Exercício de atividade profissional

Morador pode exercer profissão em condomínio

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24 de março de 2011, 19h00

Poderá condomínio edilício, por planos horizontais, destinado para fins residenciais, proibir morador de utilizar sua unidade autônoma para o exercício de suas atividades profissionais? O problema não deixa de ser intrigante e reflete concreção efetiva, por se tratar da interpretação de convenção de condomínio e da legislação aplicável, tendo em vista a prática adotada por uma das condôminas, de executar, em seu apartamento, trabalhos de tradutora juramentada, recebendo, para essa finalidade, por meio de portadores diversos, o material que a si é encaminhado.

Argumenta-se que esse fato colocaria em risco a segurança do condomínio, na medida em que importa no ingresso nas suas dependências, de pessoas estranhas. A questão, nos tempos atuais, é bastante delicada, tal o lamentável crescendo em que se vive dos índices de criminalidade, causando justa preocupação em se preservar a paz e o indispensável resguardo da residência de cada qual.

Todavia, pese a procedência, em tese da preocupação com a segurança de todos, a questão deve ser composta em termos legais e o fato, segundo nosso senti,r é que, com a devida vênia, melhor direito não socorre ao condomínio em cujo interior os fatos ocorrem.

Permitimo-nos, à propósito, à luz da experiência de quem já morou em prédio de apartamentos, inclusive de luxo, como se identifica o condomínio consulente, com uma única unidade condominial por andar e, bem assim, tendo em vista a reiterada experiência profissional no trato da matéria, salientar, para logo, que devem ser evitados, o quanto possível, atritos ou quizílias entre moradores de um mesmo prédio de apartamentos.

Como é de sabença comum, o convívio nessas circunstâncias, já por si só, nem sempre é o mais ameno ou fácil, e tanto mais se tornará dificultoso e áspero, na medida em que puderem surgir problemas de relacionamento entre os condôminos. Por entender exista na questão, em colocação sempre presente em nosso espírito, um valor a ser tutelado, é que nos permitimos fazer esta sorte de considerações, definitivamente à margem da questão jurídica submetida.

Especificamente quanto a esta, vale lembrar que no denominado Estado Democrático de Direito, vige o princípio maior denominado da legalidade, insculpido no artigo 5º, inciso II da Constituição Federal, ao enfatizar que ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei.

Posta esta premissa, o assim chamado condomínio por planos horizontais se rege, inicialmente, por determinadas normas de ordem pública, como tais entendidas as que não podem ser arredadas pela vontade das partes, expressas na Lei 4.591/1964, com suas posteriores alterações e, bem assim, pelas demais normas convencionais, resultado, ao contrário, da vontade conjunta dos interessados, constantes da convenção de condomínio.

Pois bem, invertendo a ordem de análise e, de certa forma, hierárquica, de tais normas, na leitura atenta da convenção de condomínio, expressa em escritura pública, não se encontra dispositivo que restrinja o direito de a referida condômina exercer sua atividade profissional de tradutora pública nas dependências de seu apartamento. A tanto não conduz o texto expresso na cláusula que veda “alugar, emprestar ou ceder no todo ou em parte os conjuntos para fins que não sejam o específico de moradia residencial”.

A uma, em virtude de inexistir locação ou comodato, senão utilização própria, por uma das co-proprietárias, de bem que integra seu patrimônio. E, a duas, em virtude de a cláusula alusiva aos "(…) fins que não sejam o específico de moradia residencial" dever ser entendida com um certo temperamento, não guardando razoabilidade a ideia de que o proprietário de determinado imóvel não pudesse nele exercer sua atividade profissional, desde que o faça, é claro, sem causar problemas ou transtornos aos demais moradores ou condôminos. Essa última colocação nos leva à análise do texto da Lei 4.591/64, a denominada Lei do Condomínio e Incorporações. Dispõe ela, em seu artigo 10, textualmente:

É defeso a qualquer condômino:
… omissis
III – destinar a unidade a utilização diversa da finalidade do prédio, ou usa-la de forma nociva ou perigosa ao sossego, à salubridade e à segurança dos demais condôminos.

