Opinião pública

MP pede suspeição de juiz que criticou abuso policial

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2 de março de 2011, 17h55

O Ministério Público do Rio de Janeiro questionou a isenção de um juiz fluminense para analisar processos relacionados à operação policial no complexo do Alemão, que aconteceu em novembro de 2010. O motivo foram declarações à imprensa, em que o juiz Rubens Roberto Rebello Casara, da 43ª Vara Criminal do Rio, chama a atenção para o fato de que o Estado não pode combater ilegalidades, cometendo outras tantas. Os réus foram absolvidos em dois dos cerca de oito processos relacionados à operação distribuídos, por sorteio, ao juiz. O pedido de absolvição foi feito pelo próprio MP. As outras ações ainda não foram analisadas.

Na exceção de suspeição, o Ministério Público explica como se deu a operação que uniu as Forças Armadas e as Polícias Federal, Civil e Militar do Rio e cercou o conjunto de favelas da Penha, na zona norte da cidade. Reconhece que, a princípio, não havia motivos para suscitar a suspeição do juiz, já que se tratava de mais uma acusação de tráfico de drogas.

Entretanto, diz o MP, considerando o teor de declarações que o juiz deu aos meios de comunicação, a imparcialidade estaria comprometida. O órgão ministerial, na petição, traz a íntegra de entrevista concedida à revista Carta Capital, em que o juiz, questionado sobre as denúncias de moradores das favelas de que havia abusos na operação, faz considerações sobre o sistema de repressão penal.

Em um dos trechos, ele diz: "as notícias que chegam são de que estão invadindo casas, prendendo pessoas para averiguação e usando uma série de atos completamente desassociados do projeto constitucional".

Em reportagem publicada na ConJur, que ouviu vários operadores do Direito sobre denúncias contra a investida da Polícia, o mesmo juiz se manifestou. Ele demonstrou preocupação com o que estava sendo divulgado. Moradores estavam reclamando do modo como policiais estavam invadindo as casas. Uma pregou na porta um aviso: "Esse estabelecimento já foi vistoriado. Não arrombem", e incluiu o número do celular para que pudesse ser contatada em caso de dúvidas.

Na época, o juiz havia dito que via com preocupação a atuação do Estado. Isso porque, na tentativa de combater os que violam a lei, o próprio Estado a estava violando. Ele também disse que o principal problema não é o fato de um ou outro policial praticar abusos nas operações, mas a estrutura que leva a esses tipos de abusos. "O que estimula a ilegalidade é toda uma cultura autoritária, com institutos e práticas que desrespeitam o outro e estão descompromissados com a democracia", disse na ocasião.

Atuação contramajoritária
O juiz julgou improcedente a chamada exceção de suspeição. "Ao contrário da atuação dos órgãos da administração pública, muitas vezes pautada pelo apoio popular que pode se transformar em votos (e, nesse particular, registro a importância de se refletir também sobre a participação do chefe do Executivo na escolha das chefias institucionais de diversas agências estatais), a atuação do Poder Judiciário é contramajoritária, razão pela qual, em suas decisões e manifestações, pode (e deve), na defesa dos direitos fundamentais, se opor à opinião pública", escreveu, na decisão, que também serve de resposta às informações solicitadas pelo Tribunal de Justiça, que vai decidir sobre a suspeição.

Integrante do conselho da Associação Juízes para a democracia (AJD), que divulgou nota na época da operação, demonstrando apreensão quanto ao que estava sendo divulgado sobre os abusos policiais, Casara afirma, ainda, que "existe o dever, não só como agente político, mas sobretudo como cidadão, de ocupar os espaços que se oferecem à defesa do Estado democrático de Direito".

Outro ponto que destacou, na decisão, é que suas declarações em nada se relacionam aos processos que estão sob seu comando. Em outras palavras, não era a operação policial ou a política de segurança pública do Estado que estava no banco dos réus.

"A exceção de suspeição proposta pelo Ministério Público soa ainda mais estranha na medida em que, na entrevista mencionada, o exceto [juiz] defendeu apenas a necessidade da atuação estatal se dar nos limites impostos pela legalidade democrática (aliás, nada mais óbvio). Ora, a defesa da legalidade democrática é (ou deveria ser) um dos objetivos institucionais do Ministério Público", escreveu o juiz Rubens Casara ao rejeitar o pedido do MP para que deixasse os processos.

De certo modo, continua o juiz, a exceção proposta pelo MP se mostra desrespeitosa com os demais juízes. "Ao pretender afastar um magistrado que se manifestou contra as ilegalidades noticiadas tanto pela sociedade civil quanto por parcela da mídia (que não se contentou com ‘versões oficiais’), parece apostar que os demais juízes iriam homologá-las."

A Assessoria de Imprensa do MP do Rio informou à revista Consultor Jurídico que o promotor Juan Souza Vazquez, autor da exceção de suspeição, não poderia se manifestar até o fechamento desta reportagem porque está de férias, mas que ele se manifestará oportunamente.

Absolvição
Em um dos casos, o homem, preso durante a operação no Complexo do Alemão, foi acusado pelo Ministério Público de tráfico de drogas. O MP baseou a denúncia no auto de prisão em flagrante lavrado na 22ª Delegacia de Polícia, na Penha.

No quintal da casa do homem, foi encontrada, de acordo com a acusação, grande quantidade de droga, arma e munição. O MP também fez um histórico de como foi a operação policial e falou da facção que comandava o tráfico naquela região.

Nas alegações finais, o Ministério Público, em audiência em fevereiro deste ano, pediu a absolvição do réu. O MP levou em consideração declarações de um policial militar que isenta o acusado de culpa. O policial afirmou que o acusado foi obrigado a permitir que as drogas fossem enterradas no quintal de sua casa.

