Ideias do Milênio

"As nossas escolas não formam para a nova economia"

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18 de novembro de 2011, 12h23

Entrevista de Nayan Chanda, historiador e diretor do Centro de Estudos sobre Globalização na Universidade de Yale, ao jornalista Lucas Mendes. A entrevista foi transmitida no dia 8 de novembro no programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça; 5h30 de quarta; e 7h05 de domingo. Leia, a seguir, a transcrição da entrevista:

Equipe Milênio/GloboNews
Na década de 60 um ensaio sacudiu os brasileiros. O autor descrevia como da manhã à noite, da escova de dente à lâmpada que apagava antes de dormir, tudo nosso era importado ou fabricado pelos americanos. Em apenas duas gerações houve uma mudança extraordinária. Quase nada que usamos é fabricado nos Estados Unidos, e os americanos estão na mesma situação. Consomem produtos importados ou que tem componentes de outros países, a maioria da China. Na história houve períodos de comércio intenso e livre, mas nada se compara aos últimos 50 anos. Foi a Globalização, uma palavra às vezes irritante, mas Nayan Chanda escreveu um livro fascinante sobre como comerciantes, missionários, aventureiros e soldados moldaram e amarraram o mundo “Bound Together”, em português, “Sem Fronteira”. Hoje ele dirige o centro de publicações sobre estudos da globalização e é o editor da YaleGlobal Online.

Lucas Mendes — Vamos começar pelo título do livro. Em inglês, ele se chama “Bound Together”, e, em português, ele se chama “Sem Fronteira”.
Nayan Chanda —
Certo.

Lucas Mendes — É levemente diferente. Qual descreve melhor as intenções do livro?
Nayan Chanda —
Acho que “Bound Together” soa melhor porque essa é a essência da globalização. Mesmo sem darmos conta, estamos inteligados por milhares e milhares de conexões.

Lucas Mendes — O senhor afirma que existem quatro agentes que nos mantêm interligados: comerciantes, missionários e militares. Então, seguindo a ordem do livro, quais foram os momentos mais marcantes na atividade dos comerciantes?
Nayan Chanda —
O comércio começou no terceiro milênio na Mesopotâmia. Em 2.700 a.C. Também foi nessa época que a escrita foi inventada. A escrita foi inventada para facilitar o comércio. Registrava-se a quantidade de navios, a quantidade de algodão que era transportado de um lugar para outro. Comerciantes começaram a escrevem em placas de argila para que o comércio gerasse lucro e qualidade de vida, e, com isso, a língua evolui. Inicialmente, o comércio se limitava a poucas centenas de quilômetros. Depois, começara a usar barcos a vela para atravessar o Mar Arábico em busca de especiarias na Índia.

Lucas Mendes — Então foram a escrita, os barcos e as especiarias.
Nayan Chanda —
E tudo era movido pelo desejo de uma vida melhor. Por que viajar 800 km montado em um jumento e passar anos a fio vendendo algodão ou prata em troca de alguma coisa senão para gerar lucro e viver melhor? No livro, escrevo um conto sobre uma placa de argila que foi mandada por uma mulher ao marido comerciante.

Lucas Mendes — Eu lembro.
Nayan Chanda —
A placa dizia: “Desde que você foi embora, nosso vizinho, Salim-ahum, dobrou o tamanho da casa. Quando poderemos fazer o mesmo?” Essa podia ter sido a mensagem de uma mulher para o marido através do BlackBerry hoje em dia. É o mesmo desejo por qualidade de vida. Ele tinha de ganhar dinheiro.

Lucas Mendes — O livro é muito interessante e deleitável porque inclui muitas histórias como essa. O senhor vai da árvore à floresta, desde uma microperspectiva até uma macroperspectiva. Uma das histórias interessantes foi sobre o chá. Conte-nos.
Nayan Chanda —
Talvez mais interessante ainda seja a história do café.

Lucas Mendes — Mais do que a do chá?
Nayan Chanda —
Porque o chá veio da China, foi introduzido na Índia, depois chegou ao Sri Lanka, ao Quênia, se espalhando, basicamente, pelas colônias britânicas.

