Adequação à realidade

É necessário que haja um controle prévio

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13 de novembro de 2011, 8h09

O sistema judicial brasileiro não prevê o controle prévio da constitucionalidade material da norma jurídica, isto é, durante o processo legislativo, o que se reserva às próprias câmaras e assembleias, através de suas comissões, a exemplo da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados. Essa estruturação é diretamente decorrente da própria divisão tripartite dos Poderes Republicanos, assegurando a autonomia do Legislativo na edição das leis, imune à ingerência do Poder Judiciário. Contudo, embora se mostre uma esquematização teoricamente perfeita, há casos em que não se pode fugir ao questionamento prático de sua adequação à realidade brasileira.

O processo legislativo não se esgota no plano técnico. Acima de tudo, é um fenômeno permeado politicamente, diretamente afetado pelas ideologias dominantes nos representantes da sociedade ao tempo de seu desenvolvimento. Com isso, muitas vezes a discussão de uma nova norma jurídica toma por base, não sua valia social ou tampouco sua estrita compatibilidade para com a Constituição da República, e sim o mais puro anseio ideológico de momento.

É nessas hipóteses que se passa a questionar a impossibilidade de realização do controle prévio de constitucionalidade material, com o qual se poderia evitar que uma norma infraconstitucional viciada ingressasse no mundo jurídico, produzisse efeitos, para somente então ser passível de questionamento perante o Poder Judiciário.

Tomemos por exemplo um projeto de lei que atualmente tramita na Câmara dos Deputados, de autoria do parlamentar Dr. Rosinha (PT/PR), pelo qual se pretende proibir a prática do Tiro Esportivo por crianças e adolescentes, ainda que acompanhados dos pais ou por eles autorizados, inclusive tipificando criminalmente a conduta de dirigentes esportivos que permitam o acesso daqueles aos seus ambientes de desporto (PL 1448/11).

Da leitura das justificativas para o aludido projeto de lei, prontamente se observa que sua motivação passa ao largo de qualquer prisma técnico, cuidando-se de uma proposta reflexiva da própria ideologia personalíssima de seu autor, que, inclusive, exprime seus desejos pessoais em sua justificação. Para o parlamentar, os eventos esportivos de tiro seriam um “espetáculo belicoso”, que ele, deputado, “não quer ver difundido no Brasil”.[1] Mais do que isso, o autor afirma que essa modalidade esportiva se revelaria “nefasta à formação dos cidadãos”[2].

Não é necessário qualquer esforço para se concluir estarmos diante de um claro exemplo de proposta estritamente ideológica, pela qual um parlamentar tenta transportar para o mundo jurídico uma convicção pessoal, talvez até preconceituosa, sem fundamentação técnica que a respalde. E tal como não raro ocorre em hipóteses de igual jaez, abre-se aí a porta para a inconstitucionalidade material, do que não foge o projeto de lei que ora tomamos como exemplo.

No afã de fazer prevalecer suas ideologia e convicção eminentemente pessoal, e mesmo sem apego à imputação discriminatória que também macularia a proposição[3], olvidou o parlamentar na observância de ser vedado ao Estado, por imposição constitucional, estabelecer restrições a uma prática esportiva lícita. Ao contrário, é comando inserto na Carta Magna o dever Estatal de fomentar o esporte, assegurada a autonomia das entidades desportivas para definir seu funcionamento.

Com efeito, dispõe o artigo 217 da Constituição Federal (em original sem destaque):

“Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:

I – a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

II – a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;

III – o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional;

IV – a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.

§ 1º – O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.

§ 2º – A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.

§ 3º – O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social”.

O Tiro é uma modalidade esportiva amadora, legalmente estabelecida e permitida em nosso país. Sua prática, portanto, observadas as regras que se aplicam aos equipamentos nela empregados, há de ser fomentada pelo Estado Brasileiro, como direito individual de cada um de seus praticantes, preservada a autonomia das entidades desportivas que a ela se dedicam para definirem sua organização e funcionamento. Trata-se de uma clara garantia constitucional.

Nesse esteio, ao defender a imposição de restrições a uma prática esportiva, inclusive retirando a autonomia de entidades a ela dedicadas para definirem sua organização e funcionamento, a proposta aqui analisada viola flagrantemente a Constituição Federal, restando, portanto, viciada materialmente de inconstitucionalidade.

