Poder de Decisão

A cidadania expressa na vontade política do indivíduo

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6 de outubro de 2011, 15h29

A cidadania se expressa como vontade política do indivíduo, manifestada, dentro de um contexto pacífico, com previsão constitucional, pela soberania popular,como poder que emana do povo, através de seus cidadãos, exercido pelos representantes eleitos, ou diretamente, quer pelo plebiscito, o referendo ou a iniciativa popular (CF – arts. 1°, parágrafo único e 14). Em outras palavras, cidadania é o exercício do poder político, através do sufrágio universal (direito) e pelo voto direto e secreto (exercício), com valor igual para todos. Em tempos de crises políticas, a cidadania se revela pela revolução popular, sem qualquer formalismo, voltando-se contra a situação dominante, impondo-se nova ordem política. Em qualquer hipótese, a vontade política se veicula através da norma jurídica sujeita à apreciação do judiciário. A cidadania, ao lado da soberania, da dignidade da pessoa humana, do pluralismo político e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, constitui os fundamentos do estado democrático de direito (CF – art. 1°). Outra forma há de expressão da soberania popular além das já referidas. Trata-se da participação popular no júri, mediante a soberania dos vereditos (CF art.5º, inciso XXXVIII).

Historicamente o júri foi a primeira forma de contenção do poder absoluto dos reis, como está a evidenciar Magna Carta Inglesa de 1215, que, na versão atualizada de 1226, assim dispôs em seu § 39:

"Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado dos seus direitos ou seus bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou reduzido em seu status de qualquer outra forma, nem procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento legal pelos seus pares ou pelo costume da terra.” (No free man shall be seized or imprisoned, or stripped of his rights or possessions, or outlawed or exiled, or deprived of his standing in any other way, nor will we proceed with force against him or send other to do so, except by the lawful judgment of his equals or by the law of the land).

Esse documento histórico foi conquistado pelos barões em face ao Rei João Sem Terra, exigindo-se, entre outras coisas, o julgamento legal pelos seus pares ou pelos costumes da terra. Na época, os nobres legislaram para poucos, visando seus próprios interesses. Mas a história se incumbiria de estender os benefícios a todos, inicialmente aos habitantes da Inglaterra, depois aos americanos e, destes, para outros países, como o Brasil. De modo que também nós, como beneficiários indiretos, devemos prestar homenagens à Magna Carta Inglesa.

Sendo a primeira e original manifestação da cidadania, o júri apresenta múltiplas facetas: de um lado, é garantia do cidadão de não ser julgado por um representante do estado isoladamente, mas sim pelos seus pares, membros da sociedade civil; de outro, é forma de contenção do poder estatal, ao não permitir a condenação de ninguém senão através desse instituto processual penal, que goza, no Brasil, de foros constitucionais, não permitindo discriminação nas condenações ou absolvições, seja dos poderosos ou dos humildes; também, é forma de democratização do Poder Judiciário, que constitui um poder político não eleito, permitindo ao povo participar diretamente dele.

Aí, ocorrem duas situações salutares: de um lado, limita a centralização e o tecnicismo do poder judiciário e, de outro, educa o povo, que passa a ter maior interesse pelas coisas públicas, notadamente pela realização da justiça. Há, ainda, outra função, pouco lembrada, mas de muita utilidade para o próprio poder judiciário: como são os jurados que condenam o acusado, eles se tornam um necessário e eficaz escudo protetor do juiz, contra ações de réus poderosos, ou de membros de organizações criminosas, que não mais poderão voltar sua ira, vingança ou intimidação contra o magistrado, já que este só profere a sentença condenatória, atendendo à vontade dos representantes da sociedade. Os jurados são escolhidos aleatoriamente, dentre aqueles constante de lista previamente elaborada pelo judiciário, para funcionarem num momento único e esporádico, compondo o conselho de sentença do júri. Após o que, logo são dispersados, retornando à multidão incógnita da população.

