Juizados especiais

Juízes leigos devem ser supervisionados e decidir

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30 de março de 2011, 6h40

Quando se debruça sobre a Lei federal 9.099/95 a fim de se conhecer as atribuições do juiz leigo percebe-se que aquele que atua no cível pode praticar diversos atos expressamente previstos na lei. Ele pode presidir sessão de conciliação (artigo 22), audiência de instrução e referente às audiências de instrução que presidir, pode proferir decisão propondo solução do litígio para imediato exame do juiz togado (artigo 40). E, ainda pode funcionar como árbitro, quando instaurado o juízo arbitral (artigo 24, parágrafo 2º). No que diz respeito à área criminal, a lei prevê a participação do juiz leigo no procedimento (artigo 60), porém não especifica os atos que lhe cabe realizar.

O ato deflagrador do procedimento criminal instaurado sob a égide da Lei federal 9.099/95 é a audiência preliminar. Nela ofensor e vítima podem compor danos material e moral e, ainda, o representante do Ministério Público pode propor ao ofensor a aplicação imediata de pena não privativa de liberdade. A audiência preliminar será presidida por juiz ou conciliador sob sua supervisão, sem deixar claro que este juiz se trataria do juiz leigo (artigo 72). Seria algo duvidoso inferir que poderia ser o “leigo”, porque é mais coerente entender que o conciliador quando orientado por juiz (artigo 73) o seja por juiz togado, pois é normalmente quem orienta os auxiliares da Justiça.

Os dispositivos legais que regem a audiência preliminar (artigo 69 e seguintes) não destacam qualquer referência à atividade do juiz leigo nessa fase, a semelhança da indicação da sua atividade na audiência de instrução na seara cível. O mesmo se diga para a fase seguinte que trata do procedimento sumaríssimo, que também não há indicação expressa de qual seja a atribuição do juiz leigo nessa etapa procedimental. Diante dessa não especificidade legislativa, alguns Tribunais de Justiça do país passaram a delegar ao juiz leigo criminal atos judiciais transcendentes à fase da audiência preliminar.

No entanto, o plenário do Conselho Nacional de Justiça, examinando um desses atos que foi objeto do procedimento de controle administrativo 0000303-58.2011.2.00.0000, por unanimidade dos seus membros (Sessão de 1.3.2011), aprovou o voto do relator conselheiro Jefferson Kravchychyn, cujo entendimento ali esboçado parece ser no sentido de limitar a atuação do juiz leigo criminal apenas à audiência preliminar. Cabe transcrever a parte inicial do dispositivo do voto:

“Ante o exposto, voto no sentido de desconstituir a decisão do Conselho Gestor do Sistema JEPASC, pautada no voto relator do processo nº 270.187-2007.1, por entender que os juízes leigos, no âmbito dos juizados especiais criminais, somente podem atuar na condição de auxiliares da justiça, com participação restrita à fase preliminar, sem que possam proferir sentenças, executar penas ou decretar prisões, atividades privativas de juiz togado.” (grifo nosso)

Como se sabe, a atividade que se realiza na audiência preliminar é marcada pela voluntariedade dos atores envolvidos. Trata-se de fase que se esgota em conciliação de danos material e moral e transação penal. Não atingindo esse fim, o rito prossegue para a fase seguinte, a de instrução e julgamento visando à decisão final. No caso, ao se impedir a atividade do juiz leigo na fase seguinte à audiência preliminar, se estará, na prática, equiparando o juiz leigo ao conciliador, o que se revela desnecessário por já existir na lei a previsão desse auxiliar da Justiça que participa da audiência preliminar supervisionado por juiz togado.

Na audiência preliminar não se exige decisão porque não há questão posta para ser resolvida, e sim proposta para ser aceita ou não de acordo e/ou de aplicação de pena nãoprivativa de liberdade. Aquele que preside a audiência, seja juiz togado, seja juiz leigo ou conciliador, nesse momento tem atuação semelhante ao do mediador.

Assim, partindo da premissa de que a atividade essencial de qualquer juiz é decidir, respondendo a uma questão seja de fato ou de direito, nos causa inquietação a idéia de reduzir a atividade de um juiz apenas à mediação. O jurado do Tribunal do Júri, por exemplo, decide sobre questão de fato, desempenhando o papel de juiz leigo, e ninguém questiona a sua capacidade de decisão. Afinal, não se pode separar a atividade decisória de juiz, sem se incorrer em um grande paradoxo. Onde não se precisa de decisão não se precisa de juiz.

A Lei federal 9.099/95 desobrigou o juiz de presidir audiências de conciliação ao criar a figura do conciliador como auxiliar da Justiça, reservando para este a atividade de tentar compor às partes em ato próprio (sessão de conciliação e audiência preliminar). Nesse ato não se decide questão, logo desnecessário juiz. O legislador andou bem nesse entendimento.

Contudo, a lei fez mais do que desobrigar o juiz de presidir a audiência de conciliação. Criou-se a figura do juiz leigo, a par da previsão do conciliador. Certamente, com esse novo auxiliar parece que o escopo era atribuir-lhe capacidade de decisão. Malgrado o adjetivo leigo, que significa alguém sem conhecimento técnico, exige-se da pessoa que vai exercer essa função, qualificação profissional e experiência. Assim, conclui-se com facilidade que o legislador reservou para esse ator procedimental não só a capacidade de decidir ao denominá-lo “juiz” como também o de decidir tecnicamente (questões de fato e de direito). Infere-se, portanto, que o juiz leigo deve ser capaz, também, de presidir as audiências de instrução e julgamento, porque para decidir deve ouvir as partes e colher a prova, ressaltando a obrigatoriedade da supervisão do juiz togado, sob pena de nulidade dos atos praticados.

