Definições de responsabilidade

Doutrina e jurisprudência pacificaram dolo e culpa

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5 de março de 2011, 9h32

Dada a necessidade sistemática (e pragmática), existe na doutrina internacional a distinção entre diversos tipos de dolo, dentre as quais podemos destacar, como exemplo, o dolo direto de primeiro grau e de segundo grau (assim concebidos na Alemanha), sendo esse segundo os efeitos “colaterais” que o agente sabe como necessariamente ligados à obtenção de sua finalidade direta (dolo de primeiro grau). Reconhecem também os tedescos, como nós brasileiros, o dolo eventual.

Em nosso país, não se apresentam grandes divergências doutrinárias sobre o chamado dolo eventual, mas consideramos importantes pequenas digressões. Com base na chamada teoria da vontade, entende-se que haveria o dolo somente quando o autor quisesse o resultado; já conforme a teoria da representação, engloba-se qualquer consciência da possibilidade do resultado. Por fim, os teóricos do consentimento (ou da anuência), que fizeram nosso Código Penal, entendem que há dolo quando o autor anui, consente na realização do fato considerado típico.

Esse dado psíquico deve substituir a vontade e geralmente é descrito como “estar de acordo”, “acolher em sua vontade”, “assumir o risco”, aprovando (em sentido jurídico) a realização do fato. Pretende-se haver no autor uma disposição interna em relação ao resultado, para a qual ele é indiferente.

Em outras palavras, na famosa “Fórmula de Frank”: se o autor disser para si mesmo “seja assim ou de outra maneira, ocorra isso ou aquilo, de qualquer modo eu agirei”, então sua responsabilização é por crime doloso na modalidade eventual.

A teoria dominante se vê, porém, obrigada a isentar a responsabilidade pelo fato doloso aquele autor que se interessa tão pouco pela possibilidade de lesão de outrem, que sequer chega a apresentar qualquer intenção em relação a ela, de modo que, não levando a sério o perigo, não o considera sequer válido.

De outra banda, se o autor cria um perigo, ainda que reduzido, mas não permitido, ele age com dolo, se considerou sério esse (mesmo que reduzido) perigo e superou o obstáculo psíquico moral daí decorrente.

O perigo criado pode gerar responsabilização por dolo ou culpa, dependendo do caso concreto e da intenção ou não do autor. Não se pretende aqui, todavia, realizar uma digressão pormenorizada dos chamados crimes de perigo, em que o risco criado é extremamente relevante e frutifica fervorosos debates jurídicos.

Voltando à vexata quaestio, o autor do fato deve conhecer tantos fatores integrantes do risco de realização do tipo por ele criado quantos sejam necessários para qualificar esse risco como um risco doloso, e essa avaliação é jurídica, e não de fato.

Por fim, como a pá de cal em quaisquer dúvidas, nosso Estatuto Repressivo definiu o que entende por dolo, dispondo: “Diz-se o crime 1 – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo (artigo 18, inciso I); daí nossa doutrina distinguir o dolo direto (“quis o resultado”) e o eventual (“assumiu o risco de produzi-lo).

Aliás, um dispositivo importante para o conhecimento dessas concepções é o artigo 20, que fala de erro de tipo, quando menciona que a falta de conhecimento exclui o dolo. Assim, dolo pressupõe, no mínimo, conhecimento. Após disso é que se falará em intenção.

Já quanto à culpa, se a lei não previr expressamente a punibilidade do agir culposo, somente é punível o agir doloso. Simples assim. Segundo o entendimento comum, pois, culpa e dolo se excluem. Pretender realizar não é o mesmo de dar causa por imprudência ou falta de atenção, por exemplo.

Outro tema que não deve ser esquecido é o que pertine à chamada culpa inconsciente, o autor não imagina o resultado, apesar de conhecer os pressupostos fáticos de seu dever de cuidado, sem que os atenda, fazendo pouco caso da possíveis consequencias. A diferença entre aquele que age com culpa consciente daquele da culpa inconsciente é que o primeiro, ao menos, cumpre parte de seu dever de cuidado, enquanto o segundo desde o início ignora esse apelo.

Bem diferente do dolo, para o qual mister é, pois, o conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo do ilícito.

Uma resposta satisfatória à diferenciação se alcança apenas em se verificando a atitude pessoal ou a posição íntima do agente, perante a norma jurídico-penal. Se, por um lado, o dolo é o conhecimento e vontade de realização do fato típico, a negligência (imprudência, imperícia) é a violação de um dever de cuidado e criação de um risco não permitido.

O dolo é, ainda, uma contrariedade, uma indiferença expressa com a norma penal, enquanto a culpa é uma atitude de descuido ou leviandade perante o dever.

Feitas essas digressões, resta, por fim, a análise da tentativa.

O artigo 14 do Código Penal em seu inciso II diz que o crime será tentado quando iniciada a execução, e não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. Se punirá a tentativa pela pena do crime consumado reduzindo a mesma de um a dois terços.