Esse dispositivo, em uma primeira leitura, daria aparente suporte à pretensão restritiva. O fato, entretanto, é que já constante de texto legal anterior à vigente Lei 4.591/64, a norma sub examine sempre foi entendida pela mais autorizada doutrina, como absolutamente não restringindo a utilização que a condômina em questão vem dando à sua unidade autônoma. Encontra-se, assim, no clássico Carlos Maximiliano, ilustre ex-ministro do Supremo Tribunal Federal[1], a anotação de que:

Impõem-se, em edifícios de tal espécie, com força um tanto maior, devido à natureza do sistema, as obrigações oriundas dos direitos de vizinhança. Cada um pode exercer, na sua fração do imóvel, indústria ou comércio não incômodo e não perigoso: por exemplo, vender ou fabricar vestidos, ou manter instituto de beleza. Consequentemente é vedado fazer irem odores insuportáveis ou fumo para o vizinho; instalar e manter caldeira a vapor, fornalha ou forja, oficina barulhenta, indústria incômoda, rumorosa ou insalubre; transformar porão ou adega em cavalariça; bem como estabelecer negócio de carvão, inflamáveis e outras coisas degradáveis ou perigosas”.

Naturalmente, a só peculiaridade dos exemplos fornecidos pelo ilustre jurista bem mostra tratar-se de leitura a ser interpretada segundo os hábitos e realidade do tempo em que escrita.

Tem, entretanto, a virtude de fazer evidente, sob um certo prisma histórico, a considerável latitude dos direitos reconhecidos a cada condômino, submetidos, sempre, a uma cláusula máxima ou áurea, vale dizer, desde que se trate de atividade por si não incômoda ou perigosa em si mesma considerada.

Perante a norma atual, considera-se, nesse mesmo diapasão, como identificando modalidade absolutamente normal e, destarte, a ser permitida e tolerada, de uso de unidade autônoma em prédio erigido em condomínio, que o seu proprietário, condômino ou usuário, exerça em sua unidade, sua respectiva atividade profissional. Dentre os modernos escritores, merecem ser citados por todos, os renomados especialistas J.NAscimento Franco e Nisske Gondo[2], onde se expressam nos seguintes termos:

As visitas de clientes e colegas profissionais liberais não alteram a destinação residencial do apartamento.
Nos edifícios estritamente residenciais não podem ser instalados escritórios para o exercício de qualquer profissão, principalmente quando a convenção do condomínio expressamente o impede. Visa-se com isso, a evitar a alteração da finalidade específica dos apartamentos, porque o movimento de entrada e saída de clientes, maior do que o dos simples residentes, provoca o atravancamento dos elevadores, além de quebrar o padrão de frequência do edifício. Por outro lado, determinadas atividades profissionais atraem um tipo de clientela mais modesta, sumariamente vestida, o que, em regra, é incompatível com os apartamentos residenciais, principalmente os de maior luxo.
Sem embargo dessa proibição, tem-se admitido uma certa transigência a respeito. Daí ser permitido ao ocupante de apartamento receber ocasionalmente clientes em pequeno número, em horas adequadas, de modo a não alterar ostensivamente a destinação precípua do imóvel. Nem seria, mesmo, possível vedar a um médico, um advogado, um engenheiro, um professor etc., receberem em sua casa um ou outro cliente, até porque, muitas vezes, é na intimidade de uma residência que podem ser realizadas certas reuniões e conferências necessariamente discretas. Além disso, os profissionais liberais habitualmente têm em suas casa as suas bibliotecas, fichários, etc., de sorte que algumas reuniões para estudos com colegas, ou mesmo com os clientes só podem realizar-se em sua residência. Ocorre ainda, aos médicos, advogados, etc., a necessidade de atender excepcionalmente em casos urgentes, para o que são procurados em suas casas, à noite, nos domingos e feriados, o que de modo algum pode ser impedido pelo síndico ou qualquer outro órgão administrativo do condomínio. Nessas situações, compreende-se perfeitamente que o ocupante de um apartamento residencial atenda alguns clientes, sem que isso configure alteração do destino do apartamento residencial.

E, bem à propósito, os autores sob comentário citam jurista argentino, para salientar: “Segundo nota Juan Jacomo, a lei argentina não considera desvio do uso residencial a prática de atividade meramente artesanal ou de indústria doméstica, no apartamento, desde que não sejam utilizados empregados, nem haja afluência de público no local”.

Antes, ainda, de trazer à colação importante precedente da jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, com o registro necessário de que a jurisprudência também é fonte do Direito, convém meditar um pouco sobre os fatos sob discussão. Nas circunstâncias em análise, a condômina envolvida exerce atividade de tradutora pública nas dependências de seu apartamento.

Trata-se, conforme notório, de atividade essencialmente intelectual e, no mais das vezes, rigorosamente pessoal, a ser exercida, inclusive sob e ao mesmo tempo, com a garantia da fé pública, por pessoa submetida a concurso público, cujas atividades são objeto de registro e controle pelas autoridades, considerando-se, os tradutores públicos, no exercício específico de suas atribuições, como verdadeiros agentes do Estado/administração.

