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TRF-2 rejeita denúncia contra três juízes acusados de formação de quadrilha

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16 de novembro de 2011, 18h00

 O Pleno do Tribunal Regional Federal da 2ª Região rejeitou a denúncia contra três juízes federais, três advogados e dois peritos acusados, em dezembro de 2007, de formarem uma quadrilha que através de decisões judiciais inusitadas provocaram grande prejuízo à Caixa Econômica Federal no final da década de 1990. O julgamento aconteceu no dia 6 de outubro e foi mantido sob segredo de Justiça.

Uma decisão anterior do Superior Tribunal de Justiça rejeitou a acusação contra a desembargadora federal L.M.F.R., denunciada quando ainda era juíza federal da 8ª Vara Cível do Rio de Janeiro, ao lado do marido, o desembargador J.R.S.R., que morreu em julho de 2008, sete meses após a denúncia. De acordo com o Ministério Público, os desembargadores fariam parte da mesma quadrilha absolvida pelo TRF-2 no mês passado.

A peça de acusação, assinada pela subprocuradora-geral da República Claudia Sampaio Marques e apresentada originalmente no STJ por conta do foro privilegiado de R.R., acusava os réus de formação de quadrilha, estelionato e peculato. Os dois peritos também responderiam por falso testemunho. Com a morte do desembargador, o caso desceu para o TRF-2, mas acabou voltando ao STJ quando L.R. foi nomeada desembargadora do TRF-2, em dezembro de 2008. Lá, a denúncia contra ela foi rejeitada em razão da ausência de narrativa de fato criminoso.

A subprocuradora afirma na acusação que alguns juízes federais do Rio de Janeiro deferiram liminares para saques do FGTS “sob uma argumentação política de suposta linha progressista/liberal, cujo mote principal poderia ser sintetizado na frase ‘o dinheiro depositado no fundo pertencia ao trabalhador’”. Ela citou na acusação os juízes S.M.P.M., da 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro; L.R., até então da 8ª Vara Federal; o juiz federal R.R., que comandou a 18ª Vara Federal; e a 19ª Vara, titularizada pelo desembargador federal J.E.C.A.

“Em pouco tempo percebeu-se que algumas dessas ações continham características típicas de fraude, tais como a inclusão dupla e até tripla de titulares das contas vinculadas ao FGTS. Ainda causava espécie o fato de que as ações, sempre coletivas, eram titularizadas por associações com sedes em outros estados da Federação que não só buscavam a Seção Judiciária do Rio de Janeiro, como manipulavam o sistema de livre distribuição para forçar a escolha daquelas Varas Federais já mencionadas, onde seus pleitos — sabia-se de antemão — seriam prontamente atendidos”, escreveu a subprocuradora.

O desembargador C.A., cujo nome aparece na lista de juízes que deram liminares para saques de FGTS colocadas sob suspeição pela denúncia, não foi denunciado neste caso, mas posteriormente foi afastado das funções pelo Conselho Nacional de Justiça, sob suspeita de venda de decisões para liberar máquinas caça-níqueis. Também relacionada na lista, a então juíza e hoje desembargadora S.M. não teve o nome no rol de acusados com os demais colegas.

No julgamento do dia 6 de outubro, ela não viu necessidade de se dar por impedida e votou ora pela improcedência da denúncia, ora pela sua rejeição. Já as desembargadoras L.R. e N.L.C. se consideraram impedidas durante todo o julgamento.

A acusação
A denúncia apresentada no STJ acusa os réus de formação de quadrilha, estelionato e peculato. Os dois peritos também responderiam por falso testemunho. Na acusação, a subprocuradora responsabilizou a então juíza L.R., por decisões que liberaram recursos do FGTS, no processo cuja distribuição, segundo a subprocuradora, foi dirigida àquela vara.

Para isto, segundo o MPF, o advogado G.M.H.S. ajuizou em novembro de 1999, quatro medidas cautelares com idêntico objeto, mudando apenas o nome das partes autoras. No Processo 99.00559945-4, distribuído à 8ª Vara Federal, cuja titular era L.R., ele peticionou em nome da Associação dos Servidores da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, requereu a sua inclusão no processo e pediu a liberação de todo o saldo constante nas contas de FGTS dos servidores da saúde baianos. Para a subprocuradora ficou evidente "que houve clara 'escolha' de juízo, em franca violação ao princípio do juiz natural".

A liminar foi deferida com ordem de busca e apreensão dos valores depositados o que permitiu o saque no dia seguinte do ajuizamento das quatro medidas cautelares de um total de R$ 13.044.929,85. A acusação destacou como fato curioso o registro feito pelo oficial de Justiça: "Por ordem verbal da MM Juíza da 8ª Vara Federal, Dra. L.M.F.R., não foi cruzado". A subprocuradora concluiu ter sido "nítida a intenção deliberada da magistrada em facilitar a retirada do numerário pelo denunciado, em verdadeira 'sangria' aos cofres públicos".

