Quem tem medo da Constituição Federal
5 de outubro de 2011, 20h37
Ao completar 23 anos no dia 05 de outubro deste ano, a Constituição da República Federativa do Brasil consolida o maior período de normalidade democrática já vivido na história política brasileira, mostrando o acerto dos constituintes de 1988, quando legaram ao Brasil uma Carta cidadã que impulsiona o país rumo a um Estado Social e Democrático de Direito.
Isso porque, sem abrir mão dos direitos de liberdade e das garantias formais de limitação do poder – tais como a separação dos poderes e o sistema de freios e contrapesos, típicas da proposta liberal, a Constituição de 1988 contemplou os direitos sociais em igual dimensão fundamental, dando ensejo a um novo papel para o Estado brasileiro: conciliar o modo de produção capitalista com as exigências de socialização dos bens e serviços e promoção de maior igualdade real, não apenas perante a lei. Assim, a preocupação social aliou-se à restauração da democracia enquanto diretrizes maiores da nação.
Ao se compreender a Constituição não apenas como texto legal, mas como um projeto que se realiza na progressiva tensão entre as imposições normativas e as condições históricas e políticas da sociedade, tem-se que ela se realiza a cada dia, como se fosse uma casa em construção, em que as paredes foram erguidas em 1988 e os cômodos, os móveis e os ornamentos são construídos ao longo do tempo.
Nesse sentido, baseando-se nos ensinamentos do constitucionalista alemão Konrad Hesse, uma Constituição, ao ser promulgada, nasce com pretensão de eficácia, o que significa reconhecer que uma lei, sozinha, não muda o mundo, mas busca concretização progressiva a depender da vontade da população que a anima – ou seja, dos cidadãos que são sua alma e seus intérpretes.
Desse modo, contra qualquer acusação de que nossa Constituição é utópica, deve-se compreender que sua força normativa (norma-ativa) não está restrita aos limites do possível, mas sim concentrada em seu potencial de efetivação a ser aferido de acordo com as condições sociais, políticas e econômicas de cada momento. Portanto, ações materialmente impossíveis em 1988, podem se tornar plenamente realizáveis e economicamente viáveis em 2012 ou, quiçá, 2018, quando completar seus 30 anos.
Tome-se, como exemplo, o caso do direito à saúde, previsto no artigo 196 da Constituição. Acerca desse dispositivo, nossa melhor doutrina constitucionalista entende que ele expressa um direito público subjetivo, o que significa dizer que, toda vez que um cidadão fica doente e o estado não fornece os meios para sua cura, essa recusa se transforma numa violação à lei fundamental que, por sua vez, gera o direito de ação para o cidadão, que recorre ao judiciário para ter seu direito à saúde atendido.
Imagine-se, então, um paciente soropositivo que em 1988 apelasse ao judiciário, pedindo que o estado garantisse sua saúde, com base no citado dispositivo constitucional. Tal pretensão, ainda que justificável, não poderia ser atendida pelo magistrado, já que o pedido era materialmente impossível em razão da inexistência de tratamento adequado à época. Contudo, em torno de dez anos depois os medicamentos se tornaram mais precisos e já era possível um tratamento crônico que mantivesse a doença sob controle.
Mais ainda: hoje, decorridos 23 anos após a promulgação da Constituição, os coquetéis anti-HIV não apenas existem, mas seus custos se tornaram muito mais baixos – em grande parte em razão da vontade política que, inclusive, ameaçou quebrar as patentes de medicamentos – tornando economicamente viável seu fornecimento universal pelo estado. Como consequência, o programa federal de provisão desse tipo de medicamento se tornou referência mundial e o mandamento constitucional foi, neste caso, satisfatoriamente atendido.
Esse exemplo mostra a importância de se perceber o quanto é importante a compreensão de que a Carta de 1988 impõe um projeto de país que ainda não foi concretizado, mas que em razão de sua força vinculante, faz dela a grande locomotiva das políticas públicas e das decisões judiciais, ditando os rumos, por assim dizer, da ação governamental nos três poderes da república, sendo daí seu caráter dirigente. Daí a inevitável pergunta: quem tem medo do presente e do futuro da Constituição?
Desta feita, ao postular que a Constituição de 1988 se tornou um marco no processo civilizatório brasileiro ao guiar o país no rumo da plena cidadania, propõe-se que essa grande obra do legislador constituinte ainda tem muito fôlego para compelir os poderes a agirem em prol da efetivação dos direitos nela previstos, mesmo que de maneira progressiva, pois o caminho ainda é longo (apenas no âmbito legislativo, são necessárias algo como 35 leis para regulamentá-la) e a carência na satisfação dos direitos impressiona. Do mesmo modo, desacreditá-la a essa altura do campeonato, com o jogo em andamento e o time no ataque, só pode ser manifestação de grande oportunismo político, típico de gente sem causa nem ideologia, ou mesmo comprometida com as mais mesquinhas razões de mercado.
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