Em um julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (70024594707) entendeu-se que a tentativa comporta sempre a hipótese da desistência voluntária por parte do agente, que, desistindo de cometer o crime mais grave, só será responsabilizado pelos danos que até então houver produzido. No dolo eventual não há como alguém desistir de assumir o risco, uma vez assumido o risco, obviamente impossível desistir de assumi-lo.

Não se pode negar que há doutrinadores que admitem a possibilidade de tentativa nos casos de dolo eventual, como Luís Jiménez de Asúa, por exemplo. Quando o resultado é apenas representado pelo agente, que não o deseja, mas o reconhece como possível assumindo o risco de produzir o resultado.

A doutrina alemã, com raras exceções, reconhece a tentativa com dolo eventual sempre que seja suficiente para o tipo respectivo. Para Gunther Jakobs, se para consumação basta o dolo eventual, será assim também para a tentativa.

Eis o entendimento jurisprudencial, exemplificativo de todo esse debate:

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. CRIME DE TRÂNSITO. DENÚNCIA POR HOMICÍDIO TENTADO COM DOLO EVENTUAL. DECISÃO PRONUNCIATÓRIA. NECESSIDADE DE REFORMA. IMPOSSIBILIDADE LÓGICA DE ADMITIR-SE A TENTATIVA NO DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO DO DELITO. Recurso provido. (Recurso em Sentido Estrito Nº 70028712321, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Manuel José Martinez Lucas, Julgado em 19/06/2009)”

Ementa: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TRIBUNAL DO JÚRI. 1º FATO. HOMICÍDIO DOLOSO (DOLO EVENTUAL) PRATICADO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. ART. 121, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL. MANUTENÇÃO DA DECISÃO DE PRONÚNCIA. Uma linha muito tênue separa o dolo eventual da culpa consciente, pois em ambos os casos o possível resultado é conhecido e não é desejado pelo agente. A diferença reside no fato de que, na culpa consciente o agente sequer cogita a hipótese de tal resultado realmente vir a ocorrer, enquanto no dolo eventual aceita a possibilidade, simplesmente aceitando o risco que corre de produzir o resultado. Diante de tão sutil diferença, seria mesmo imprudente privar os jurados da apreciação do fato, que consiste em um acidente de trânsito causado por motorista embriagado. PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE ANIMUS NECANDI NA CONDUTA DO ACUSADO. INVIABILIDADE DE RECONHECIMENTO DESDE LOGO DIANTE DA INEXISTÊNCIA DE CERTEZA ABSOLUTA QUANTO AO DOLO DE MATAR. A desclassificação do delito importa em apreciação do animus necandi, matéria de competência exclusiva do Tribunal do Júri, só podendo ser operada nesta fase processual quando há certeza absoluta da inexistência do dolo de matar. 2º FATO. DESCLASSIFICAÇÃO, EM SEGUNDO GRAU. DOLO EVENTUAL E TENTATIVA. INCOMPATIBILIDADE. PRECEDENTES DESTA PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL. DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO DA DEFESA. (Recurso em Sentido Estrito Nº 70036085082, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marcel Esquivel Hoppe, Julgado em 09/06/2010)

Ementa: APELAÇÃO-CRIME. JÚRI. HOMICÍDIO CONSUMADO. DOIS HOMICÍDIOS TENTADOS. NULIDADE POSTERIOR À PRONÚNCIA. INOCORRÊNCIA. Afastada a hipótese da tentativa de homicídio, inviável o questionamento se a ação foi praticada mediante dolo eventual. Precedente do STJ. Incabível o questionamento aos jurados sobre a suficiência da prova dos autos, já que a estes é garantido o sigilo das votações, ex vi do artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea b, da Constituição Federal. DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. INCONGRUÊNCIA NAS RESPOSTAS DOS JURADOS. RENOVAÇÃO DO JULGAMENTO. Segundo noticiam os autos, a vítima Adriana, que resultou com lesões corporais, estava sendo perseguida pelo acusado que dirigia um automóvel Ford/Escort, enquanto a vítima conduzia seu veículo GM/Corsa. Durante a perseguição os veículos emparelharam e colidiram, fazendo com que o automóvel da vítima se chocasse com o veículo tripulado pelas vítimas Flávio(que faleceu no local) e José Eduardo, que restou lesionado. Os jurados entenderam que o réu assumiu o risco de matar a vítima Flávio e, de outro lado, que o acusado lesionou culposamente Adriana e José Eduardo. Assim, a decisão do Conselho de Sentença se mostra absurda, cumprindo a renovação do julgamento. Não se pode conceber que mediante uma única ação, tenha o acusado agido mediante dolo e, também, com culpa, mormente quando considerado que a vítima fatal se encontrava no mesmo automóvel de José Eduardo. Além disso, Adriana, que era perseguida, pelo acusado foi tida como vítima de crime de lesão corporal culposa, enquanto que o ofendido Flávio, que sequer era perseguido foi tido como vítima de homicídio doloso. Flagrante a contrariedade à prova dos autos. Afastadas as prefacias. Apelo do Ministério Público parcialmente provido. Prejudicadas as demais inconformidades dos apelantes. (Apelação Crime Nº 70020046348, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marlene Landvoigt, Julgado em 25/05/2010).

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