. Multiplicam-se questões que invocam a natureza jurídica de determinados institutos, do contrato ao cadáver.

Idolatra-se o Direito Romano. Não se problematiza, e não se explica o de que Direito Romano que se trata, se a regra é da Monarquia, ou da República, ou dos Triunviratos, ou do Alto ou do Baixo Império, ou da Era Bizantina, ou do medievalismo de Bartolo de Sasoferrato, ou ainda da reconstrução da pandectistica germânica. Ou se é saudosismo das elites uspianas.

Estudam-se costumes e regras muito antigas, em desfavor de formulas mais contemporâneas. Desconhece-se o contrato de franquia, mas se insiste na preciosidade da anticrese.

O Direito Penal é aquele dos promotores. O meliante é o inimigo. O processo é estudado como fim, e não como meio. O Direito Tributário é pretexto para que se critique a carga fiscal. Não se lembra do gasto público, e as aulas de Direito Financeiro não passam da Lei de Responsabilidade Fiscal, com estações na impossibilidade de renúncia de créditos públicos.

A História do Direito é a vulgarização do lugar comum. Pula-se do Código de Hamurabi para as Leis de Sólon, para o Edito de Caracala, para a Magna Carta, para o Índice dos Livros Proibidos, para a Revolução Francesa, para Beccaria, para a ONU: e o programa inteiro foi dado.

O Direito Civil vale-se do método comparativo: coteja-se o texto de 1916 com o texto presente; fala-se de uma evolução, mas não se explica exatamente onde. Os autores antigos são reescritos.

Segue também uma original contribuição final, em forma de monografia. Uma banca geralmente pouco amistosa aponta os deslizes das normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas-ABNT, a regência inadequada do verbo dispor, bem como a silabada do latim macarrônico.

O curso se encerra. Na cerimônia de formatura fazem-se juras à Justiça, e segue o martírio dos exames para admissão na Ordem dos Advogados do Brasil. Começa tudo de novo.

Pode ser este o significado da educação jurídica no Brasil. Qual um Sísifo transportado para os trópicos começa-se, sempre, de novo, e do nada. Há sempre uma nova ideia, aguardando aplicação. Na maioria das vezes são novas ideias que não passam de roupagens novas para fórmulas antigas.

A lição de Anísio Teixeira deve ser retomada. O ensino jurídico brasileiro exige experimentalismo e audácia. Uma educação pragmática exige que saibamos para onde queremos ir. É que quando o barqueiro sabe o destino, até o vento ajuda.

[1] Informações biográficas sobre Anísio Teixeira colhidas em Coutinho, Amélia, Anísio Teixeira, verbete, in Alzira Alves de Abreu et alli, Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro Pós- 1930, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001 pp. 5697-5698.

[2] Cf. Luiz Viana Filho, Anísio Teixeira- A Polêmica da Educação, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 31.

[3] Anísio Teixeira, Pequena Introdução à Filosofia da Educação- A Escola Progressiva ou a Transformação da Escola, Rio de Janeiro: CP&A, 2000, pp. 14-15.

[4] Anísio Teixeira, Ensino Superior no Brasil- Análise e Interpretação de sua Evolução até 1968, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005, p. 225.

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