Mistura Racial

2011 foi o ano Internacional do Afrodescendente

Autor

  • César Augusto Baldi

    é mestre em Direito pela ULBRA-RS doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha) e servidor do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Porto Alegre) desde 1989.

20 de novembro de 2011, 10h22

A ONU estabeleceu 2011 como o ano internacional do afrodescendente. As efemérides são, somente na aparência, momentos de comemoração. Na realidade, devem ser momentos de reflexão, de denúncia e de avaliação de perspectivas. Destaquem-se alguns pontos a repensar.

1. Mestiçagem, construção da nação e identidade. Predominou no Brasil a valorização de uma união nacional, que seria a confluência -pacífica, cordial e amistosa- entre brancos, negros e indígenas, num ideal de mestiçagem que seria, por sua vez, o contraponto de experiências dolorosas como o Jim Crow dos Estados Unidos ou o apartheid da África do Sul. Mas sempre foi um ideal de “mestiço” tanto mais aceitável quanto mais próximo fosse do branco europeu que do indígena ou do negro vindo da África: foi muito mais uma aculturação eurocentrada e de branqueamento. Marisol de la Cadena destaca, contudo, que na denominada América Latina conviveram tanto a hibridação empírica (mescla de sangues) quanto a hibridação conceitual.[1]

A própria categoria de “mestiço”, como recorda Boaventura Santos, oculta inúmeras diferenças sociais, de tal forma que “ao lado do indígena-branco coexistiu sempre o mestiço-índio e que suas relações reproduziram, fundamentalmente, a diferença colonial e racial”[2]. Daí porque este autor afirma que deve se trocar o mestiço como amálgama pelas expressões mais oprimidas de mestiço[3].

A questão se torna mais importante ainda, quando se tem em conta que: a) o “casal ideal” brasileiro foi sempre tido como uma dupla formada por um homem branco e uma mulher mulata e, pois, associando masculinidade e brancura e, ao revés, feminilidade e negritude, de um lado ocultando a presença indígena e, de outro, salientando a construção heterossexual da nacionalidade; b) estão a celebrar-se, por todo o continente, inúmeros “bicentenários” de independência e, pois, momentos de repensar a construção do imaginário nacional, desconstituir identidades e descolonizar as próprias relações sociais. A luta antirracista é, neste ponto, também uma luta contra sexismo, colonialismo e homofobia.

2. Diáspora africana e o tráfico de escravos. Ao contrário dos indígenas que foram considerados “povos originários”, os negros foram trazidos ao continente em decorrência do processo de escravidão, divididos em suas comunidades quando aqui chegaram e produzindo-se formas de separação como mecanismos de melhor dominação, procurando-se evitar sublevações. A luta antirracista, vista desde o Sul, deve envolver-se com os processos de combate ao racismo realizados também em outras partes do mundo, incluindo-se o Atlântico Norte, de forma a amalgamar as experiências da pregação cristã de Luther King e da crítica, por meio de direitos humanos, de Malcolm X, com as formas de amefricanidade de Lélia Gonzalez e do quilombismo do recém falecido Abdias do Nascimento.[4] Mas também as experiências descolonizadoras realizadas no continente africano. O tráfico de escravos deve recordar as “modernas” formas de opressão, que envolvem: a) a persistência de formas de escravidão por dívida, em inúmeras fazendas espalhadas pelo Brasil; b) o tráfico de pessoas, de órgãos e a mercantilização da vida, que se torna de nenhum sentido; c) a geopolítica atual que incrementa o ódio a imigrantes e muçulmanos e que não pode esquecer que, nos Estados Unidos, o endurecimento de leis contra a imigração ocorre justamente nos Estados que foram os mais ferrenhamente escravocratas. A luta, aqui, envolve uma sinergia entre distintas lutas antirracistas- de Sul e Norte- com o combate à xenofobia e à islamofobia (recorde-se que a luta anti apartheid se deu, fundamentalmente, com apoio da comunidade muçulmana da África do Sul).

3. Biodiversidade e meio ambiente. Estima-se que 75% da biodiversidade no continente americano esteja concentrada em terras habitadas por povos indígenas e populações tradicionais (aqui, incluídas as comunidades quilombolas e afro-ameríndias). O que significa reconhecer um forte componente étnico-racial na preservação do meio ambiente, uma pluralidade de formas de propriedade (que não se reduzem à propriedade privada ocidental) e, portanto, uma imensa cobiça por parte de grandes latifundiários, mineradoras, indústrias de celulose para retirar o caráter de inalienabilidade de tais terras e, pois, incluí-las no mercado. A luta envolve um forte componente de antirracismo associado a diversas formas de preservação ambiental (e mesmo coalizões de “buen vivir” e modos africanos de sustentabilidade) e ao questionamento do sistema capitalista, ainda mais se considerando que 2011 também é o ano internacional das florestas e que estamos às vésperas de Rio +20.

