Feminismo islâmico

Globalizar igualdade envolve opressões e críticas duplas

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10 de outubro de 2011, 17h56

*** Palestra proferida por Asma Barlas no III Congresso Internacional de Feminismo Islâmico, em Barcelona, em 25 de outubro de 2008, traduzida por Roberto Cataldo Costa

É um grande prazer voltar a Barcelona para o Terceiro Congresso Internacional de Feminismo Islâmico, e eu gostaria de agradecer a Abdennur Prado por me incluir nele. Desta vez, nosso foco está na globalização e na dupla opressão das mulheres muçulmanas que resulta do neoliberalismo e do fundamentalismo religioso, e nossa tarefa é analisar como as feministas islâmicas (e, presumo, as mulheres muçulmanas), estão respondendo a esses desafios. Particularmente, pediram que avaliássemos como elas estão contribuindo com a “construção de uma nova sociedade civil em nível mundial, baseada em uma cultura de direitos humanos e valores universais, como democracia, justiça social, liberdade de consciência e igualdade de gênero.”

Quero abordar essa tarefa compartilhando com vocês partes de um artigo que escrevi para uma série de palestras sobre “Mulheres muçulmanas na era da globalização,” alguns anos atrás.[1] Faço isso por duas razões. Em primeiro lugar, essa série também tratou dos papéis das mulheres na construção de sociedades civis com base em “padrões universais,” como direitos humanos e democracia. Sendo assim, há alguns elementos em comum entre as questões sobre as quais fui convidada a falar naquele momento e as que devo comentar agora. Em segundo lugar, isso me possibilitará lhes transmitir uma ideia dos tipos de conversas que estão acontecendo na minha parte do mundo, o que, acho eu, é um dos objetivos deste congresso: possibilitar um tipo de conhecimento compartilhado que, de outra forma, poderia não ser possível. Considerando-se que a série assumiu uma visão da globalização muito diferente da deste congresso, começarei descrevendo essa visão antes de apresentar minha resposta a ela.

Contexto e Texto

Uma das premissas básicas da série era a de que existe uma relação positiva entre globalização, principalmente as novas tecnologias da informação e da comunicação (TICs), os papéis das mulheres muçulmanas e o advento da democracia e dos direitos humanos nas sociedades muçulmanas. Esse argumento foi construído da seguinte forma: há “revolução silenciosa” em curso nas vidas das mulheres muçulmanas, que estão

avaliando os papéis de liderança em alguns dos setores mais voltados ao futuro da sociedade. Tecnologia da informação, TV por satélite, administração de empresas, saúde pública e educação superior estão atraindo os talentos delas. Essa transformação de papéis terá um impacto sobre o futuro da democratização e o desenvolvimento de sociedades civis vibrantes e includentes, que possam promover a igualdade de gênero e os direitos humanos fundamentais.

Na verdade, a série afirmava que as mulheres já estão “definindo as realidades públicas muçulmanas [e] recriando a esfera pública como domínio de igualdade e inclusão” ao reinterpretar e se reapropriar de textos religiosos e “trabalhar para transformar … as estruturas sociais, culturais e políticas” nas sociedades muçulmanas. Com efeito, as mulheres estão surgindo “como elementos importantes na construção de instituições vigorosas da sociedade civil.”

Segundo a série, as TICs têm sido fundamentais nesse processo porque, pela primeira vez, “conectaram o mundo instantaneamente,” transformaram “a natureza da participação política” ao permitir que as pessoas cumprissem um papel mais amplo do que “dar um voto,” permitiram “viagem[s] sem visto[s] ou fronteiras … para observar outras culturas” e, portanto, possibilitaram o diálogo intercultural.[2] É claro que essas são afirmações extensas e minha resposta a elas também foi longa demais para ser reproduzida aqui em sua totalidade. Sendo assim, concentro-me em apenas dois elementos centrais de minha crítica, que são pertinentes a algumas de nossas discussões de hoje. Um deles é que as TICs não são necessariamente anunciadoras da igualdade ou da democracia e que a tecnologia só pode transformar significativamente as vidas das mulheres muçulmanas (e dos homens) se possibilitar uma transformação epistêmica fundamental na forma como interpretamos e praticamos o Islã. Isto é, a teologia é importante, e além disso, para construir sociedades democráticas, precisamos de uma hermenêutica e uma prática corânicas da igualdade de gênero.