Lucas Mendes — Os monges bebiam chá?
Nayan Chanda —
Isso. O chá era conhecido na China, mas não era popular. Eu os monges perceberam que o chá tem a qualidade de deixar acordado. Eles bebiam chá para ficarem mais tempo acordados, prolongando a oração a Buda. Esse mesmo desejo de orar por mais tempo fez do café o vinho islâmico.

Lucas Mendes — Tinha o mesmo…
Nayan Chanda —
O mesmo propósito. Descobriram que o café tem a qualidade de deixar acordado.

Lucas Mendes — Vamos aos missionários. No mesmo sentido, quais são os principais eventos e os principais agentes entre os missionários?
Nayan Chanda —
Costumam associar os missionários ao cristianismo, mas, na verdade, o budismo foi a primeira religião evangélica do mundo. Buda nasceu 600 anos antes de Cristo e, depois que fez a meditação e aprendeu como salvar seres humanos do sofrimento perpétuo, ele disse aos discípulos para espalhar a palavra. Esse era o meio de chegar à salvação. Então, ele não quis se limitar e falar pessoalmente com os discípulos. Eles espalharam a palavra pelo mundo. Eles levaram a religião à China, à Coreia, ao Japão, ao Sudeste Asiático, e, em 500 anos, o budismo havia se espalhado por todo o Leste Asiático.

Lucas Mendes — Se não me engano, no capítulo sobre os missionários, o senhor conta uma história sobre um jantar oferecido a um embaixador brasileiro. Acho que era despedida dele numa churrascaria aqui perto. E algo aconteceu. Tinha ligação com o Sudão e os direitos humanos…
Nayan Chanda —
Com Darfur.

Lucas Mendes — Darfur. Qual foi a conexão?
Nayan Chanda —
Eu escrevi que, na Idade Moderna, há um novo tipo de missionário, os missionários seculares. Eles não têm religião, mas acreditam em certas ideias, como os direitos humanos. Então ambientalistas e ativistas de direitos humanos são um novo tipo de missionário. Eu conto a história sobre um indivíduo do Human Rights Watch, com sede em Nova York, que estava lutando em defesa da aprovação de uma resolução da ONU que condenava a violação dos direitos humanos em Darfur. Esse jantar foi crucial para que ele conseguisse convencer os membros do Conselho de Segurança da ONU. Esse é um novo tipo de atividades de missionários. Alguém sentado em Nova York está afetando acontecimentos em Darfur, na Líbia ou em outros lugares. É parecido com a influência de missionários cristãos, islâmicos ou budistas.

Lucas Mendes — Falamos de comerciantes, missionários, agora, vamos aos aventureiros. Quais eram as principais influências?
Nayan Chanda —
Aventureiros são aqueles que têm a curiosidade de saber o que está por trás de um rio ou de uma montanha. Eles querem conhecer a população, a fauna e a flora, os costumes. Essa curiosidade leva os agentes a grandes riscos porque estão diante do desconhecido. Eles saem a pé, montados em cavalos, jumentos, camelos… Não é por dinheiro nem por religião.

Lucas Mendes — Só para conhecer.
Nayan Chanda —
Por curiosidade. Nesse sentido, o primeiro “turista” foi Ibn Battuta. Ele era um jurista marroquino, um jurista islâmico, que tinha o desejo insaciável de conhecer o mundo, então ele saiu montado num camelo.

Lucas Mendes — Durante 30 anos.
Nayan Chanda —
Foram 30 anos! Ele viajou cerca de 115.000 km durante a vida. Ele conheceu a Ásia Central, a África, a Ásia. Sua crônica é um retrato e serve de ponte a um mundo que jamais teríamos conhecido. Cristóvão Colombo pode ser considerado aventureiro, comerciante e missionário.

Lucas Mendes — Ele era…
Nayan Chanda —
Católico. Além disso, ele queria lucrar comercializando especiarias para montar um exército que tomasse Jerusalém dos muçulmanos. Essa era sua ideia. Em certo sentido, ele era missionário, aventureiro e comerciante.

