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Réu deve ser interrogado no fim da instrução criminal, decide STF

25 de março de 2011, 8h17

Por Rodrigo Haidar

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O Supremo Tribunal Federal decidiu, nesta quinta-feira (24/3), que os interrogatórios de réus que respondem a ação penal na Corte serão feitos sempre ao final da instrução criminal. Os ministros decidiram aplicar a nova regra do Código de Processo Penal que alterou o momento dos interrogatórios.

O relator do processo, ministro Ricardo Lewandowski, afirmou que interrogar o acusado ao final da instrução criminal permite que ele exerça seu direito de defesa de forma íntegra. Isso porque ele poderá contrapor todas as provas colhidas nas investigações.

“Possibilitar que o réu seja interrogado ao final da instrução, depois de ouvidas as testemunhas arroladas, bem como após a produção de outras provas, como eventuais perícias, a meu juízo, mostra-se mais benéfico à defesa, na medida em que, no mínimo, conferirá ao acusado a oportunidade para esclarecer divergências e incongruências que, não raramente, afloraram durante a edificação do conjunto probatório”, registrou o ministro Lewandowski.

A decisão foi tomada no julgamento de um agravo interposto pelo Ministério Público Federal. Para o MP, os interrogatórios deveriam ser feitos antes da defesa prévia dos acusados, logo depois de recebida a denúncia pelo Supremo.

O Ministério Público ainda argumentou que um dos réus teria perdido o direito de exercer a defesa porque não compareceu a audiência previamente marcada em Belém. E o outro sequer foi encontrado pelo oficial de Justiça.

Os argumentos foram rejeitados por Lewandowski. Para o ministro, a mudança do interrogatório do réu para o final da instrução penal — feita pela Lei 11.719/2008, que modificou o artigo 400 do Código de Processo Penal — trouxe um sistema mais favorável ao direito à ampla defesa. Por isso, deve prevalecer sobre antiga regra prevista no artigo 7º da Lei 8.038/90, que fixava o interrogatório antes da defesa prévia.

A decisão foi tomada na ação penal que tramita no Supremo contra o deputado federal Wladimir Costa (PMDB-PA) e seu irmão, Wlaudecir Antônio da Costa Rabelo, que respondem pelo crime de peculato.

De acordo com denúncia recebida pelo Supremo em novembro de 2009, entre fevereiro de 2003 e março de 2005, os irmãos teriam contratado três funcionários fantasmas no gabinete do parlamentar para se apossar dos valores pagos a eles a título de salário. A denúncia surgiu de reclamação trabalhista ajuizada por um desses funcionários, quando ele comunicou à Justiça a existência deste esquema. Segundo o Ministério Público, os três funcionários recebiam os salários em contas da Caixa Econômica Federal, sacavam o dinheiro e entregavam para o irmão do deputado, que o depositava na conta do parlamentar.

Leia o voto do ministro Ricardo Lewandowski

R E L A T Ó R I O

O Sr. Ministro RICARDO LEWANDOWSKI: Trata-se de ação penal cujo objeto é a condenação dos réus WLADIMIR AFONSO DA COSTA RABELO e WLAUDECIR ANTÔNIO DA COSTA RABELO por suposto cometimento do crime objeto do art. 312, §1º, do Código Penal.

A denúncia, à unanimidade, foi recebida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em 19 de novembro de 2009 (fl. 1.723).

Na sequência, determinei a expedição de carta de ordem à Justiça Federal de Belém (fl. 1.332) para a citação dos réus e a realização dos respectivos interrogatórios, à luz dos arts. 7º e 8º da Lei 8038/90.

O réu WLAUDECIR, embora devidamente citado, não compareceu ao ato, sendo que o réu WLADIMIR sequer foi encontrado naquela localidade, não obstante diversas tentativas encetadas pelo Oficial de Justiça.