Para atender esse fim social e político, faz-se necessária, de modo peremptório, a ampliação da competência do júri para os julgamentos criminais, estendendo-a a todos os crimes dolosos. Basta fazer, por emenda, ligeira alteração no preceito constitucional que dispõe sobre a matéria (CF-art. 5°, XXXVIII.) Onde o texto diz (alínea “c”) "competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida" passaria a ter a seguinte dicção: “competência para o julgamento dos crimes dolosos, cujas penas máximas forem superior a quatro anos, excetuados os casos em que houver prévio acordo com o Ministério Público, ou a transação penal, nos casos autorizados por lei”.

Só assim o povo participará efetivamente desse poder político não eleito; os juízes ficarão protegidos; e os poderosos não mais escaparão da Justiça. A impunidade, se houver, será com o respaldo da própria comunidade. Alegarão alguns que, historicamente, o júri não funciona bem no Brasil por ser o povo analfabeto e, geralmente, por estar dominado pelos grandes, dos quais aceita subornos com facilidade. Rejeita-se esse argumento, que se assemelha ao utilizado pela Escola Superior de Guerra no tempo da ditadura, no sentido que o povo não saberia votar, devendo a elite decidir por ele. Hoje sabemos que o povo sabe escolher bem os seus representantes. Se não o faz melhor é porque, existindo uma legislação eleitoral deformada, usualmente é frágil o rol dos candidatos que lhe são apresentados. É preciso mudar a lei eleitoral para que a escolha dos postulantes, via partidos políticos, não se dê mais pela cúpula partidária, mas com a prévia participação dos filiados, em decisão de base, majoritária. Assim, pretendentes com ficha suja, ou que estejam respondendo a processo criminal por corrupção, improbidade administrativa, ou desvio de dinheiro público, mesmo que financeiramente poderosos, não obterão espaço na respectiva legenda.

As virtudes comprovadas da participação do povo no processo eleitoral ocorrerão também na instituição democrática do júri, notadamente se sua competência for ampliada para alcançar todos os crimes dolosos – e, eventualmente, até em alguns casos cíveis, de maior vulto, seja pelo valor da causa, seja pelo tipo ação (por exemplo quando envolve direitos coletivos ou difusos) – nos termos acima especificados.

Ademais, com a constante participação do povo nas entranhas do Poder Judiciário, esse poder político, não eleito, revestir-se-á de maior legitimidade, mesmo porque, certa ou errada, a decisão será tomada por quem, originalmente, é o dono do poder: o povo. Os políticos e os juízes são apenas seus empregados, sujeitos, todos, ao bom comportamento.

Há, ainda, uma vantagem adicional. O juiz monocrático só pode condenar se houver provas plenas no bojo do processo, tais como testemunhas, documentos e perícias. Isso dificulta muito a condenação nos crimes praticados por organizações criminosas ou políticos ou por pessoas financeiramente poderosas, que geralmente deixam poucos rastros, ou se acobertam atrás de interpostas pessoas, conhecidas como “laranjas”. Prevalece, aí, o formalismo e o tecnicismo decorrente das tormentosas questões de direito. Já os jurados podem condenar simplesmente com base na prova indiciária, ainda que fragmentada, desde que estejam convencidos da culpabilidade do réu.

Avulta, aqui, sobremaneira, o exame dos fatos, tendo pouca relevância os conceitos jurídicos e o tecnicismo, dele decorrente, aplicáveis aos atos do agente criminoso, tornando sem sentido a discussão meramente formal, cheia de sutilezas, de conceitos vagos, nebulosos e distantes do alcance intelectual dos jurados, matéria técnica que eles desconhecem e não precisam saber. Em seu íntimo, cada jurado, à luz dos fatos – e não do direito ou da lei – precisa apenas responder à seguinte pergunta: na situação apresentada ao seu escrutínio, considera a ação do réu correta e honesta, que seria praticada por qualquer cidadão, merecendo, por isso mesmo, a absolvição, ou, ao contrário, julga-a injusta e criminosa, sendo caso de condenação? Para isso, basta responder, depois de terminado o contraditório, apenas a um quesito: considera o réu inocente ou culpado?