O segundo é que as lutas por igualdade dentro das sociedades muçulmanas também devem se estender às lutas por igualdade para as sociedades muçulmanas na economia política global. Em outras palavras, é hipocrisia apontar as desigualdades nas sociedades muçulmanas enquanto elas são ignoradas em nível global. Em minha opinião, o maior impedimento à construção de uma sociedade ou um público global democráticos não é apenas a hegemonia dos Estados Unidos, e sim a própria linguagem dos direitos quando ela adquire a forma de um universalismo secular. Portanto, é necessário não apenas usar essa linguagem com prudência, mas também contestá-la. No resto do tempo que me foi atribuído, aprofundarei a discussão sobre essas afirmações, e começarei observando a relação entre TICs, os papéis das mulheres e a democracia.

TICs, democracia e igualdade
Não resta dúvida de que o ritmo acelerado das transformações tecnológicas está tendo um impacto profundo na vida das pessoas, nem de que os ativistas estão usando a internet para estabelecer solidariedades políticas ou de que cada vez mais mulheres muçulmanas estão assumindo profissões que antes eram consideradas inacessíveis a elas e por elas. Também é verdade que as mulheres em muitas sociedades estão se reapropriando criativamente de textos religiosos e lutando por inclusão nas esferas religiosas e políticas.

Entretanto, não acredito que o simples acesso das mulheres a trabalhos de alta tecnologia ou a educação venha a produzir democracia ou igualdade. Para começo de conversa, essa visão parece sugerir que a tecnologia move a sociedade e a transformação social, em vez de reconhecer que a sociedade e a tecnologia se moldam mutuamente. Além do mais, essa visão teleológica do progresso parece considerar a trajetória evolutiva do Ocidente como “um referente silencioso no conhecimento científico.”[3] Pode ser verdade que, no Ocidente, as transformações em tecnologia, papéis de gênero e direitos civis e políticos vieram juntas, mas não há razão para supor que a trajetória evolutiva do Ocidente seja universalizável. Também é preciso apontar que muitos dos problemas das sociedades muçulmanas, como o subdesenvolvimento econômico e os estados repressivos, são um subproduto dessa mesma trajetória, tanto em sua forma passada de colonialismo quanto em sua forma presente de neoliberalismo e de “guerra ao terror,” que saiu de controle.

Por fim, embora muitos de nós estejam envolvidos em lutas por igualdade, há pouca base empírica para se afirmar que as mulheres já estejam transformando a “esfera pública como um domínio de igualdade e inclusão” nas sociedades muçulmanas. Elas estão lutando para fazer isso, mas essas lutas continuam a ser marginalizadas politicamente, bem como polarizadas ideologicamente, já que algumas mulheres buscam soluções no Islã e outras, no secularismo (voltarei a esta questão mais tarde).

Da mesma forma, embora as TICs tenham certamente possibilitado algumas conexões, não acredito que a condição de estarmos interconectados seja suficiente para a democracia nem para a igualdade. Aqui, devo observar que uma imensa maioria das pessoas nunca terá acesso a tecnologias como computadores e, portanto, às tão decantadas liberdades oferecidas pela internet. E, em relação à pequena minoria que tem esse acesso, o que significa, por exemplo, navegar via internet? Embora a internet permita viagens sem vistos, as novas tecnologias também criaram novas fronteiras e possibilitaram formas de policiamento cada vez mais invasivas e brutais sobre as que já existiam.

Mais importante para meu argumento, mesmo que esteja abrindo todos os tipos de possibilidades políticas, a internet não é um indicador de um público nem de uma sociedade civil democráticos globais. Um público não existe em nenhum sentido significativo, nem nas democracias ocidentais, se por público entendermos um modelo em que as pessoas tenham liberdade para estabelecer um diálogo mutuamente desprovido de coerção, do qual surja uma política pública esclarecida.

