Embargos Culturais

A disputa pela primazia entre fala e escrita em Derrida

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  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

6 de novembro de 2011, 8h17

A lembrança de uma passagem do filósofo Jacques Derrida (1930-2004) pelo Brasil chama minha atenção no sentido de me apoderar do eixo temático dito desconstrutivista para se problematizar o Direito. O repertório do filósofo francês de origem argelina não é monopólio da filosofia da linguagem, em sentido estrito. Porta-voz de hermetismo frívolo e desnecessário (para seus detratores) ou do grande assalto à tradição filosófica metafísica ocidental (para seus entusiastas), Derrida plasmou em sua trajetória tudo o que a filosofia contemporânea indica como desconstrução, conceito incerto que caminha da moda literária para a vingança da literatura na filosofia.

Ainda jovem, Derrida estudou em Paris com Jean Hypollite, leitor de Hegel e de Marx. Na Escola Normal Superior teria verticalizado leituras de Platão, Kant, Rousseau, Husserl, Heidegger, Kafka, Joyce. Conviveu com riquíssimo ambiente filosófico, no qual transitavam Foucault, Julia Kristeva, Roland Barthes.

Dialogando com a fenomenologia e com a filosofia da intuição, com o estruturalismo e com a taxinomia patológica das relações entre as diferenças, Derrida levou à frente um antifundacionalismo de sabor iconoclasta que denunciou a tradição metafísica e a instabilidade da linguagem, insistindo na inexistência da possibilidade de verdades literais, percepção que remonta ao ceticismo de Nietzsche. Derrida lecionou na Sorbonne, em Yale, em John Hopkins; é presença reconhecida nos meios acadêmicos.

Derrida incomodou-se com o fonocentrismo, com os privilégios que a tradição filosófica ocidental outorga à fala. No entanto, a filosofia seria prioritariamente veiculada por registros escritos e, nesse sentido, vincula-se a estilos, formas, figuras de linguagem. A filosofia, assim, é literatura, desenvolve-se em contexto literário.

A oposição entre fala e escrita é explorada em livro que Derrida publicou em 1969, com o título de A Farmácia de Platão. O texto parte de um diálogo do filósofo grego, no qual conversam Sócrates e Fedro. O texto leva o nome deste último e nele, entre outros, são discutidos os méritos da retórica e da filosofia. Tem-se a impressão de que Sócrates convence seu interlocutor de que a fala é superior à escrita. Aquela seria representada pela ideia de farmákon, palavra grega que nos revela farmácia, sentido ambíguo que nos remete tanto à cura como ao veneno. As palavras salvam, mas também matam.

Tamanha ambiguidade identifica oposições binárias que habitam a farmácia de Platão. Em âmbito de especulação normativa, propiciando-se indagações sobre o sentido do Direito, percebem-se oposições que qualificam antinomias entre justo e injusto, correto e incorreto, certo e errado, plausível e impossível.

Enfatizando o sentido culturalmente produzido que marca o pensamento, Derrida sugere-nos que o problema das oposições binárias é identificador de nichos culturais e nesses espaços deve ser identificado. Oralidade e representatividade escrita também disputam a primazia na discursividade jurídica. Com muita sutilidade, a oralidade e a representatividade escrita demarcam as esferas da informalidade e da formalidade; relega-se aquela primeira à emotividade que quer tomar conta do Direito Penal, reserva-se essa última à suposta neutralidade que deveria confirmar a assepsia do ambiente jurídico negocial.

Quer-se aproximar a oralidade à instrumentalidade das formas, quer se justificar a representatividade escrita na segurança do procedimento e na busca adequada e equilibrada das verdades jurídicas.

O entorno cultural tradicional brasileiro parece refém dessa ambiguidade, prestigiando tanto a representatividade escrita, ao exigir exames de agrafia e de analfabetismo para postulantes de cargos públicos, ao mesmo tempo em que festeja a retórica bacharelesca, ridicularizada por Monteiro Lobato.

Porque as palavras voam e os escritos ficam, na boa tradição romana, teme-se a fala e amontoam-se toneladas de papel, matéria-prima preciosa de cartórios e demais templos da tradição burocrática, denunciadora do desencantamento com o mundo, tema das reflexões weberianas. Nesse sentido, nosso direito afasta-se da supremacia da fala invocada por Sócrates, que de resto não deixou nada escrito. Mas também não cogita de desprestigiar a escrita, como Derrida provavelmente proporia.

Preso a essas ambiguidades e aporias, o modelo jurídico brasileiro parece seguir o comportamento que o mesmo Derrida imputou a Platão, que tampou as orelhas, para melhor se ouvir falar, para melhor ver, para melhor avaliar.

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