Segredos revelados

Projeto pode obrigar advogado a denunciar os clientes

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26 de outubro de 2011, 14h31

A Câmara de Deputados aprovou nesta terça-feira (25/10) o Projeto de Lei 3.443/2008 que endurece a lei de combate à lavagem de dinheiro no país. O texto, que segue agora para análise do Senado, poderá obrigar os advogados a comunicar ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) operações atípicas e suspeitas de seus clientes. Caso não o façam, a multa pode ser de até R$ 20 milhões.

A grande polêmica encontra-se no dispositivo do projeto que trata das pessoas sujeitas ao mecanismo de controle: "as pessoas físicas ou jurídicas que prestem, mesmo que eventualmente, serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza". Todas as pessoas que se enquadram neste rol, passariam a ter a obrigação de identificar seus clientes e manter cadastro atualizado, de acordo com as instruções estipuladas pelas das autoridades competentes; manter registro de toda transação em moeda nacional ou estrangeira, ou qualquer ativo passível de ser convertido em dinheiro, que ultrapassar limite fixado pela autoridade competente; além de atender, no prazo fixado, as requisições formuladas pelo Coaf.

Na última segunda-feira (24/10), o Conselho Federal da OAB aprovou parecer em que diz que a proposta viola as prerrogativas da advocacia, além de ser inconstitucional, uma vez que o artigo 133 da Constituição prevê: "O advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei".

Em voto que orientou a decisão do Conselho da OAB de reprovar a proposta, o conselheiro Guilherme Octávio Batochio disse que a garantia de sigilo profissional pode ser traduzida como garantia de cidadania, de direito de defesa. "A ser aprovada a pretendida alteração legislativa nos termos em que se propõe, nesse aspecto, e a própria ordem democrática se verá abalançada, na medida em que se estará a dizimar o sigilo profissional que é imanente à atividade do advogado, impondo, ao profissional da advocacia, que revele às autoridades públicas segredos que lhe são confiados pelo cliente", escreveu o conselheiro da OAB.

O advogado Luciano Q. de Almeida, criminalista sócio do escritório Vilardi Advogados, diz que os colegas de profissão devem tomar certos cuidados com o dinheiro recebido como pagamento, certificar-se de que foram obtidos de forma legítima e contemplada pelo sistema financeiro. No entanto, "exigir que o advogado faça o papel da Polícia, que denuncie seu cliente, além de inconstitucional é intervir demais nas relações privadas", disse.

Almeida usa a sistemática de funcionamento da Receita Federal com relação à declaração anual de Imposto de Renda para questionar a obrigatoriedade que pode ser criada pelo projeto de lei. "A Receita exige que você faça a declaração, mas não pede que você informe a origem do dinheiro. Ela só quer saber quanto você ganhou e se você recolheu o imposto devido. Se ela não se atenta à origem do dinheiro, o advogado vai ter essa obrigação?", questiona o advogado.

"Não é a primeira vez que o Estado evidência a sua incapacidade de fiscalizar, transferindo esta responsabilidade para o particular. Isto já ocorreu em 2008, quando impôs esta medida — que pretende aplicar aos advogados — aos bancos", disse Luciano Almeida. Ele ainda criticou o intervencionismo do Estado nas relações entre os advogados e seus clientes, o que segundo o criminalista, "vai contra as prerrogativas da advocacia, e constitui manifesta incostitucionalidade".

Maurício Silva Leite, advogado especialista em crimes econômicos, do escritório Leite, Tostos & Barros Advogados, afirma que em algumas atividades tal exigência pode ser discutida e talvez aceita, mas não no exercício da advocacia, que "possui uma função mais que administrativa, sendo indispensável à administração da Justiça". Para ele, "o direito de defesa é indeclinável, inderrogável, e que não pode ser jamais mitigado". O advogado acredita que a aprovação do projeto gerará uma verdadeira discussão frente à Constituição, pois acaba por relativizar o direito de defesa.

O presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, Fernando Fragoso, analisou o projeto e concluiu que ele não abrange a advocacia. "O projeto não cita os advogados diretamente, e sinceramente, não sei se são alcançados pelo trecho que cita assessoria e consultoria. É pouco provável. Não consigo imaginar um processo contra o advogado por ele não ter violado o sigilo de seu cliente", declarou.