Esse modelo se rompeu há muito tempo, quando a comunidade de públicos foi substituída por uma sociedade de massas. Globalmente, tampouco “existe ainda um … público” porque “os que podem se tornar esse público ainda não conseguem chegar uns aos outros através das fronteiras excludentes da linguagem, sob as distorções de poder da mídia global, contra as exclusões silenciadoras da pobreza e as disparidades de informação” e poder. Na melhor das hipóteses, podemos ser “membros de públicos parciais.”[4] O que pensar, então, do argumento de que as TICs estão possibilitando aos muçulmanos criar uma nova forma de comunidade imaginada ou uma espécie de umma reimaginada” como diz Peter Mandaville? Segundo o autor, ao fragmentar as “fontes tradicionais de autoridade,” as TICs estão tornando ambíguo o lócus do ‘verdadeiro’ Islã e a identidade daqueles que têm permissão para falar em seu nome.”[5] Isso está possibilitando o surgimento de “novas formas de Islã, cada uma delas redesenhada para se ajustar ao conjunto singular de contingências socioculturais em que entra.”[6] Também está gerando um novo tipo de muçulmano, para o qual “nem a transmissão de conhecimento nem o lugar dessa transmissão são institucionalizados. Todo mundo está ‘autorizado.’”[7]

Visivelmente, pode-se considerar esse desenvolvimento democrático simplesmente porque, ao questionar o monopólio das autoridades tradicionais, ele está desprivatizando o Islã. (E aqui devo dizer que o problema não está na tradição em si, e sim em como ela foi institucionalizada em uma religião que repudia a autoridade institucionalizada.) Por outro lado, o fato de que qualquer pessoa com acesso à internet pode agora divulgar suas visões sobre o Islã não torna democráticas suas visões sobre a própria internet. Uma olhada em algumas páginas muçulmanas na rede deve afastar esse tipo de ilusão.

A conclusão a que chego é de que precisamos diferenciar pluralismo e democracia, bem como tolerância e democracia. Como afirmou Marcuse, determinados modos de tolerância também podem ser repressivos.[8] Nesse caso, tampouco acredito que uma interface entre tecnologia e teologia possa desfazer as interpretações patriarcais do Islã na ausência de uma teologia libertadora.

Teologia, democracia e igualdade
Este parece um lugar adequado para passarmos de uma discussão sobre tecnologia a uma discussão sobre teologia, e devo esclarecer que meu argumento não é de que a teologia é importante em detrimento de todo o resto. Contudo, enquanto os muçulmanos continuarem a interpretar o que diz o Corão como desigualdade e patriarcado, parece necessário continuar a desfazer as narrativas que busquem estabelecer um investimento divino na opressão das mulheres.

Isso pela razão óbvia de que essas narrativas servem para sustentar todos os tipos de hierarquias e desigualdades de gênero nas sociedades muçulmanas. É contra esse pano de fundo que eu apresentei uma hermenêutica corânica libertadora, que demanda que se historicizem as leituras patriarcais sobre ela, bem como que se recupere sua episteme antipatriarcal. Essa episteme é derivada de determinadas afirmações ontológicas sobre a presença de Deus no Corão, sendo que a mais importante é a de que Deus não foi criado, portanto, está além de sexo/gênero. Em minha opinião, o fato de Deus não poder ser patriarcalizado também sugere que a palavra de Deus – o Corão – não deve ser patriarcalizada.

Infelizmente, contudo, não apenas os muçulmanos conservadores, como também os progressistas e seculares nos Estados Unidos, rejeitam essa abordagem. Isso porque

ambos têm a mesma visão reducionista do Corão como sendo patriarcal. Os mais deterministas chegam a essa posição afirmando que seus sentidos são fixos e transparentes (diretos) e não podem ser reenquadrados sem violar o texto e as tradições recebidas sobre como interpretá-lo. Os mais flexíveis, enquanto isso, reconhecem que aquela linguagem é polissêmica, mas também assumem leituras patriarcais dela como sendo algo dado. Portanto, nós, mulheres muçulmanas, estamos presas entre uma grande corrente predominante de conservadores e uma pequena franja de secularistas e feministas que nos atacam por tentar desfazer a leitura patriarcal do Corão. (Nem mencionei os liberais ocidentais não muçulmanos que estão tomados por leituras mesquinhas do Corão ou que querem que os muçulmanos o descartem.) Onde está o espaço, neste caso, para as mulheres crentes para as quais o Corão é a palavra libertadora de um Deus justo?[9]