Outra forma de exercício da cidadania e contenção do poder estatal é igualdade. Constituindo a igualdade uma das colunas que sustentam a democracia, ao lado da liberdade e da vontade da maioria, pode-se afirmar que, excetuado o direito fundamental à vida, apresenta-se como o mais relevante dos direitos individuais, tanto que a enumeração prevista no artigo 5°, da Constituição Federal começa por estabelecer esse direito (Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,…).

Visou a Carta Política, com isso, preservar a democracia como processo de convivência social em que o poder emana do povo e por ele há de ser exercido, ainda que indiretamente, porém em seu único proveito. Esse processo ampara-se sobre três princípios fundamentais: o princípio da vontade da maioria, o da igualdade perante a lei e o da liberdade de ação, observadas as franquias constitucionais, exceto nos casos vedados em lei (a qual, contudo, não pode contrariar a Constituição para anular os direitos individuais e franquias por esta concedidos).

Mas esses princípios podem ser reduzidos a um, na lição de Aristóteles, ou seja, o da igualdade, que constitui o fundamento e fim da democracia, que tanto mais será pronunciada quanto mais se avança na igualdade. Mas ressaltava que a alma da democracia repousa na liberdade, sendo todos iguais. Na opinião de Rousseau, a igualdade é condição para a existência da liberdade. Pode-se mesmo, através da democracia, como observou Alexis de Tocqueville, "imaginar um ponto extremo onde liberdade e igualdade se toquem e se confundam".

Realmente, na democracia a liberdade conduz naturalmente à igualdade; na ditadura, a pretexto de se alcançar a igualdade, sujeita-se o indivíduo, pela violência, inexoravelmente à servidão. A sociedade perfeita pressupõe a igualdade, com liberdade como pedra fundamental. As pequenas diferenças sociais decorrerão, apenas, da inteligência, criatividade, trabalho e honra.

Todo privilégio implica o reconhecimento de um tipo de superioridade, com a imediata quebra da igualdade. A superioridade induz dominação, com grave ofensa à liberdade. Daí por que todo o privilégio deve ser combatido e totalmente extirpado, ou reduzido ao mínimo tolerável (preferência às crianças, idosos, gestantes, doentes, cadeirantes etc), de modo a ampliar o âmbito da democracia.

A contenção do poder estatal se manifesta, outrossim, pelo federalismo, pela separação dos poderes, pela doutrina dos freios e contrapesos e por uma imprensa livre e plural. Cada um desses tópicos serão analisados sucintamente, já que abordados, com profundidade, no livro “Devido Processo Legal-Due process of Law”, de minha autoria.[1]

O pleno exercício da cidadania pressupõe um regime democrático, que assenta sua estrutura constitucional em quatro pilares fundamentais: a)- o federalismo; b)- a separação dos poderes; c)- a garantia dos direitos individuais; e d)- meios de comunicação (jornais, rádios, televisões e internet) livres, sem censura prévia, e diversificados (emissoras distintas) quanto à fonte de produção da informação.

O federalismo é a pedra angular do sistema, porque reparte o poder entre o Governo Central e o dos Estados e Municípios de forma equilibrada, de modo a evitar a concentração do poder, que conduz à ditadura. Permite, ainda, que os Estados-Membros e os Municípios sejam autênticos laboratórios sociais e políticos, onde os experimentos e as intervenções legislativas podem ser testados separadamente, multiplicando as oportunidades de sucesso (que logo serão copiados) e minimizando os perigos gerais de fracasso. O federalismo revitaliza e harmoniza os governos inferiores, que cuidam mais diretamente com as necessidades sociais. Desse modo, seria ideal o indivíduo se sujeitar à aproximadamente 90% de leis locais (estaduais e municipais) e, apenas, à 10% de leis federais.