Depois, a associação modificou seu estatuto e passou a representar todos “os servidores públicos da administração direta o estado da Bahia”. Logo após, M. ajuizou a Ação Ordinária 2000.51.01.008867-0, com o pedido de antecipação integral de tutela para levantar os saldos das contas de FGTS. Segundo a subprocuradora, a Caixa foi obrigada a entregar o dinheiro sem poder verificar se realmente os valores correspondia ao crédito total. Depois dos saques foram constatadas irregularidades: contas sem saldo, duplicidade de extratos, depósitos após a mudança de regime, divergências cadastrais, contas bloqueadas por decisão judicial, extratos em nome de pessoas não figurantes da ação e pessoas na ação que não constavam do extrato. O prejuízo foi calculado em, pelo menos, R$ 5.870.424,87.

Criminalização do convencimento
A denúncia foi rejeitada tanto pelo ministro relator, Nilson Naves, como pelo ministro Ari Pargendler, responsável pelo voto-vista do processo no Superior Tribunal de justiça. Para Naves, era o caso de se rejeitar a denúncia “posto que se tenha imputado estelionato e peculato (…) — e se pretenda, estranhamente, a esse propósito, seja reaberta, no momento atual, a investigação de ordem policial — não há, lá na denúncia, palavras segundo as quais tenha a denunciada, quanto ao estelionato, obtido, para si, vantagem ilícita, e, quanto ao peculato, tenha a desembargadora se apropriado de dinheiro". Ele acrescentou: “O que se acha mesmo em xeque são atos processuais, a saber, o teor de decisões”.

Pargendler, por sua vez, considerou que a acusação tinha “um defeito formal (inépcia) e outro material (atipicidade)” e explicou: “No primeiro caso, porque a denúncia devia ter descrito quais as condutas da denunciada que implementaram o tipo penal de quadrilha, de estelionato e de peculato; o uso de palavras contidas no tipo, tão somente, caracteriza a inépcia da denúncia.”

Quanto à atipicidade, endossou a tese de Naves, e frisou: “O convencimento judicial não pode ser criminalizado.” O voto do relator foi acolhido à unanimidade.

Segunda instância
No Tribunal Regional Federal da 2ª Região, a chefe da Procuradoria Regional da República, Cristina Romanó, não insistiu no pedido de Ação Penal contra as juízas S.S., hoje na 5ª Vara Federal Criminal, e R.C.M.C.P., titular da 6ª Vara Cível Federal. Também as denúncias contra os advogados G.M. e F.C.P.R. foram deixadas de lado.

O MPF manteve o pedido de abertura de processos apenas contra o juiz W.J.B.F. que se encontra afastado de suas funções por conta de outros processos, inclusive, administrativos, os peritos contadores L.F.B.P. (ex-marido de R.C.) e R.R.O.R., e o advogado J.F.F.S.O., apontado como chefe da quadrilha junto com o desembargador Regueira.

Da posição de Romanó discordaram pelo menos cinco desembargadores. Dois deles, o atual corregedor do TRF-2, André Fontes, e Messod Azulay Neto defenderam a abertura de processo pelos crimes de peculato e estelionato para a juíza R.C. e o juiz B.F. Mantiveram a mesma posição com relação ao advogado P.R. Já o relator do processo, Luiz Antônio Soares, assim como Guilherme Calmon, votaram pela aceitação da denúncia para o juiz B.F. e o advogado P.R. apenas pelo crime de peculato. No caso do advogado, também J.F.N.N. posicionou-se pela abertura da ação penal.

A acusação contra R.C. foi rejeitada por nove votos. Outros três foram pela sua improcedência. Para o juiz B.F., foram seis votos rejeitando a denúncia e quatro considerando-a improcedente. P.R. teve sete votos rejeitando e dois pela improcedência. O advogado F.S.O. e os peritos contadores L.F.B.P. e R.R.O.R. viram a denúncia ser rejeitada por maioria dos votos.

Os únicos acusados do grupo que não tiveram nenhum voto pela abertura de processo foram a juíza S.S., hoje na 5ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, e o advogado M.. No caso de S., o relator rejeitou a acusação de formação de quadrilha por prescrição e dos crimes de peculato e estelionato por ausência de justa causa. Os outros 13 desembargadores, porém, julgaram toda a peça improcedente.

Quanto a M., 12 desembargadores rejeitaram a acusação e dois consideraram-na improcedente. A maioria acatou a tese defendida pelo advogado Ubiratan Cavalcanti, de que a rejeição da denúncia contra L.R. no STJ deveria ser seguida no caso do seu cliente, uma vez que a acusação contra os dois referia-se ao mesmo fato. Cavalcanti — único dos defensores que ConJur conseguiu falar, também defendeu o perito O.R., sustentando a prescrição no caso do crime de quadrilha e a inépcia nos demais crimes. Ele admite discutir com o cliente a possibilidade de representar contra o Ministério Público, por ter na denúncia “achincalhado” o perito, provocando, inclusive, problemas de saúde e o prejudicando profissionalmente.