Cuida-se de um vício latente, que salta aos olhos de qualquer operador do direito que analise a proposta. No entanto, pelo sistema de controle de constitucionalidade das leis que hoje se aplica no ordenamento jurídico brasileiro, nada resta aos que já identificaram o vício, senão esperar que ele seja também identificado pela Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados e ali receba parecer pela rejeição.

Mesmo com a latência da inconstitucionalidade, ainda não pode o Judiciário reconhecê-la e sepultar o projeto de lei em seu nascedouro, pois que, cuidando-se de projeto de lei, sua apreciação judicial, sob o prisma da constitucionalidade, circunscreve-se ao processo legislativo, não alcançando o conteúdo da pretensa norma.

Sobre o tema já há sedimentada jurisprudência do Excelso Pretório:

“EMENTA: CONSTITUCIONAL. PROCESSO LEGISLATIVO: CONTROLE JUDICIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. I. – O parlamentar tem legitimidade ativa para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de leis e emendas constitucionais que não se compatibilizam com o processo legislativo constitucional. Legitimidade ativa do parlamentar, apenas. II. – Precedentes do STF: MS 20.257/DF, Ministro Moreira Alves (leading case), RTJ 99/1031; MS 21.642/DF, Ministro Celso de Mello, RDA 191/200; MS 21.303-AgR/DF, Ministro Octavio Gallotti, RTJ 139/783; MS 24.356/DF, Ministro Carlos Velloso, "DJ" de 12.09.2003. III. – Inocorrência, no caso, de ofensa ao processo legislativo, C.F., art. 60, § 2º, por isso que, no texto aprovado em 1º turno, houve, simplesmente, pela Comissão Especial, correção da redação aprovada, com a supressão da expressão "se inferior", expressão dispensável, dada a impossibilidade de a remuneração dos Prefeitos ser superior à dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. IV. – Mandado de Segurança indeferido. “ (STF – MS 24642, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 18/02/2004, DJ 18-06-2004 PP-00045 EMENT VOL-02156-02 PP-00211)

“MANDADO DE SEGURANÇA – 2. PROCESSO LEGISLATIVO – Projeto de Lei. 3. Controle de constitucionalidade preventivo. 4. Conflito de atribuições. 5. Comprometimento do modelo de controle repressivo e do sistema de divisão de poderes estabelecidos na Constituição. 6. Mandado de Segurança indeferido”. (STF – MS 24138 – DF – TP – Rel. Min. Gilmar Mendes – DJU 14.03.2003 – p. 00028) [originais sem destaque]

Caso o vício não seja identificado no próprio Legislativo, somente então se poderá provocar sua apreciação judicial, numa pré-anunciada medida que poderia ser evitada caso se dispusesse de mecanismos prévios de controle constitucional. Isso, ainda não se cuidando de lei vigente, se poderia operar de modo mais simples – e até difuso – do que através das ações declaratórias de inconstitucionalidade e seus consequentes – e inevitáveis – recursos perante o Supremo Tribunal Federal.

No início deste ano, inclusive, o atual presidente da Suprema Corte, Ministro Cezar Peluso, tendo identificado o quanto a existência de mecanismos de controle prévio poderia desafogar o Poder Judiciário, chegou a defender formalmente a criação de tal instituto. No entanto, diante de críticas severas à ideia, justamente fundadas na alegação de violação à tripartição dos Poderes Republicanos, acabou abandonando sua defesa.

É fato que, em face da harmônica independência que, também por regramento constitucional, há de imperar entre os Poderes Legislativo e o Judiciário, a incumbência deste sobre um controle prévio de constitucionalidade material acaba se tornando efetivamente inviabilizada. Porém, diante de propostas tão descompassadas dos ditames constitucionais e amplamente identificáveis, inescusável o reconhecimento da valia de tal possibilidade.

Talvez não se possa, mesmo, atribuir mais essa tarefa à estrutura do Poder Judiciário, tal como hoje concebida, mas não se deve abandonar por completo a ideia, havendo-se, sim, de evoluir em sua concepção. Os exemplos práticos da gestação normativa estão aí a demonstrar a necessidade de obstar-se o ingresso no mundo jurídico de propostas flagrantemente desabrigadas sob o manto constitucional, desafogando os tribunais de questionamentos que há muito já poderiam ter encerrado.


[1] Projeto de Lei nº 1448/11, disponível íntegra no sítio eletrônico da Câmara dos Deputados – http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=503921

[2] Idem

[3] CF, art. 3º, IV, última parte.

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