A separação dos poderes entre os ramos legislativo, executivo e judiciário (LEJ), constitui fórmula última e refinada de contenção do poder, portanto, sendo modo de exercício da cidadania. A separação dos poderes serve como poderoso controle contra as ações arbitrárias de cada um deles.

Como as opções e ações políticas se realizam através da lei, aí deve recair o controle político dos outros poderes pelo judiciário. Ao Judiciário foi constitucionalmente outorgado o poder de dizer o que a lei é, na feliz frase de Marshal[2]:

"É enfaticamente área de atuação e dever do departamento judiciário dizer o que a lei é […]. Se duas leis conflitam entre elas, as cortes devem decidir o caso conforme as leis, desprezando a Constituição, ou conforme a Constituição, desprezando a lei; a Corte deve determinar qual dessas regras conflitantes governa o caso. Isso é da própria essência do dever judicial." ("It is emphatically the province and duty of the judicial department to say what the law is [ ..]. If two laws conflict with each other, the courts must decide that case conformably to the law, disregarding the constitution; or conformably to the constitution, disregarding the law; the court must determine which of these conflicting rules governs the case. This is of the very essence of the judicial duty.").

Não existem mais, na esfera dos outros ramos governamentais, ações exclusivas não apreciáveis pelo Poder Judiciário, que é o intérprete último da vontade constitucional (controle da constitucionalidade das leis).

Contudo, o Legislativo pode emendar a Constituição visando superar uma decisão incômoda do Judiciário. Pode também editar lei ampliando ou esclarecendo o fundamento judicial adotado. Daí a importância da doutrina dos freios e contrapesos. Contudo, para não subestimar a decisão judicial e, ao mesmo tempo, tornar o legislativo um superpoder político, contrário à forma republicana de governo, próprio das monarquias constitucionais (como a da Inglaterra), ou do sistema parlamentarista (experimentado sem sucesso no Brasil, durante a crise que antecedeu ao golpe militar de 1964), portanto pretendendo ser um poder político superior ao judiciário, as emendas constitucionais devem passar pelo crivo das assembleias legislativas estaduais. Só depois de aprovada pela maioria delas é que a emenda pode entrar em vigor. Outra razão informa esse raciocínio: o pacto federativo foi originalmente firmado entre os Estados-Membros e a União. Logo, a União não pode, solitariamente, alterar de modo arbitrário e unilateral, o seu conteúdo, negar ou anular sua substância material. Não satisfaz o argumento de que os senadores, por representar os Estados-Membros, estariam falando em nome destes. Ora, como se sabe, os senadores recebem os seus subsídios da União e se elegem da mesma forma que os deputados federais. Somente a assembleia legislativa representa, com legitimidade e de modo eficaz, os interesses do povo de seu Estado e está autorizada a falar por ele.

A combinação do princípio constitucional da separação dos Poderes com a doutrina dos freios c contrapesos permite que nenhum ramo em que se desdobra o poder político possa exercer autoridade ditatorial sobre os trabalhos do Governo. Os poderes dados pela Constituição a cada um deles são delicadamente controlados pelo poder dos outros dois, evitando os excessos.

Através da doutrina dos freios e contrapesos, somada ao princípio da separação dos poderes, procura-se proteger o cidadão contra o surgimento de governo tirânico, ao estabelecer múltiplas cabeças de autoridade no governo, as quais se posicionam uma contra a outra em permanente batalha. A intenção da Carta é negar a uma delas a capacidade de permanentemente consolidar toda autoridade governamental em si mesma, enquanto permite no todo o desenvolvimento tranqüilo do trabalho do governo.

É meio de restringir o poder governamental e prevenir abusos. Portanto, constitui, também, modo de exercício da cidadania.

Mas a cidadania também se expressa através do princípio do "devido processo legal", que, pela sua abrangência encampa o próprio júri. Remonta ao mesmo § 39, da Magna Carta Inglesa, quando ali foi dito que nenhum homem será privado de seus direitos ou bens, senão através de um julgamento legal.