Grampos telefônicos
Entre os próprios juízes federais do Rio causou surpresa a rejeição da denúncia contra R.C. e o advogado F.S.O. A juíza foi pega pelos grampos telefônicos discutindo com F.O. como agir em um processo do interesse da Macon Distribuidora de Petróleo, que obtivera liminares. O advogado da ação era P.R.. Em alguns momentos, de acordo com a denúncia, R.C. apareceu falando em pressionar colegas e assumindo papel como parte no processo como ocorreu em um diálogo com F.S.O., ocasião em que criticou a postura de P.R., por ela chamado de “gordinho”.

“O idiota do nosso amigo gordinho, você sabe de quem estou falando, ele fez idiotamente, sem autorização de São Paulo, uma petição semana passada pedindo suspensão do julgamento por conta, fez uma grande confusão, a gente queria, primeiro a gente não gostaria sequer que essa petição fosse apreciada, ela não tem nada a ver, em segundo lugar, gostaríamos de um encaminhamento no sentido de um julgamento sim, que nos favorece (…).”

Há ainda a transcrição de uma conversa entre F.S.O. e o perito P., em que este último anuncia que houve instruções para que, caso um julgamento não transcorresse como o grupo desejava, o processo fosse tirado para vista. No dia 9 de setembro de 2002, o Processo 2001.02.01.006965-3, de interesse da Macon, entrou na pauta, mas a juíza federal convocada R.C. pediu vista do mesmo.

Eu confesso
Contra F.S.O., a denúncia citou ainda passagens do livro Eu, Alberto Cacciola, confesso, no qual o ex-banqueiro narra um encontro com o advogado que lhe propôs uma solução favorável em um Mandado de Segurança no TRF-2: “Tenho três propostas de honorários a fazer. Primeiro para que esse processo fique engavetado pelo tempo que você quiser, serão US$ 100 mil. Segundo, com um voto a seu favor, e isso vale muito na hora de recorrer a Brasília da decisão aqui no Rio, serão US$ 300 mil. Finalmente, com dois votos a seu favor, fechamos tudo por US$ 600 mil”, escreveu Cacciola.

Na acusação a subprocuradora destaca que ao ir a julgamento o MS 99.02.27559-1, na 5ª Turma daquele tribunal, em 7 de dezembro de 1999, depois de dois votos contrários, houve um pedido de vista da desembargadora Tanyra Vargas (hoje aposentada). Diz a denúncia: “Coincidindo com as negociações ‘frustradas’ encetadas pelo denunciado J.F.O., a referida desembargadora federal devolveu o writ na semana seguinte, com um simples voto acompanhando o desembargador federal relator (score final: 3 votos unânimes).”

Claúdia Marques acrescentou ainda um detalhe: a mulher de F.S.O. era chefe de gabinete da desembargadora T.V. Com isso, conclui: “Não espanta, de tal modo, que o denunciado se apresentasse junto a potenciais clientes como intermediário na obtenção de decisões judiciais, como tentou fazer com o ex-banqueiro Salvatore Cacciola e, muito provavelmente, deve ter feito incontáveis vezes. Obviamente, não o faria se inexistisse, por trás de si, uma bem articulada quadrilha, tendo, em uma ponta J.F.O. oferecendo seus serviços junto ao “mercado consumidor” das sentenças e, na outra ponta, os magistrados denunciados, garantes do sucesso da empreitada criminosa.”

Sigilo
Apesar de o Conselho Nacional de Justiça decidir publicar em seu site um resumo de mais de 700 processos abertos contra juízes, em alguns tribunais a prática tem demonstrado que ações penais contra magistrados ainda são mantidas em sigilo absoluto, mesmo quando a decisão favorece os acusados.

No site do Superior Tribunal de Justiça é possível acompanhar a Ação Penal 512, que ali tramitou por ter entre os acusados o então desembargador federal J.R.S.R., com direito a foro especial. Após a sua morte, em julho de 2008, o caso desceu para o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, mas voltou ao STJ, em fevereiro de 2009, por conta da nomeação da viúva, L.M.F.R., como desembargadora do mesmo tribunal.

Além de toda a tramitação do processo, está no site a íntegra da decisão em que a denúncia foi rejeitada, na qual sequer se usa o subterfúgio de colocar apenas as iniciais da acusada.

Já no TRF-2, quem acessa pelo site o Processo 2008.02.01.01400-7 esbarra no anúncio de que ele está em segredo de Justiça e nada se sabe. O Diário Oficial Eletrônico do último dia 8 de novembro publicou a ementa do acórdão da decisão proferida dia 6 de outubro, na qual os acusados são tratados pelas iniciais. Quem desconhece o que se trata jamais entenderá de quem estão falando. As 144 páginas do relatório e voto, divulgados apenas na quinta-feira passada, são mantido em absoluto sigilo para quem não está nos autos.

*Texto alterado às 17h24 do dia 1º de dezembro de 2015 para supressão de nomes.

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