Segunda leitura

Aumenta complexidade em concursos da magistratura

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

13 de março de 2011, 8h47

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Os concursos da magistratura, dos anos 1960 até 1998, eram realizados pelos Tribunais. Participar da banca era uma honraria. O trabalho era dobrado, porque ninguém se afastava da jurisdição. Os regulamentos eram razoavelmente autônomos, gozando os Tribunais de certa independência. Os candidatos eram, regra geral, conhecidos direta ou indiretamente pelos examinadores, que sabiam seu caráter, experiência e conceito na sociedade.

O número de bacharéis aumentou consideravelmente. Passamos há muito tempo de 1.000 cursos de Direito. O mercado profissional tornou-se mais disputado. A Constituição de 1988 estabeleceu requisitos para todos os concursos da magistratura e a Resolução 75 do Conselho Nacional de Justiça regulamentou-a. Os certames tornaram-se assemelhados. E os candidatos também. De sul a norte e vice-versa, sem medo de deixar suas raízes, homens e mulheres, a maioria entre os 25 e os 30 anos, buscam a realização profissional.

Disto resultou, para ir ao exemplo extremo, a existência de 17.852 inscritos no 183º concurso público de ingresso na magistratura de São Paulo. Exatamente. Quase 18.000 candidatos a disputar as 193 vagas existentes.

Evidentemente, o gigantismo do número de inscritos não se repetirá nos outros estados. Mas, de qualquer forma, a quantidade de candidatos aumentará geometricamente. Mais, cada vez mais. Desmentindo aqueles que previam desinteresse pelo excesso de trabalho, falta de perspectivas de chegar ao fim da carreira ou fim da aposentadoria integral.

Na verdade, estamos vivendo uma nova realidade. Uma virada de página. Os concursos deixaram de ser certames destinados a selecionar 30 entre cerca de 500 ou 600 inscritos. Os interessados deixaram de ser centenas e passaram a ser milhares.

A organização dos concursos mudou completamente e mudará mais ainda. Não há mais lugar para aquelas secretárias idosas, que auxiliavam os candidatos e vibravam quando eram aprovados. Tudo se resolve pela internet, em meio a total impessoalidade.

A realização da primeira prova, 100 perguntas objetivas, tornou-se uma operação de guerra. Onde acomodar 8.000, 10.000, 17.852 inscritos? Como fiscalizar tanta gente e impedir fraudes? Bastará a exibição de documento de identidade? Ou será preciso a impressão digital? E as comunicações via tecnologia moderna? Como impedir? E a ida do candidato ao banheiro, até onde pode ser fiscalizada? E as provas, como impedir que uma cópia vaze?

Superado este primeiro e grande obstáculo, vêm as provas subjetivas, onde a dificuldade não é menor. Avaliar 300 sentenças, 600 respostas. Ainda que haja menos candidatos, maior é a discussão. E vêm teses jurídicas a sustentar isto ou aquilo, muitas vezes socorrendo-se de um precedente da jurisprudência, tudo a discutir a avaliação feita. Depois, a prova oral, que pode importar em muitos dias. Imagine-se que 160 candidatos habilitem-se ao exame oral. Examinados 8 por dia, 4 de manhã e 4 à tarde (mais é impossível), serão 20 dias. É dizer, durante 4 semanas os examinadores não farão outra coisa.

Mas serão só estas as dificuldades? Não, por certo. Existem outras tantas.

A primeira delas são os recursos? Os candidatos, atualmente, recorrem de tudo. Mesmo que aprovados com boas notas, recorrem porque desejam colocar-se em melhor classificação e com isto ser nomeados para as melhores vagas. Então imagine-se: quem examinará 5.000 recursos, se um terço dos candidatos de São Paulo recorrerem da prova objetiva? E se cada um recorrer de 10 perguntas, quem e em quanto tempo decidirá os 50.000 recursos?

Depois dos recursos, que alcançam as provas subjetivas e até atos administrativos do procedimento (v.g., exigência de caneta azul), sobrevêm as ações judiciais. E aí, perde-se por completo qualquer previsibilidade. Decisões que entram no mérito da questão, ainda que não explicitamente, liminares, antecipações de tutela, julgamentos diferentes para situações idênticas. Surgem as mais variadas situações, desde pessoas reprovadas que conseguem sucesso na via judicial até os aprovados que saem da lista de nomeação porque o judicialmente aprovado obteve classificação melhor. Isto sem falar naqueles que obtêm sucesso judicialmente anos depois e daí reivindicam o direito às promoções (e vencimentos), criando situação de fato insolúvel, porque as vagas foram providas.

A banca, por outro lado, não conhece os candidatos. Vindos de diversos pontos do estado ou do país, são pessoas desconhecidas. Podem ser bons e podem ser maus. Até financiados por uma organização criminosa. A investigação social se limita a ofícios abonatórios de autoridades, via de regra, dados a pedido e sem qualquer responsabilidade. Ninguém dá por escrito más informações, porque o risco de chegarem às mãos do candidato é enorme. Ninguém se arrisca a ser réu em ação de danos morais. Disto tudo decorre que a banca, muitas vezes, não tem a menor ideia de quem está aprovando. E depois da posse, a perda do cargo só se dá no extremo do extremo ou por aposentadoria, dezenas de anos depois. Estágio probatório não tem qualquer resultado prático.

A complementar, o exame psicotécnico ainda é pouco acreditado. Com isto, a banca corre o risco de aprovar alguém com dificuldades comportamentais, o que gera atritos permanentes com os demais atores.

Isto tudo está a mostrar que estamos em fase de mudança. Arrisco-me a fazer previsões. Os concursos do futuro serão organizados, parcial ou integralmente, por instituições voltadas exclusivamente para esta atividade. Os examinadores serão, pelo menos na primeira e na segunda fase, pessoas contratadas por estas entidades, porque os desembargadores não disporão de tempo para dedicar-se a tarefa tão árdua e, por vezes, não remunerada e sem prejuízo da jurisdição. A avaliação de conduta social, apenas dos que forem ao oral, será feita por magistrados designados pelo presidente da banca ou por órgãos da segurança do Estado. Finalmente, como se passa em Portugal e França, um curso de dois anos em Escola da Magistratura oficial será o rito de transição entre a aprovação e o exercício pleno da judicatura, medida esta hoje impossível pela carência de juízes.

Isto leva tempo, por certo. Mas se para ser trainee de uma empresa há inúmeros requisitos e exigências, inclusive entrevista, não se pode esperar que a difícil missão de decidir sobre a vida de seus semelhantes seja entregue a uma pessoa sem que, dela, se exijam não apenas conhecimentos técnicos, mas também caráter e equilíbrio emocional.

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