Parcelas atrasadas

Norma tributária viola princípio da legalidade

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20 de março de 2011, 6h22

Chegará o dia em que poderemos ler atos administrativos normativos da administração tributária sem desconfiar da usurpação do poder regulamentar pelo administrador. Enquanto esse dia não chega, analisemos o disposto no inciso I do artigo 10 da Portaria Conjunta PGFN/RFB 02/2011, e artigo 15 da Portaria Conjunta PGFN/RFB 06/2009, que tratam da consolidação do parcelamento instituído pela Lei 11.941/2009.

Condição inerente à permanência no parcelamento é a manutenção do adimplemento das parcelas. Não é dado ao contribuinte o direito de adimplir as parcelas quando bem lhe entender, sob pena de nunca ser quitado o crédito tributário. Contudo, as hipóteses de rescisão do parcelamento, inclusive quanto ao inadimplemento das parcelas, estão taxativamente previstas no texto legal. E devem ser observadas, rigorosamente, pela administração e pelo contribuinte.

Se o intuito do parcelamento é facilitar a quitação dos tributos por contribuintes que estejam com dificuldades em resolver suas obrigações fiscais, é natural que a lei que institui o parcelamento crie alguma flexibilidade no pagamento das parcelas. Não é razoável que se promova a rescisão do parcelamento por inadimplemento de qualquer parcela, por poucos dias. Nesse contexto, a lei 11.941/2009, em seu parágrafo 9º do artigo 1º definiu a hipótese de rescisão do parcelamento, por inadimplência:

Art. 1º….

§ 9o  A manutenção em aberto de 3 (três) parcelas, consecutivas ou não, ou de uma parcela, estando pagas todas as demais, implicará, após comunicação ao sujeito passivo, a imediata rescisão do parcelamento e, conforme o caso, o prosseguimento da cobrança.

O referido dispositivo sofre péssima redação, vez que a expressão “ou de uma parcela, estando pagas todas as demais” esvazia o sentido da primeira expressão “A manutenção em aberto de 3 (três) parcelas, consecutivas ou não”. É evidente que o simples atraso de apenas uma parcela não pode gerar a rescisão do parcelamento, pois não teria qualquer sentido o texto se referir à “manutenção em aberto de 3 (três) parcelas, consecutivas ou não”. Como não se pode presumir inútil texto de lei, é necessário buscar a interpretação harmônica de ambas as expressões, para respeitar a interpretação literal que se sujeita o dispositivo, conforme inciso I do artigo 111 do CTN. Pois bem, se a primeira parte do parágrafo 9º estabelece que a manutenção em aberto de três parcelas, consecutivas ou não, motivam a rescisão, é porque o contribuinte, em tese, poderia manter uma parcela em atraso por 90 dias (considerando que não se reputa inadimplência o atraso inferior a 30 dias, conforme parágrafo 10° do referido artigo 1º). Vejamos o exemplo. Se o contribuinte não pagar a parcela vencida no dia 31 de janeiro, 28 de fevereiro, e 31 de março, pela redação da primeira expressão destacada do parágrafo 9º, conjugada com o 10°, o contribuinte teria até o dia 30 de abril para remir as parcelas atrasadas, sem sofrer o risco da rescisão. Maliciosamente, poderia adimplir apenas uma das parcelas em atraso, deixando as demais em aberto até o fim do parcelamento. Se simples assim fosse, não poderia ter o parcelamento rescindido, pois a lei prevê a manutenção de três parcelas em aberto, e, no caso, seriam duas parcelas em aberto.

Para evitar esse tipo de situação é que o legislador inseriu a expressão “ou de uma parcela, estando pagas todas as demais”. Contudo, redigiu mal o texto, pois, para se atrasar três parcelas, inicialmente, é evidente que o contribuinte deveria atrasar uma, a primeira, e pela simples leitura da segunda expressão destacada, o atraso de uma única parcela geraria a rescisão, esvaziando o conteúdo da primeira expressão do parágrafo 9º. Assim, a maneira mais harmônica de se interpretar o referido dispositivo é a de que o atraso de uma única parcela, por mais de noventa dias (acrescidos de trinta dias a que se refere o parágrafo 10°, o que geraria 120 dias de prazo para pagamento de uma parcela), gera a rescisão do parcelamento.

Ou seja, concluímos que a manutenção de três parcelas em aberto, ou a manutenção de uma parcela há mais de noventa dias é motivo suficiente para promover a rescisão do parcelamento.

Com o advento da Portaria Conjunta PGFN/RFB 02/2011, finalmente é regulamentada a consolidação do parcelamento, com quase dois anos de atraso. Como era de se esperar, há surpresa no ato administrativo normativo, no que tange à exigência prevista no inciso I do artigo 10, que assim dispõe:

Art. 10. A conclusão da consolidação de modalidade somente será efetivada se o sujeito passivo tiver efetuado, em até 3 (três) dias úteis antes do término do prazo fixado no art. 1º para prestar informações, o pagamento:

I – de todas as prestações devidas na forma dos incisos I e II do § 1º do art. 15 da Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 6, de 2009, quando se tratar de modalidade de parcelamento;

O artigo 15 da Portaria Conjunta PGFN/RFB 06/2009 também estabelece a exigência de quitação de todas as parcelas, como condição para a consolidação do parcelamento:

 

Art. 15. Após a formalização do requerimento de adesão aos parcelamentos, será divulgado, por meio de ato conjunto e nos sítios da PGFN e da RFB na Internet, o prazo para que o sujeito passivo apresente as informações necessárias à consolidação do parcelamento.

§ 1º Somente poderá ser realizada a consolidação dos débitos do sujeito passivo que tiver cumprido as seguintes condições:

I – efetuado o pagamento da 1ª (primeira) prestação até o último dia útil do mês do requerimento; e

II – efetuado o pagamento de todas as prestações previstas no § 1º do art. 3º e no § 10 do art. 9º.

Os referidos dispositivos normativos, ao determinar que todas as parcelas estejam quitadas antes da consolidação, criam obrigação não prevista em lei, pois institui cobrança por via oblíqua, obrigando os contribuintes com parcelas atrasadas a quitarem os seus débitos em condições mais rígidas que a estabelecida na lei nº 11.941/2009. Enquanto a lei permite a manutenção de dois débitos em aberto, ou de um débito vencido até noventa dias, por exemplo, a portaria conjunta exige que todas as parcelas em aberto sejam quitadas até o dia 25 de março de 2011.

Caso não sejam quitadas, não será feita a conclusão da prestação de informações, e consequentemente, não será deferido o parcelamento, nos termos do artigo 12 da portaria conjunta:

Art. 12. Considera-se deferido o parcelamento na data em que o sujeito passivo concluir a apresentação das informações necessárias à consolidação de que trata o art. 15 da Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 6, de 2009.

A ofensa ao princípio da legalidade é gritante. Em poucas palavras, o ato administrativo normativo dá outro sentido ao parágrafo 9º do artigo 1º da lei 11.941/2009. A sede de arrecadação, comum nos administradores públicos, chancela esse tipo de prática. As administrações tributárias costumeiramente legislam onde deveriam regulamentar, invariavelmente em desfavor do contribuinte. Entretanto, o revés pode vir a galope. Inúmeras são as empresas que terão seu parcelamento rescindido em razão de tal exigência abusiva, e não mais conseguirão quitar seus débitos. Logo, o Estado, que antes recebia parcelas com um pouco de atraso, agora não receberá parcela alguma de tais empresas.

Espera-se que o Poder Judiciário corrija essa distorção dos valentes contribuintes que se insurgirem contra o Fisco.

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