Chapéu alheio

Não é função da Justiça arrecadar para a União

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22 de março de 2011, 5h40

Uma mentira contada mil vezes pode mesmo transformar-se em verdade? O bom senso e o compromisso com a veracidade dos fatos forçam-nos inexoravelmente a responder negativamente ao questionamento, derivado do conteúdo do velho adágio popular, como não poderia deixar de ser. Esse, por certo, é também o pensamento do cidadão brasileiro médio, cumpridor de suas obrigações, que, mesmo diante de um cenário de preocupante corrosão dos princípios éticos e morais, não deixa de acreditar que o Brasil, eterno “país do futuro”, também terá o seu momento de consolidação dos avanços civilizatórios que o mundo tem experimentado. E que isso está mais próximo do que nunca.

Tem-nos causado, assim, certa estranheza e mesmo estupefação a reiteração, com frequência pouco comum, de afirmações totalmente dissociadas da realidade, relacionadas, em última análise, com o papel das instituições do Estado em nosso país. Sentimento esse que é agravado quando identificamos a origem de tais inverdades, o que lamentamos.

Referimo-nos ao desserviço prestado à sociedade brasileira pela Associação dos Juízes Federais ao afirmar, através de seu presidente, uma vez mais, que o Poder Judiciário exerce função arrecadatória, sendo responsável pela recuperação de créditos tributários para a União Federal. Verdadeira falácia que, com o devido respeito, parece encaixar muito bem no famoso adágio popular de que uma mentira contada mil vezes pode transformar-se em verdade. Dessa vez, as impropriedades foram lançadas à imprensa pelo Dr. Gabriel Wedy sob o pretexto de fundamentar o pleito da Ajufe — cuja justiça não se está a discutir aqui, frise-se — de aumento do número de cargos de juiz federal e desembargador nos Tribunais Regionais Federais do país. Com efeito, ao se pronunciar acerca da proposta em referência, durante recente entrevista concedida ao ConJur, o magistrado defendeu, in verbis: “O custo (da criação dos cargos) será menor do que o que a Justiça Federal arrecada para a União, e a criação de novas vagas aumentará esse superávit” (grifos nossos).

Ora, para que tenhamos uma correta visualização do tema, é de se esclarecer que o exercício da função jurisdicional — de acordo com lições preliminares de Teoria Geral do Processo, disseminadas ainda nos primeiros passos no estudo da ciência do Direito — é balizado pelos princípios da inércia e imparcialidade do juiz, resultando, pois, na regra geral de que o magistrado, ao atuar, age somente mediante provocação da parte interessada. E, ainda, de que deve o juiz obrigatoriamente pautar sua atuação funcional pela imparcialidade em relação aos jurisdicionados que recorrem ao Poder Judiciário em defesa de seus interesses. Difícil imaginar, então, como poderia o juiz federal julgar e arrecadar ao mesmo tempo, pois, se por hipótese assim fosse, sua imparcialidade estaria no mínimo posta em suspeição no curso de um processo de Execução Fiscal, diante do claro risco de o ônus de arrecadar recursos financeiros para os cofres públicos contaminar o exercício da função jurisdicional, em detrimento do executado.

Assim, de uma vez por todas: o nobre ofício dos juízes é o de julgar. A cobrança judicial de tributos é feita, por óbvio, através do Poder Judiciário, mas não pelos doutos magistrados, como pretende o presidente da Ajufe. O exercício da nobre função de cobrar judicialmente tributos na esfera federal é atribuição dos procuradores da Fazenda Nacional, como determinou o legislador constituinte originário por ocasião da Carta Magna de 1988. Desse modo, será através do investimento na estruturação adequada da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e do reconhecimento do trabalho estratégico desempenhado pelos procuradores da Fazenda Nacional que aumentaremos a arrecadação dos tributos devidos e não pagos aos cofres da União Federal. Com a devida vênia, não será em razão do aumento do número de juízes federais e desembargadores — pleito cuja justiça, não é demasiado repetir, não discutimos — que o incremento na arrecadação federal necessariamente se dará. Não mesmo. Portanto, que se utilizem outros argumentos, em respeito à verdade dos fatos. Disso a sociedade brasileira não mais abrirá mão.

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