Com o retorno da carta de ordem, em resposta à abertura de vista, a Procuradoria Geral da República requereu

seja determinada a intimação da defesa do réu Wlaudecir Antonio da Costa Rabelo para que apresente sua defesa prévia, bem como a expedição de nova carta de ordem e interrogatório do réu Wladimir Afonso da Costa Rabelo em Brasília/DF” (fl. 1.368).

Na decisão de fl. 1.370, acolhi os pleitos de intimação da defesa de WLAUDECIR para ofertar a defesa prévia, bem como a citação do Deputado WLADIMIR em Brasília, por meio da expedição de nova carta de ordem. Determinei, ainda, o quanto segue:

Em vista do previsto na Lei 11.719/2008, que modificou o art. 400 do CPP e transferiu o interrogatório para o final do processo, considerando a nova sistemática mais favorável à defesa, na presente ação penal os réus serão interrogados ao final”.

Desta parte final do decisum agravou a Procuradoria Geral da República (1.378-1.383). Sustentou, em suma, o argumento de que as regras da norma especial (no caso, a Lei 8.038/90) prevalecem sobre a geral (o Código de Processo Penal), pleiteando que os interrogatórios sejam ultimados antes da apresentação da defesa prévia, destacando, ainda, que o réu WLAUDECIR teria perdido o direito de exercer esse ato de auto-defesa, justamente por não ter comparecido à audiência previamente designada em Belém.

É o relatório.

V O T O

O Sr. Ministro RICARDO LEWANDOWSKI: em que pesem as relevantes considerações formuladas pela agravante, penso não lhe caber razão, pelos fundamentos abaixo listados.

Como é sabido, a Lei 11.719/2008 modificou o art. 400 do CPP e transferiu o interrogatório para o final do procedimento, passando o dispositivo a contar com a seguinte redação

Art. 400.Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado”.

Não se pode negar que se trata de um tema de altíssima relevância, dado o reflexo que a referida inovação legal exerce sobre o direito constitucional à ampla defesa, embora não tenha tido ainda o Supremo Tribunal Federal a oportunidade de posicionar-se definitivamente a respeito dele, nem mesmo em sede de questão de ordem.

O tema, é bem verdade, chegou a ser debatido pelos Ministros na sessão plenária de 7 de outubro de 2010, em questão de ordem suscitada na AP 470. Contudo, como naquela ação penal o interrogatório já havia sido realizado, não se prosseguiu a discussão.

Revendo as notas taquigráficas da aludida sessão, a apoiar a tese da transferência do interrogatório para o final do procedimento, penso serem elucidativas as considerações tecidas na ocasião pelo eminente Ministro Celso de Mello. Em transcrição livre, dado que o v. acórdão ainda não foi inteiramente lavrado, nas palavras de Sua Excelência:

Agora, de outro lado, tal seja a compreensão que se dê ao ato de interrogatório, que, mais do que simples meio de prova, é um ato eminente de defesa daquele que sofre a imputação penal e é o instante mesmo em que ele poderá, no exercício de uma prerrogativa indisponível, que é o da autodefesa e que compõe o conceito mais amplo e constitucional do direito de defesa, tal seja a compreensão então que se dê ao ato de interrogatório – eu, por exemplo, vejo, no interrogatório, um ato de defesa, e isso foi muito acentuado por essa recente alteração introduzida pela reforma processual penal de 2008 -, portanto, a realização do interrogatório do acusado como o ato final da fase instrutória permitirá a ele ter, digamos, um panorama geral, uma visão global de todas as provas até então produzidas nos autos, quer aquelas que o favorecem, quer aquelas que o incriminam, uma vez que ele, ao contrário do que hoje sucede – hoje, o interrogatório como sendo um ato que precede a própria instrução probatória muitas vezes não permite ao réu que apresente elementos de defesa que possam suportar aquela versão que ele pretende transmitir ao juízo processante -, com a nova disciplina ritual e tendo lugar na última fase da instrução probatória o ato do interrogatório, o acusado terá plenas condições de estruturar de forma muito mais adequada a sua defesa, embora ele, como réu, não tenha o ônus de provar a sua própria inocência; cabe sempre o ônus da prova a quem acusa. O órgão do Ministério Público que deve acusar; deve acusar com base em provas lícitas e, além de qualquer dúvida, razoável.