Fragoso explica que este cenário em que o advogado é obrigado a denunciar o cliente se faz presente nos Estados Unidos e que, há alguns anos, os norte-americanos têm interesse em expandir essa ideia para além das suas fronteiras. Ele comenta que participou de um debate na OAB do Rio de Janeiro com norte-americanos sobre o assunto. "A Polícia e o Ministério Público que investiguem. O sigilo está na espinha dorsal dos deveres e obrigações da advocacia, mesmo que não queiramos, somos obrigados a manter sigilo", concluiu.

Fernando Fragoso ressalta que a questão posta em debate nada tem a ver com o "advogado parceiro do cliente bandido". "Se o advogado, além de ter conhecimento de uma ilicitude, participa transportando valores, lavando dinheiro, a questão muda e não tem mais relação com o sigilo profissional. Como em qualquer profissão, prática como estas devem ser coibidas. No entanto, exigir o fornecimento de informações é quebrar o vínculo de confiança que existe entre o cidadão e o advogado."

Em nota, o presidente da OAB-SP, Luiz Flávio Borges D’urso, disse que embora seja favorável à adoções de novas medidas que combatam a lavagem de dinheiro, se posiciona contra a aprovação do PL, pois este viola o sigilo profissional do advogado e a confiança que devem nortear as relações com o cliente. "Caso essa proposta venha a ser aprovada, será o fim da advocacia, obrigando os advogados a serem agentes de fiscalização do Estado, traindo o sigilo advogado-cliente", afirmou D’urso.

"A OAB SP é contra qualquer iniciativa que flexibilize o sagrado dever do sigilo profissional, porque representa um atentado contra as garantias constitucionais do cidadão. O sigilo é uma das bases de sustentação da profissão, ensejando a garantia para o cliente de que pode ao advogado relevar tudo, sabendo que essas informações somente serão usadas no interesse da própria defesa”, ressaltou o presidente da OAB SP, que está oficiando os presidentes da Câmara e do Senado.

D’urso ressalta que detectar o dinheiro de origem criminosa é fundamental para o país vencer a impunidade, a corrupção e outras mazelas que representem danos sociais e econômicos à sociedade. “No entanto, não se pode fazê-lo à revelia da Constituição, porque estaríamos abrindo mão do Estado Democrático de Direito e abrindo brechas para novos tempos de arbítrio”, concluiu.

Mas, nem todos pensam da mesma maneira. Para o juiz Pierre Souto Maior, da 2ª Vara Criminal da Comarca de Caruaru (PE), a imposição aos advogados de comunicação sobre suspeitas de lavagem de dinheiro de seus clientes, não é inconstitucional. "O sigilo profissional não é absoluto, assim como não são outras tantas garantias individuais, não podendo servir para acobertamento da prática de crimes que atingem toda a sociedade, como é o caso do crime de lavagem de dinheiro", disse o juiz. Ele ressalta que hoje em dia as instituições financeiras já são obrigadas pela Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9613/1998) a repassar informações ao Coaf.

Crime antecedente
O texto aprovado é o de uma emenda do líder do governo, deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP). Uma das novidades em relação à lei atual é o fim da exigência de comprovação do chamado crime antecedente para configurar a lavagem de dinheiro.

Assim, se depois de um crime de corrupção sobre o qual não há provas uma determinada pessoa for pega tentando "lavar" o dinheiro, ela poderá ser processada por este último crime sem a necessidade de o Ministério Público comprovar o crime de corrupção. "A denúncia por lavagem de dinheiro passa a ser completamente independente de crimes antecedentes. Essa é a terceira geração das leis de combate a essa atividade", afirmou o relator Alessandro Molon (PT-RJ), relator da matéria pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.

Prisão e fiança
A redação aprovada pela Câmara revoga da lei a proibição de conceder-se fiança ou liberdade provisória aos indiciados por esse crime. Um destaque do PSDB tentou reverter a revogação, mas não obteve sucesso. O artigo revogado também remete ao juiz a decisão sobre quem poderá apelar em liberdade depois de sentença condenatória.

Na prática, porém, todos os Habeas Corpus pedidos com base nesse artigo foram concedidos, segundo o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), relator em Plenário pela Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado. O relator destacou também que a elaboração do texto assinado por Vaccarezza contou com a participação de todos os partidos. "Procuramos caminhos comuns e não houve embate entre governo e oposição. Todos os partidos colaboraram para que essa lei receba os aperfeiçoamentos necessários", afirmou.

Leia aqui o PL 3.443/2008 na íntegra.

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