Lucas Mendes — Enfim, chegamos ao quarto e último agente da globalização, segundo o senhor. Nessa parte, assume importância o papel dos impérios. Já existiram inúmeros impérios. É mais ou menos um por século ou alguns duraram mais?
Nayan Chanda —
Alguns duraram até três séculos. Um dos primeiros imperadores do mundo foi Sargão, na Mesopotâmia. Ele deixou uma placa de argila na qual se autoproclamava “imperador do universo”. Seu universo se restringia ao Mediterrâneo e ao Golfo Pérsico. Esse era o universo conhecido. Então ele era o imperador de toda região que ele conhecia. Alexandre, o Grande queria expandir o império além do mundo conhecido. Ele chegou até o Oeste da Índia, até Punjab, e, depois, voltou. O crescimento dos impérios dependia da tecnologia. Cavalos, elefantes, charretes, barco a vela com armas faziam ampliar a área de controle. O maior império em extensão foi o Império Mongol, que ia do Mar da China Meridional na Ásia, até o Mar Negro, na Europa. O território todo estava sob controle devido ao domínio da cavalaria. Não só a cavalaria, o estribo. O estribo permitia que os mongóis pudessem ficar em pé ao atirar flechas. Isso foi algo novo porque, antes, se caía do cavalo. Então o estribo permitia que ficassem em pé e atirassem flechas. E isso era letal. Por isso, os mongóis dominavam.

Lucas Mendes — Se pensarmos em relação à combinação entre comércio e novas tecnologias, qual império recente foi o mais ativo e essencial na globalização?
Nayan Chanda —
O Império Britânico. O Império Britânico se baseava em comércio, não tanto em conquistas. Isso estreitou os laços entre as pessoas. E o comércio possibilitou a imposição da língua. É interessante notar que o inglês se tornou a língua internacional por causa do Império Britânico, seguido pela expansão dos EUA, da Índia, da Austrália, todas colônias britânicas que faziam comércio entre si. O legado do Império Britânico foi ampliado ainda mais.

Lucas Mendes — Liquidou o francês. Será que agora vamos aprender chinês?
Nayan Chanda —
Esta questão está sendo abordada. Na verdade, o chinês talvez seja hoje a língua estrangeira mais popular do mundo. O chinês é aprendido no mundo todo. As pessoas estão pensando que, para se darem bem na vida, terão que aprender chinês. No período helênico, o grego era a língua dos comerciantes. Depois foi o farsi, a língua persa, seguido pelo árabe, o inglês, ou o português.

Lucas Mendes — Houve uma época, até recentemente, em que a globalização estava a passos mais lentos até que começou a andar mais rápido? Quando isso aconteceu? Nos anos 1960?
Nayan Chanda —
Eu acho que a primeira aceleração da globalização foi no século 1, com a descoberta das monções, ventos que, no Oceano Índico, percorrem um ciclo anual. A rota pelo Mar Vermelho levava à Índia em três semanas, em vez de dois anos navegando ao longo da costa. Esse foi um período de globalização. Esse sistema que constituía em barcos a vela e vento continuou por quase dois mil anos, até a descoberta do motor a vapor. O motor a vapor, em meados do século 19 fez o vento perder importância. Ele permitia que chegassem em qualquer lugar. O motor a vapor permitiu que a América do Sul se abrisse, fazendo com que, por exemplo, grãos e carne argentinos chegassem à Europa para serem consumidos. O comércio ganhou volume e em velocidade. A terceira revolução veio com a invenção do motor a combustão, ou seja, de automóveis e navios a diesel. Depois, veio o avião.

Lucas Mendes — Foi tudo muito rápido.
Nayan Chanda —
Foi. E, depois, veio a internet, a revolução eletrônica, na qual tudo que é convertido em dígitos pode se mover na velocidade da luz. Música, textos, imagens que podem ser enviadas na velocidade da luz.

Lucas Mendes — Quem foram os maiores beneficiados pela globalização e quem foram os mais afetados?
Nayan Chanda —
Aqueles com educação e infraestrutura. Educação para dominar a tecnologia, e infraestrutura para semear o futuro. Por exemplo, um país que exporta muito precisa de bons portos, com capacidade para cargas grandes, de um bom sistema de transporte para trazer bens do interior até o porto, de um bom sistema de telecomunicação para garantir que o porto seja bem utilizado e os navios não fiquem três semanas para embarcar mercadorias. Quem tem infraestrutura e educação está entre os beneficiados, quem não tem fica para trás.