Porém, apesar desses desafios, como mostra o trabalho de muitas mulheres, não apenas é possível, como também necessário, obter uma teoria e práxis da igualdade de gênero a partir do Corão. A definição de Margot Badran sobre feminismo islâmico[10] oferece uma dessas teorias, e eu falarei mais dela no final desta palestra. A expressão “a teologia importa,” que eu já usei algumas vezes, é uma referência a um debate entre Khaled Abou el Fadl e Tariq Ali, em um pequeno volume, The Place of Tolerance in Islam,[11] que apresenta visões diferentes sobre os atentados de 11 de setembro de 2001. A posição de el Fadl tenta desvincular o evento do Islã ao enfatizar as disposições corânicas sobre tolerância.

Enquanto isso, outros colaboradores dizem que a questão tem a ver com as políticas dos Estados Unidos, em vez de intolerância muçulmana. É nesse contexto que Ali afirma que a teologia é “inútil” para resolver os “problemas reais” dos muçulmanos que, segundo ele, precisam “ir além de discutir se o Corão promove ou não a tolerância e enfrentar os problemas sociais e políticos urgentes que [os] afetam hoje.”[12] Em sua réplica, el Fadl diz que, para milhões de crentes, Deus faz “parte de seu universo moral e material. É por isso que a teologia é importante. Se a teologia não importasse, eles não importariam.” Seria, ele diz, “insensato e imoral sugerir que as perspectivas de pessoas cuja teologia é inseparável de sua própria existência não importam.” Além disso, é apenas envolvendo a teologia que os muçulmanos podem negar aos “grupos [fanáticos] o seu estandarte islâmico e … questionar sua reivindicação de autenticidade.”[13]

Esse debate ilustra a divisão ideológica da qual falei antes, entre aquelas mulheres muçulmanas que têm o Islã como referência e as que colocam sua fé no secularismo para gerar reformas democráticas nas sociedades muçulmanas, e quero examinar ambas as estratégias mais de perto.

A primeira posição aproxima a crítica interna, pois procura questionar as interpretações opressivas do Islã a partir de dentro dos paradigmas islâmicos e corânicos. O pressuposto não é o de que a teologia pode resolver todos os problemas dos muçulmanos, e sim que pode ser parte da solução, dado que o Islã continua a moldar as sensibilidades e escolhas sociais da maioria dos muçulmanos.

A segunda posição, por outro lado, é uma crítica externa que busca ignorar completamente o Islã. Segundo essa visão, não apenas é difícil vencer debates teológicos, mas uma abordagem teológica pode “reforçar a legitimidade do sistema islâmico, ajudar a reproduzi-lo e prejudicar as alternativas seculares.” Com efeito, concentrar-se “em argumentos teológicos em vez de questões socioeconômicas e políticas,” ao fazer “do Corão, em vez de padrões universais … o ponto de referência, é limitar a eficácia das lutas das mulheres.”[14]

Entendo a resistência secular ao Islã, mas não tenho certeza de o quanto é teoricamente apropriado ou politicamente útil opor questões sociopolíticas à teologia, considerando-se que ambas fazem parte das vidas das pessoas. Nesse caso, tampouco há razão para pressupor que os projetos teológicos e hermenêuticos nada tenham a ver com as questões sociopolíticas, como fica claro na lutas populares erigidas na América Latina em nome da teologia da libertação. Na verdade, a teologia pode proporcionar um incentivo a mudanças nas sociedades muçulmanas ao mostrar que a desigualdade e a discriminação subvertem tudo o que é igualitário dentro do Islã e em relação a ele.

Entretanto, excluímos essa opção ao autenticar leituras opressivas do Islã e, com base nisso, posicioná-lo contra a democracia e o Corão, contra os “valores universais.”