Esse conceito, impregnado de justiça e decência, foi transplantado para a Constituição Americana de 1787, onde através da Emenda 5, inserida no Bill of Rights, prevê que "ninguém será privado da vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo legal".


O princípio foí adotado pela Constituição Brasileira de 1988, com quase oito séculos de atraso, quando dispôs no art. 5º:

“LIV: Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal".

Esse dispositivo constitucional vem complementado pelo inciso LV, assim editado:

"LV – os litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".

Do preceito constitucional americano, que serve de base para o nosso sistema, cuja estrutura política de divisão de poderes é idêntica, foram extraídas as seguintes garantias básicas do cidadão, limitadoras da ação governamental:

1. O direito do povo de estar seguro nas suas pessoas, casas, papéis e efeitos contra desarrazoada busca e apreensão (Emenda n. 4);

2. emissão de mandado de busca ou de prisão somente baseado em causa provável, sustentada por juramento ou afirmação, descrevendo especificamente o lugar, onde ocorrerá a busca, e a pessoa ou coisa a ser apreendída (Emenda n. 4);

3. indiciamento por grande júri para os crimes hediondo ou capital (Emenda n.5);

4. não ser julgado duas vezes pela mesma ofensa, colocando em risco sua vida ou parte do seu corpo (Emenda n. 5);

5. imunidade contra a compulsória autoincriminação (Emenda n. 5);

6. direito a um rápido e público julgamento, por um júri imparcial, no Estado e distrito onde o crime foi cometido (Emenda n. 6);

7. direito de ser informado da natureza e causa da acusação (Emenda n. 6);

8. direito do acusado de ser confrontado com as testemunhas adversas e produzir os testemunhos das favoráveis (Emenda n. 6)

9. direito a um processo compulsório para obter o depoimento das testemunhas em favor do acusado (Emenda n. 6).

10. direito a advogado nos casos criminais (Emenda n. 6);

11. defesa contra excessivos valores de fianças, multas e punições cruéis e não usuais (Emenda n. 8)."

No Brasil, podemos extrair de nossa Constituição Federal, exemplificativamente, algumas garantias básicas, protegidas pelo devido processo, sem prejuízo de outras decorrentes dos princípios adotados, ou mesmo concedidas pela legislação ordinária:

a) decorrentes do direito à vida ou à liberdade (art. 5"):

1. prisão somente em caso de flagrante delito ou por ordem judicial (art. 5", inciso LXI);

2.direito de permanecer o acusado calado e de ter assistência da família e de advogado (LXII);

3.direito de que a prisão seja imediatamente comunicada ao juiz competente e a membro da família indicado pelo acusado (LXIII);

4. proibição de tortura ou tratamento desumano (III);

5. inviolabilidade da residência, exceto em caso de flagrância do delito ou desastre, ou, durante o dia, mediante ordem judicial (XI);

6. inviolabilidade de correspondência ou comunicações telefônicas e dados, salvo por ordem judicial (XII);

7. direito a julgamento pelo juiz natural (aquele naturalmente investido no cargo) não se admitindo tribunal de exceção (LIII);

8. proibição de uso de provas obtidas por meios ilícitos (LVI);

9.proibição de prisão civil por dívida, salvo nos casos de inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e da de depositário infiel (LXVII);

10. julgamento por júri nos crimes dolosos contra a vida (XXXVlII);

11. proibição de lei penal retroativa (XL);

12. individualização e proporcionalidade da pena: não atingirá terceiros, nem poderá deixar de levar em consideração a gravidade do delito (XLV e XLVI);

13. proibição de penas de morte (salvo em caso de guerra), perpétua, de trabalhos

forçados, de banimento c cruéis (XLVII);

14. obviamente, o direito ao devido processo legal, já referido antes (LIV e LV).

b) oriundas do direito de propriedade

1. Indenização prévia, em dinheiro, no caso de desapropriação (CF, arts. 5", XXIV e 182, § 3°), exceto do imóvel rural improdutivo para fins de reforma agrária (CF,art.184);

2. garantia da manutenção de bens e direitos patrimoniais já incorporados na esfera de disponibilidade do indivíduo (direito adquirido);

3. a lei não violará o ato jurídico perfeito (contrato).

c) comum:
1. A sentença transitada em julgado não será rescindida senão pelas causas e no prazo já estipulado em lei; lei nova não poderá modificá-la (XXXVI).