Lucas Mendes — E o abismo entre ricos e pobres está crescendo. Como se corrige isso?
Nayan Chanda —
Essa é a questão interessante. Para corrigir isso, é preciso em primeiro lugar, criar condições para que aqueles que manejam os lucros aceitem distribuí-lo. Eles têm responsabilidade social perante os cidadãos. Nos EUA, nos últimos dez anos, as empresas eliminaram 2,4 milhões de empregos e criaram 2,5 milhões de empregos no exterior.

Lucas Mendes — É quase equivalente.
Nayan Chanda —
E, ao longo do processo, eles lucraram bastante porque estão pagando menos em salários. Então, o lucro está crescendo exponencialmente, mas o dinheiro é mantido fora para não pagar impostos. Não há distribuição via impostos. Mas isso é parcial. O mais importante é criar infraestrutura, trens e internet de alta velocidade, educação, para que todos tirem proveito da nova economia digital. Nosso sistema educacional é do século 19. É uma educação clássica. Você aprende a ser balconista, contador, enquanto a nova economia exige alguém que entenda lógica…

Lucas Mendes — Quais seriam as profissões ideais?
Nayan Chanda —
Nessa nova economia é importante desenvolver a lógica e o raciocínio e aprender a solucionar problemas. Podemos solucionar problemas de diversas maneiras, mas precisamos desenvolver a lógica e o raciocínio. A matemática, é claro. A inovação é o único caminho para aumentar o rendimento.

Lucas Mendes — E os empregos técnicos?
Nayan Chanda —
Para exercer um trabalho técnico, em vez de aprender literatura, poesia e princípios básicos de economia, a pessoa precisa cursar escolas técnicas para adquirir habilidades. Existe uma escassez na indústria americana. Quase 1 milhão de empregos não foram preenchidos por falta de pessoas competentes.

Lucas Mendes — A China parece ir muito bem sem democracia. Ela conseguirá se manter assim?
Nayan Chanda —
Eu acredito que não. Porque estão com medo da própria sombra. Estão prendendo poetas, advogados, artistas. Se eles têm tanto poderio econômico e militar, qual é o medo? Eles têm medo de ideias, ideias que desafiem o monopartidarismo, ideias que queiram participação democrática. Eles estão numa situação em que, para se manter no poder, eles precisam continuamente produzir bens. Essa é a única justificativa para o monopartidarismo. E, para tal, eles mantêm custos muito baixos para tornar os produtos mais atraentes. Ao mesmo tempo, estão criando inflação. Eles estão numa situação…

Lucas Mendes — Numa bomba-relógio.
Nayan Chanda —
Sim.

Lucas Mendes — Minha última pergunta… O que seria mais perigoso e poderia levar a globalização a sair dos trilhos: terrorismo, populismo? Se o movimento Tea Party crescer mais nos EUA, está arriscado que eles fechem o país. Então, quais são as ameaças à globalização?
Nayan Chanda —
Acho que o terrorismo é uma ameaça temporária. Depois do 11 de Setembro, a fiscalização na alfândega foi intensificada, e o comércio sofreu queda. Após desenvolverem a tecnologia, ficou mais rápido. Não estão mais prendendo e fiscalizando cargas durante duas semanas. Eles desenvolveram tecnologia. A ameaça do terrorismo é mínima. Pessoas virando as costas para a liberdade comercial e cortando laços com o mundo exterior é uma ameaça muito maior. Por exemplo, na Europa. Na Europa, muitos países estão vendo a emergência de partidos de extrema direita, anti-imigração, anticomércio, parecido com o Tea Party nos EUA. Essas pessoas foram afetadas pela globalização. É compreensível que estejam frustradas, mas elas não estão atacando a causa, estão atacando os sintomas. Essa abordagem antiglobalização e anticomércio não vai trazer prosperidade ou conforto. Só tornará as coisas ainda mais caras e mais difíceis de obter. Imagine se pararmos de importar camisetas chinesas. A camiseta produzida na Carolina do Sul custará US$ 60, e não US$ 6, como as chinesas.

Lucas Mendes — Muito obrigado por vir de Yale para conceder a entrevista.

 

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