Considero essa posição tendenciosa por várias razões. Uma delas é que, mesmo que signifique estimular os muçulmanos à democracia, garante que esta nunca seja apresentada como algo compatível com o Islã. Sendo assim, reproduz exatamente o problema que considera um obstáculo. Em segundo, esse enquadramento em oposição não apenas deprecia o Islã e o Corão, como também retira esses “padrões universais” do domínio da contestação política ao privilegiá-los já no início. Por fim, qualquer forma de universalismo, seja com uma roupagem de secularismo ou de fundamentalismo religioso, nega às pessoas “formas diversificadas de serem humanas.”[15] Portanto, além de antidemocrática, é potencialmente genocida em função de sua demanda assimilacionista. Como afirma Dipesh Chakrabarty, ser humano significa viver com “as infinitas incomensurabilidades por meio das quais lutamos – de forma perene, precária, mas inevitável – para ‘transformar a Terra em mundo’ com vistas a viver em nossas diferentes visões de pertencimento ôntico.”[16]

Globalização, feminismo e secularismo
É claro que reconhecer que o Islã oferece um sentido de “pertencimento ôntico” desse tipo é levá-lo a sério, o que, observei, a maioria dos secularistas reluta em fazer. Isso resulta no fechamento da “discussão pública sobre como as muitas variedades de islamismo estão questionando e ampliando o campo discursivo da resistência política.”[17] Mesmo assim, como afirma Susan Buck-Morss, “esse tipo de discussão … esta aí para ser feito dentro da esfera pública global, diferentemente de nossa própria esfera restrita, e é urgente fazê-lo.”[18] (Com “nossa,” ela quer dizer, é claro, os Estados Unidos e o Ocidente.) Para Buck-Morss, o que merece respeito é “o poder intelectualmente crítico e socialmente responsável do islamismo … e não seus usos instrumentalizados por grupos no poder para ganhar apoio sem questionamentos e silenciar a oposição interna.”[19]

Ela também reconhece que o poder social do “islamismo” reside em sua função como crítica interna do Islã. “Assim como na teoria crítica ocidental, os grandes defensores da razão são os que criticam a racionalização da sociedade em nome da razão [diz ela], os muçulmanos progressistas de hoje são capazes de usar o Islã como um critério crítico e imanente contra sua própria prática, com efeitos semelhantes.”[20]

Na verdade, como sua própria análise demonstra, o “islamismo” não apenas abre caminhos para a autocrítica muçulmana, como também oferece ao Ocidente um critério crítico em relação ao qual medir suas práticas. Como aponta a autora, a secularização pode ser dogmática e “a liberdade, como definida pelo Ocidente, [pode trazer] consigo a submissão ao poder ocidental.” Dessa forma, “o que está envolvido” na resistência muçulmana à ocidentalização “não é a liberdade, e sim a dignidade. E em um contexto pós-colonial, dignidade é importante. Melhor dito, a dignidade é a liberdade em um sentido diferente, uma libertação da hegemonia ocidental.”[21]

É nesse contexto político global, portanto, que não podemos ver claramente a função do islamismo como “fonte poderosa de debate crítico na luta contra a imposição antidemocrática de uma nova ordem mundial pelos Estados Unidos, e contra a violência econômica e ecológica do neoliberalismo, as ortodoxias fundamentalistas das quais se alimenta a crescente divisão entre ricos e pobres.”[22]

O que me parece mais interessante em relação à defesa que Buck-Morss faz do “islamismo” não é apenas sua audácia política, e sim o fato de que ela a apresenta na condição de marxista. Embora seja uma ínfima minoria, seu argumento revela as possibilidades latentes no Ocidente de se renovar ao envolver o Islã. Demonstra, em outras palavras, que os secularistas ocidentais e ocidentalizados não estão obrigados a ser cúmplices dos projetos hegemonizantes do Ocidente ao promover os chamados “padrões universais.”