2. Indissoluvelmente vinculado ao devido processo legal, sendo, inclusive, meio próprio para sua verificação, encontra-se a obrigação de toda autoridade (militar, policial, civil: administrativa ou judicial) de fundamentar suas decisões, a fim de se aferir não só sua legalidade estrita, mas também a justiça e moralidade do ato.

A Constituição Federal trata do assunto no art. 93:

"IX -todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes;

X -as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros".

Não obstante a garantia da motivação dos atos administrativos e pronunciamentos judiciais não constar tecnicamente das cláusulas pétreas, cujo núcleo é imodificável através de emendas à Constituição (CF, art. 60, § 4"), acha-se evidentemente aí incluída, por agregar-se inseparavelmente ao princípio do devido processo, que faz parte das garantias fundamentais.

Embora inscrita no capítulo destinado ao Poder Judiciário, essa garantia (a da motivação dos atos administrativos), imantada pelo devido processo e pela cláusula da igual proteção, se estende, como obrigação inafastável, a toda autoridade da Administração Pública. Também o direito à igualdade não se materializa juridicamente por si só, necessitando do manejo do processo, como instrumental garantidor de sua existência onde, tanto no aspecto processual como no substancial, encontra-se abrangido pela cláusula milenar do devido processo legal (Due process of law).

Significa dizer que todas as garantias fundamentais outorgadas pela Constituição – inclusive a coluna mestra da igualdade, colocada como a maior de todas, tirante o direito à vida – passaram a se vincular direta e objetivamente à cláusula do devido processo e da igualdade, num vínculo de sujeição a essas, que passaram a dominar aquelas. Mesmo a garantia da igualdade, por já estar incorporada no devido processo, sujeitou-se a ele.

O princípio do devido processo legal como instituto de defesa da cidadania apresenta duas faces: uma processual e outra substantiva.

Através do devido processo legal procedimental exige-se o tratamento igualitário das partes no processo, o direito ao contraditório e à ampla defesa, encampando, na esfera criminal, o princípio da inocência e a vedação do acusado de produzir prova contra si, materializado no direito de permanecer calado. Portanto, privilegia-se a ampla defesa, o contraditório, a motivação das decisões administrativas e judiciárias, o direito ao recurso, ao julgamento justo.

A segunda é forma de contenção do poder dos outros dois ramos governamentais pelo Poder Judiciário, através da inconstitucionalização de leis ou de atos administrativos, em confronto vertical, como normas periféricas, com a regra matriz.

No âmbito substantivo, o devido processo autoriza ao Poder Judiciário, no exercício de seu poder político como ramo do governo, aferir, a um tempo, a razoabilidade da lei, bem como exercer escrutínio estrito (invertendo-se o ônus da prova) relativamente àquelas que violem as liberdades civis individuais e, por outro lado, exercer o controle sobre os outros dois departamentos do Governo, através da doutrina dos freios e contrapesos (checks and balances).

Sob esse aspecto, outros direitos podem ser aflorados da zona de penumbra constitucional como emanações decorrentes do princípio do devido processo legal.