4. Educação e produção de conhecimento. Se os indígenas iniciaram questionando a educação com o bilinguismo, os afrodescendentes insistiram em políticas públicas de ações afirmativas. Hoje, os dois movimentos avançam no sentido de uma forte interculturalidade, no reconhecimento de autonomias ou de plurinacionalidade, mas também de questionamento do próprio currículo (educações especiais indígenas ou quilombolas), de introdução de “epistemologias outras” e de revisão de privilégios históricos. Como diz Katznelson, há que se reconhecer que, durante muito tempo, a ação afirmativa foi “branca”[5] ; recorde-se que, ao introduzir a compra como forma de aquisição de propriedade, a Lei de Terras de 1850 não fez nada menos que excluir toda a população negra- ainda escrava- do seu acesso. Do que se trata, pois, é, como salientam Catherine Walsh, Schiwy e Castro-Gomez, de indisciplinar, no sentido de[6]: a) fazer “evidente o disciplinamento, a dis­ciplina e as formações disciplinárias que se vem construindo nas ciências sociais, desde o século XIX e fazer ressaltar seu legado colonial”; b) antes que ignorar ou menoscabar as ferramentas teóricas ou con­ceitos centrais das ciências sociais, fazê-las comunicarem-se e “repensar sua utilidade ou seus efeitos sobre as relações coloniais, perguntando até que ponto estas ferramentas per­petuam a ló­gica vigente”; c) buscar modificações e ajustes às ferramentas e conceitos do pensar moderno e, quando seja necessário, também alternativas frente ao mundo moder­no/coloni­al; d) reconhecer outras formas de co­nhecimento, “particularmente os conheci­mentos locais produzidos a partir da diferença colonial e os cruzamentos e fluxos dialógi­cos que podem ocorrer entre eles e os conhecimentos disciplinários”. A luta antirracista é, vista assim, uma luta contra o epistemicídio e os diversos colonialismos internos.

5. Tratados internacionais. O ano internacional coincide com os 20 anos da Convenção 169-OIT, que deu novo tratamento para os povos indígenas e populações tradicionais; passados dez anos de Durban e, pois, do reconhecimento da escravidão, da colonização e do tráfico de escravos como males da humanidade; e também às vésperas de 20 anos da Conferência de Viena que reafirmou a indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos. A luta, aqui, não é somente para a ampliação dos direitos humanos, mas, fundamentalmente, da revisão da própria base em que estes se fundamentam e que têm conferido, na prática, a qualidade de “humanos” a certos indivíduos, reduzindo outros a sub humanidade ou mesmo inumanidade. [7]


[1] DE LA CADENA, Marisol. ¿ son los mestizos híbridos? las políticas conceptuales de las identidades andinas. Universitas Humanística, (61), enero-junio 2006, p. 51-84.

[2] SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado en América Latina; perspectivas desde una epistemología del Sur. Lima: Instituto Internacional de Derecho y Sociedad, julio de 2010, p. 101.

[3] Ibidem, p. 102.

[4] BALDI, César Augusto. Racismo, consciência negra e direitos humanos. Consultor Jurídico, 30 de dezembro de 2010. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2010-dez-30/constitucionalismo-intercultural-reconhecer-questao-diversidade

[5] KATZNELSON, Ira. New Deal, Raw Deal. How aid became affirmative action for whties. Washington Post.27 september 2005. Disponível em: http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2005/0http://whoisshe.wmf.org.eg/expert-profile/mona-abaza9/27/AR2005092700484.html

[6] WALSH, Catherine, SCHIWY, Freda & CASTRO-GOMÉZ, Santiago. Introducción. IN: Indisciplinar las ciencias sociales. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar/ Abya Yala, 2002, p. 14.

[7] Vide, também: MISKOLCI, Richard. Feminismo y derechos humanos. IN: ESTÉVEZ, Ariadna & VÁSQUEZ, Daniel. Los derechos humanos en las ciencias sociales: una perspectiva multidisciplinaria. México: FLACSO, CISAN, 2010, p. 185; BUTLER, Judith. Deshacer el gênero. Madrid: Paidós, 2010, p. 14.

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    é mestre em Direito pela ULBRA-RS, doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha) e servidor do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Porto Alegre) desde 1989.

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