Eles também podem se esforçar para articular “um discurso crítico adequado às demandas de uma esfera pública global, na qual a hegemonia dos discursos colonizadores foi abalada.”[23] Até que isso aconteça, não poderá haver sociedade civil nem público global. Isso, em parte, é o que eu queria transmitir com o título deste artigo: “Globalizando a igualdade.” Para reiterar, nós, os “públicos parciais,” também precisamos lutar por direitos iguais em uma esfera pública global emergente na qual se torne possível não apenas “pensar além”[24] da hegemonia dos Estados Unidos, mas também avançar além dela.

Em parte, contudo, o que eu queria ao dizer “Globalizando a igualdade” era me referir à necessidade de garantir a igualdade para as mulheres muçulmanas onde quer que elas vivam. Em minha opinião, isso exige não apenas garantir acesso a educação, empregos e TICs, mas também desenvolver uma teologia que possa gerar uma práxis de igualdade de gênero. Isto não está fora de nossa capacidade. Entre outros, Badran aponta que as Ideias de igualdade de gênero e justiça social foram introduzias na Arábia do início do século VII … e fazem parte do Corão; não estamos falando desses princípios como produtos da “modernidade,” entendida como modernidade ocidental. Pessoas do mundo todo chegam a conceitos de igualdade de gênero e justiça social por caminhos diferentes, por meio de contextos diferentes, sejam religiosos ou seculares.[25]

É por isso que, na definição dela, o feminismo islâmico é “um discurso de igualdade de gênero e justiça social que adquire sua visão e seu mandato no Corão, e busca a prática de direitos e justiça para todos os seres humanos na totalidade de sua existência ao longo do continuo público-privado.” Significativamente, essa definição deriva não apenas de uma leitura igualitária do Corão, mas também de uma realidade histórica das lutas das mulheres muçulmanas durante gerações. Essa luta continua hoje em dia por diversos meios e em vários lugares, e estou aberta a todos esses meios, desde que eles permitam que todos de nós que queiram estar na “companhia … de Deus”[26] que possam fazê-lo livremente, ao mesmo tempo em que assumimos nossa tarefa de ser agentes socialmente responsáveis na Terra.


[1] Reescrevi este artigo em grande parte, e ele foi publicado como capítulo de um livro: “Globalizing Equality: Muslim women, theology, and feminisms,” in Fera Simone (org.) On Shifting Ground, NY: Feminist Press, 2005.

[2] Da descrição da série de palestras enviada a mim por correio eletrônico.

[3] Dipesh Chakrabarty, Provincializing Europe: Postcolonial Thought and Historical Difference, Princeton University Press, 2000:28.

[4] Susan Buck-Morss, Thinking Past Terror, UK: Verso, 2003:92.

[5] Peter Mandaville, Transnational Muslim Politics: Reimagining the Umma, Routledge: 2001:176.

[6] Ibid., 170.

[7] Roy, citado em ibid., 176.

[8] H. Marcuse, “Repressive Tolerance,” in R. P. Wolff, B. Moore Jr., e H. Marcuse (orgs). Critique of Pure Tolerance, Boston: Beacon Press, 1965:81.

[9] Asma Barlas, “Believing Women in Islam: Between religious and secular politics and theology.” Re-Understanding Islam: A double critique, Spinoza Lectures, University of Amsterdam, Van Gorcum, 2008.

[10] Margot Badran, “Islamic Feminism: Beyond Good and Evil, Beyond East and West,” artigo não publicado, 2003:2.

[11] Khalid Abou El Fadl, The Place of Tolerance in Islam, Boston: Beacon Press, 2002:104.

[12] Tariq Ali, “Theological Distractions,” in el Fadl, ibid., 41.

[13] El Fadl, ibid., 104-105.

[14] Val Moghadam, “Islamic Feminism and its Discontents,” http://www.iranbulletin.org/islamic_feminism,htm p. 13.

[15] Chakrabarty, ibid., 254.

[16] Ibid.

[17] Buck-Morss, ibid., 42.

[18] Ibid., 46.

[19] Ibid.

[20] Ibid., 47.

[21] Ibid., 46.

[22] Ibid., 49.

[23] Ibid., 101.

[24] Este é, obviamente, o título do livro de Buck-Morss. Ibid.

[25] Badran, ibid., 2.

[26] El Fadl, ibid., 104.

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