O Judiciário, como poder fracionário político independente, exerce os freios e contrapesos através do controle da constitucionalidade das leis e dos atos administrativos. Esse controle se instrumentaliza através da cláusula do devido processo legal, que em sua forma substantiva permite ao Judiciário aferir e valorar politicamente os atos e opções dos outros ramos governamentais. O juiz, como agente político, manifesta, ao julgar o caso concreto, seu modo pessoal de visão do mundo, conservador ou progressista. É tão legítima essa postura do Poder Judiciário, como demonstra a história constitucional americana, que o Judiciário, lá, assentou dois modos de se encarar a lei em face da constituição:

a) – lei abordando aspecto econômico: é considerada, em princípio, constitucional, salvo se o demandante demonstrar que ela não é razoável aos olhos de um cidadão comum (princípio da razoabilidade das leis);

b) – lei que atinge os direitos civis: é considerada a priori suspeita, merecendo do Judiciário um exame mais severo e estrito quanto à sua constitucionalidade. Aqui compete ao Estado demonstrar um relevante interesse público de modo a justificar que os direitos individuais sejam afetados ou restringidos.

Vê-se que através da cláusula do devido processo legal pode-se facilmente alcançar, entre outros, os seguintes objetivos:

a) – dar nova dimensão à luta do indivíduo pela sua libertação, fornecendo como ferramenta jurídica o princípio do devido processo legal, cuja origem remonta à Magna Carta Inglesa de 1215, e que representa uma das maiores conquistas do homem no sentido de, por um lado, ter um julgamento justo e imparcial e, de outro, conter a atuação estatal dentro de limites aceitos pela sociedade democrática;

b) – evidenciar que o Poder Estatal deve ser exercido limitadamente dentro do contexto democrático e republicano (os ocupantes, eleitos, dos cargos políticos devem ser rodiziados a curto prazo), dando-se relevância às salvaguardas da separação dos poderes e do controle de um sobre os outros dois ramos, através da doutrina dos freios e contrapesos (Checks and Balances);

c) – analisar e trazer a debate algumas estruturas existentes no Brasil, originárias do tempo da monarquia imperial (D.João VI, Pedro I e Pedro II), evidenciando sua situação de incompatibilidade com a democracia, que se assenta, sobretudo, na igualdade com a liberdade, visando ao aperfeiçoamento das instituições políticas;

d) – reavaliar, dentro dessa conjuntura, a posição do Poder Judiciário, sugerindo- se uma mudança substancial: o juiz deixará de ser apenas um técnico em Direito, preocupado apenas com a execução da lei formal, passando a atuar como agente político, em correta correspondência com sua participação fracionária do Poder Estatal. Adotando essa nova postura, o juiz deixará de ser um mero aplicador da lei, tornando-se, antes de tudo, o defensor das instituições democráticas e realizador da Justiça. Assim, o Poder Judiciário passará a controlar efetivamente a atuação dos dois outros ramos do Governo e, de outro lado, ao confrontar verticalmente a lei (regra periférica) com a Constituição (norma matriz), dará prevalência à realização dos preceitos da Lei Fundamental, realizando, com isso, a vontade do povo, que é a fonte primária de todo poder estatal. Note-se que a lei é feita pelos representantes do povo (deputados e senadores), os quais não detém poderes superiores ao representado, que os elegeu e lhes delegou o poder de representação. Logo, a lei não pode violar a Constituição, ou prevalecer sobre ela. Nem mesmo pode a Constituição depender de lei para sua implementação;

e) -democratizar o próprio poder judiciário, introduzindo nele a participação popular pela ampliação da competência do júri, o que lhe dará maior legitimidade, de tal modo que sua atuação também fique sujeita ao debate e controle públicos.

Evidentemente a abordagem, aqui resumida, não esgota a profunda e ampla dimensão da cláusula do devido processo, cujo mundo fascinante deverá ser descoberto e palmilhado por todos que amam a liberdade e detestam o arbítrio, que é o inimigo maior da cidadania.


[1] Silveira, Paulo Fernando. Devido Processo Legal (Due process of Law). Belo Horizonte: Ed.Del Rey, 2001, 3ª ed.

[2] Silveira, Paulo Fernando. Freios e Contrapesos (Checks and Balances). Belo Horizonte: Ed.Del Rey, 1999, pgs.85/94.

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