Portanto, a consequência imediata da exegese do Conselho Nacional de Justiça ao reduzir a atividade do juiz leigo na seara criminal é a sobreposição de papéis entre o juiz leigo e o conciliador. De modo que eles estarão disputando a mesma função na fase preliminar. O juiz leigo e o conciliador, pelo que dispõe a Lei federal 9.099/95, são ambos auxiliares da justiça, com a distinção de que o primeiro deve ser advogado com experiência superior a determinado tempo e o outro pode ser qualquer cidadão (artigo 7º). Logo, é muito mais fácil recrutar conciliadores, que não tem exigência de lapso de exercício profissional e que por isso mesmo estão disponíveis em maior quantidade.

O vácuo legislativo a respeito da atividade do juiz leigo na área criminal poderia ter sido preenchido atendendo melhor à finalidade da lei. Entendeu-se que o juiz leigo deve atuar como conciliador, mas seria bem mais razoável aceitar que o juiz leigo criminal agisse como juiz togado presidindo a audiência de instrução e julgamento e realizando os atos inerentes a essa fase, resolvendo os incidentes que ocorrem no ato. Afinal, a matéria para exame trata-se de fato considerado crime de menor potencial ofensivo e aplicação de pena não-privativa de liberdade, cuja atuação estará sob supervisão do juiz togado.

Acaso tivessem optado por essa interpretação mais sistemática, aludindo efetivamente ao espírito do legislador, se teria dado ao juiz leigo que atua no crime a mesma amplitude de atuação do juiz leigo que atual no cível, e principalmente, conferindo real função decisória para a qual esse auxiliar da Justiça foi criado.

Não convence o argumento usado para sustentar a interpretação restritiva da área criminal que por se tratar de direitos indisponíveis exigiria cautela na atribuição das funções do juiz leigo. E na área cível pelo fato dos interesses ali envolvidos não serem relevantes, se torna aceitável a ação mais larga do juiz leigo. Afinal, a Lei federal 9.099/95 ao tratar do crime de menor potencial ofensivo tem em vista justamente aqueles fatos criminosos de baixo impacto social mas que do ponto de vista individual incomoda e cujas conseqüências podem ser negociáveis. O que se vê nos juizados criminais corriqueiramente são casos de briga de vizinhos, lesões corporais leves, contravenções; talvez um ou outro fato criminoso mais complexo, que, enfim, podem no geral ser facilmente equacionado pelo juiz leigo orientado pelo juiz togado e reservando para este aqueles casos mais complexos que são submetidos no juizado.

A perspectiva de que o juiz leigo, seja do cível seja do crime, como juízes que são, podem decidir mas que suas decisões dependem do controle do juiz togado para serem eficazes é que parece não ter sido levada em alta consideração na decisão do CNJ já mencionada. O juiz leigo do crime, por exemplo, se lhe fosse permitido receber uma denúncia, o faria, certamente, dentro do limite estabelecido pelo juiz togado ao qual estaria vinculado, e que daria ou não reconhecimento a esse ato para que gerasse efeito. A decisão do juiz leigo não é, portanto, sentença ou decisão interlocutória porque carece justamente da autoridade judicial que poderá lhe ser agregada ou não, após o balizamento feito pelo juiz togado, somente a partir dessa análise judicial é que poderá gerar efeitos no mundo jurídico. Há de se entender que até que o juiz profira sua decisão a respeito da decisão do juiz leigo a mesma existirá no plano jurídico como se fosse um parecer jurídico.

A resistência para se reconhecer a figura do juiz leigo com aptidão para instrução criminal e proferir decisão que será ou não homologada pelo juiz togado pode ser explicado, também, pelo fato de incomodar a alguns membros do Ministério Público o fato de comparecendo à audiência de instrução ter que ficar diante de um juiz que embora a lei reconheça competência (artigo 60), não é togado. Assim, é possível que esses membros do Ministério Público considerem lhes resultar uma capitis diminutio acaso tenham que ficar diante de um juiz leigo ou mesmo conciliador. Talvez para vencer essa resistência, acaso se confirme essa suspeita, não seria desarrazoado criar a figura do “promotor leigo” nos mesmos moldes do juiz leigo para atuar no juizado sob a supervisão do promotor de justiça de carreira. Não se alongará nisso, registrando apenas como comentário colateral e para futuro estudo.

O juiz leigo foi criado para decidir e não para conciliar, entender diferente seria considerar inútil a instituição desses dois auxiliares da Justiça criados pela Lei federal 9.099/95. A fim de realizar conciliação tem-se o conciliador e para proferir decisões tem-se o juiz leigo ambos supervisionados pelo juiz togado. A supervisão por juiz togado da atividade desses atores procedimentais é a garantia de que os atos que são realizados no âmbito dos juizados cíveis e criminais estão sob controle judicial. O princípio da informalidade que norteia o sistema do juizado deveria ser aplicado nesses momentos de dúvida e de lacunas, mas parece que sucumbimos erroneamente em pensar os fenômenos do juizado sob a ótica do processo comum. E quem perde com isso é a sociedade, pois parece ter sido a intenção do legislador, ao criar a figura do juiz leigo, conferir respostas rápidas para a demanda dos chamados crime de bagatela o que não se obterá se entendermos o juiz leigo criminal como conciliador.

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