O trabalho do tradutor público, além disso, é essencialmente de gabinete, e pelas próprias, notórias, características intelectuais imprescindíveis para seu exercício, refugiria ao bom senso, inclusive, imaginar pudesse ser exercido no meio ou com a presença de aglomeração ou afluência de público, fatores apontados pelos intérpretes, como idôneos, eventualmente, a causar desconforto para os demais residentes em um prédio de apartamentos.

Não chega a se identificar como tal a simples e, ainda que diária, presença de portadores de documentos a serem entregues à citada condômina. Nesse sentido, há de se ter olhos de ver, para compreender como característica de essencial normalidade, a presença diária, constante, em prédios de apartamentos, por exemplo, de empregadas diaristas, passadeiras, lavadeiras, entregadores de compras, lavanderias que retirem roupa a domicílio, sistemática ainda utilizada por algumas pessoas, entregadores de farmácia e outras tantas atividades congêneres.

Certamente não se identifica em qualquer dessas possibilidades ou no seu gozo em conjunto por determinado condômino, exagero algum, desrespeito ou incômodo suscetível de coibição, em termos legais, pelos demais moradores em prédio de apartamento.

Portanto, não se identifica no só exercício da atividade de tradutora pública, pela condômina envolvida, qualquer maltrato às normas legais ou convencionais — estas silenciosas a respeito — ou qualquer descaracterização do aspecto e finalidade essenciais do edifício, de se destinar à moradia de seus proprietários.

A respeito, como já havia sido adiantado, a matéria não é nova e já foi apreciada em pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, decidindo o quanto segue, em hipótese bem mais peculiar e, de certo modo, incômoda, do que a objeto da consulta[3]:

AULAS PARTICULARES – Aulas ministradas por condômino em seu apartamento – Interdição pretendida dessa atividade – Inadmissibilidade – Ato não excluído pela convenção condominial nem pelo regulamento – Exercício, ademais, sem qualquer anormalidade ou abuso – Procedência do interdito proibitório.
Se não estão excluídas pela convenção de condomínio ou pelo seu regulamento e se exercidas sem qualquer anormalidade ou abuso, pode o condômino ministrar aulas particulares em seu apartamento”. (cfr. R. Limongi França, Jurisprudência do Condomínio, RT, SP, 1977, julgado apud RT 397/174)

No caso, a questão se prende não só ao exercício da atividade de tradutora pública pela condômina envolvida, mas à frequência de portadores de documentos ao seu apartamento. Ainda com o devido respeito a entendimento contrário, quer nos parecer tampouco refugir a rigorosa normalidade o recebimento de documentos, papéis, etc., pela condômina, em sua unidade autônoma.

É claro que há o fator segurança a ser considerado. Tanto entendemos importante esse aspecto que nos pareceu por bem iniciar este estudo com algumas considerações a respeito. Entretanto, como já diziam os latinos, virtus est in medius, isto é, a virtude, a melhor solução, se encontra no meio termo, em postura a um só tempo de prudência e resguardo quanto aos interesses dos demais condôminos, mas que não importe em desautorizada restrição ao normal e desimpedido exercício da atividade profissional da senhora condômina.

Poder-se-ia excogitar, v.g., de exigir identificação de quem fosse ingressar no condomínio ou simplesmente impedir a subida do portador, obrigado a entregar o quanto estiver transportando ao zelador ou porteiro. Tratam-se de medidas possíveis de serem adotadas e que colaborariam para a sempre desejada preservação da segurança de todo o condomínio.

O quanto acima considerado não encontra óbice no vigente Código Civil, ao dispor especificamente sobre o condomínio edilício. Nenhum impedimento se encontra nos artigos 1.332 a 1.334, dispondo, ao contrário, o artigo 1.335 que: “São direitos do condômino: I ─ usar, fruir e livremente dispor das suas unidades”.

O exercício de atividade profissional essencialmente discreta e de gabinete, em nada viola ou causa gravame aos demais condôminos de determinado prédio de apartamentos, razão pela qual não poderão ser coibidas, ainda que sob o aspecto, em um primeiro momento prevalente, do resguardo da segurança de todos os moradores.


[1] “CONDOMÍNIO Terras, apartamentos e andares perante o Direito”, ed. Freitas Bastos, RJ/SP, 1944, pág. 176, nº 135.

[2] “CONDOMÍNIO EM EDIFÍCIOS”, ed. Rev. dos Tribunais, SP, 1987, pág. 224, nº 178.

[3] Apelação Cível nº 170.326, desta capital

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