Mas, de qualquer maneira, o réu tem o direito de ser interrogado; pode, eventualmente, calar-se; pode, eventualmente, abster-se de qualquer resposta. Mas, de todo modo, tendo uma visão global de todos os elementos de informação até então produzidos, ele então poderá estruturar melhor a sua defesa. E, ainda, devemos ter em consideração que o processo penal é, por excelência, um instrumento de salvaguarda dos direitos do réu. O Estado delineia um círculo em cujo âmbito torna-se lícito ao Poder Público fazer instaurar a persecução penal e praticar todos os atos que levem à comprovação lícita da imputação deduzida contra determinada pessoa. O que não se pode é transpor os limites da circunferência, sob pena de o Estado, em assim agindo, incidir em comportamento ilícito.

Portanto, são regras que claramente vêm definidas em favor do acusado. Já o dizia o velho João Mendes de Almeida Júnior, no seu conhecido "Curso de Processo Penal", em edição de 1911. E essa é uma posição que vem sendo reafirmada pela doutrina, especialmente hoje com a constitucionalização do processo, notadamente do processo penal, em que se estabelece uma clara relação de polaridade conflitante entre a pretensão punitiva do Estado, de um lado, e o desejo de liberdade do acusado, de outro”.

Tendo em conta essas judiciosas constatações, afirmar que é essencial aos sistemas processuais respeitarem à plenitude o direito de defesa e ao contraditório afigura-se, no mínimo, despiciendo, pois tais premissas encontram-se assentadas não apenas no ordenamento pátrio, mas revelam-se como alguns dos mais caros valores do Estado Democrático de Direito, assim sendo reconhecido pela grande maioria das nações civilizadas.

Nessa linha, parece-me relevante constatar que, se a nova redação do art. 400 do CPP possibilita ao réu exercer de modo mais eficaz a sua defesa, tal dispositivo legal deve suplantar o estatuído no art. 7º da Lei 8.038/90, em homenagem aos princípios constitucionais aplicáveis à espécie.

Ora, possibilitar que o réu seja interrogado ao final da instrução, depois de ouvidas as testemunhas arroladas, bem como após a produção de outras provas, como eventuais perícias, a meu juízo, mostra-se mais benéfico à defesa, na medida em que, no mínimo, conferirá ao acusado a oportunidade para esclarecer divergências e incongruências que, não raramente, afloraram durante a edificação do conjunto probatório.

Assim, caso entenda-se que a nova redação do art. 400 do CPP propicia maior eficácia à defesa, penso que deve ser afastado o previsto no art. 7º da Lei 8038/90, no concernente à designação do interrogatório.

Voltando a discussão para um aspecto mais formal, entendo que o fato de a Lei 8038/90 ser norma especial em relação ao Código de Processo Penal, de cunho nitidamente geral, em nada influencia o que aqui se assentou.

É que, a meu sentir, a norma especial prevalece sobre a geral apenas nas hipóteses em que estiver presente alguma incompatibilidade manifesta e insuperável entre elas. Nos demais casos, considerando a sempre necessária aplicação sistemática do direito, cumpre cuidar para que essas normas aparentemente antagônicas convivam harmonicamente.

De resto, a aplicação subsidiária das disposições gerais e especiais do CPP à Lei 8038/90 é expressamente reconhecida pelo art. 9º desta última, cuja redação estabelece o seguinte:

Art. 9º – A instrução obedecerá, no que couber, ao procedimento comum do Código de Processo Penal”.

Com base nas considerações acima, voto no sentido de negar provimento ao agravo regimental em tela.