Segundo o MP, ficou provado que a droga não pertencia ao réu e que não havia provas de que o acusado pertencesse à organização criminosa. O juiz Rubens Casara, da 43ª Vara Criminal, absolveu o acusado e determinou a expedição de alvará de soltura do homem, que ficou preso da deflagração da ação policial, no final de novembro de 2010, até fevereiro deste ano.

Se o Tribunal de Justiça julgar a exceção procedente, os atos do juiz, no caso, serão anulados. Por se tratar de processos distindos, os pedidos de suspeição foram distribuídos para Câmaras diferentes, o que pode gerar decisões divergentes.

Operação no Alemão
Em novembro do ano passado, a cidade do Rio de Janeiro viveu momentos de tensão. Criminosos passaram a incendiar carros nas vias da capital, muitas vezes, sem levar nada dos motoristas. Os ataques deixaram a população em pânico e levaram as autoridades do Estado a desencadear uma operação policial na Vila Cruzeiro, de onde, segundo os órgãos de segurança, partiam o comando dos ataques.

As forças policiais entraram na Vila Cruzeiro, cuja população vivia sob o jugo de traficantes. Na época, as emissoras de televisão mostraram a fuga de vários homens, alguns armados de metralhadoras e fuzis, da Vila Cruzeiro para a comunidade vizinha, o conjunto de favelas do Alemão. As comunidades foram cercadas pela Polícia, que começou a fazer o que se chamou de "pente fino", ou seja, ninguém entrava ou saia sem ser revistado. As casas também passaram por inspeção.

A operação, que possibilitou a instalação da Unidade de Polícia Pacificadora, que visa representar o Estado em lugares comumente dominados pelo tráfico, foi uma tentativa do governo do Rio de Janeiro de combater a criminalidade na cidade.

Mais recentemente foi desencadeada a operação da Polícia Federal batizada de Guilhotina. Fruto de uma investigação que uniu a PF, a Secretaria de Segurança Pública do Rio e o Ministério Público do estado, a operação investiga o envolvimento de policiais civis e militares com traficantes, milicianos e controladores do jogo do bicho. Entre eles, delegados ligados à cúpula.

Clique aqui para ler a notícia da ConJur sobre os direitos dos moradores do Complexo.

Leia a entrevista publicada pela revista Carta Capital com o juiz:

Quando a ação policial perde a legitimidade
Ricardo Carvalho
2 de dezembro de 2010 às 10:39h

Coordenador da Associação Juízes para a Democracia afirma que as denúncias de abuso de policiais nas operações dos morros cariocas representam uma crise de legalidade existente no Brasil

Desde o início da semana passada, o Rio de Janeiro vive uma situação de guerra contra o tráfico. A ação policial, que contou com o suporte das Forças Armadas, resultou na invasão da comunidade Vila Cruzeiro e, posteriormente, do Complexo do Alemão. Nos últimos dias, entretanto, surgiu na mídia uma série de denúncias por parte de moradores de abusos realizados pelas forças policiais. Entre as reclamações, destruição de eletrodomésticos, desaparecimento de dinheiro e outros bens e invasão de domicílios (leia Moradores acusam policias de abuso no Alemão).

O Conselheiro e Coordenador do Núcleo do Rio de Janeiro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), Rubens Casara, vê as reclamações de abuso policial com preocupação e afirma que demonstram uma crise de legalidade. Casara defende que a violação de preceitos da constituição pela polícia é incompatível com o regime democrático. “Agir dessa maneira significa duas opções:ou rasgamos a Constituição, ou acabamos com a hipocrisia e admitimos que a democracia não é para todos”.

Confira a entrevista:

CartaCapital: Como a AJD se posiciona em relação às notícias de abuso policial?
Rubens Casara: As notícias que nos chegam são encaradas com muita preocupação, porque demonstram sintomas de uma crise de legalidade. Na tentativa de combater aqueles que violam a lei, o próprio estado a está violando. Assim, a atuação estatal perde qualquer legitimidade. O que está por trás disso, mais do que fatos isolados, é um grave problema de estrutura e de valores daqueles órgãos encarregados da execução penal. O problema não é um ou outro policial que está abusando, mas sim uma estrutura leva a esse tipo de arbítrio.

CC: Você considera que a população em geral está justificando a ação do Estado?
RC: Parece-me que a sociedade brasileira, e até as vítimas da opressão estatal, se acostumaram com o autoritarismo. E essa é uma herança maldita dos tempos da ditadura, período não tão distante. As pessoas confundem a presença da autoridade com a prática de atos autoritários. Então causa muita surpresa e uma certa perplexidade a reação entusiasmada da grande maioria da população com esse tipo de ação. Não com o combate à criminalidade, que me parece sempre salutar, mas com a aceitação de que para isso se violem as leis. As notícias que chegam são de que estão invadindo casas, prendendo pessoas para averiguação e usando uma série de atos completamente desassociados do projeto constitucional. Quando a sociedade naturaliza o abuso e acaba dando ar de legitimação a esse abuso, há um grande problema. A sociedade acaba dando sinais de que ainda não conseguiu consolidar uma cultura democrática.

CC: Essas violações no Rio de Janeiro podem representar um retrocesso no âmbito dos direitos sociais?
RC: Com certeza representam um retrocesso e são sintomas de um autoritarismo incompatível com o regime democrático. Queremos agir da maneira como a polícia, segundo as denúncias, está operando? Tudo bem, mas primeiro rasgamos a Constituição e deixamos de viver em uma democracia. Esse é o preço a pagar pelo desrespeito aos direitos fundamentais. Ou então paramos com a hipocrisia e afirmamos que a democracia é para poucos, para os que podem ter os direitos fundamentais preservados.

CC: Você considera a ação policial, da maneira como foi realizada, efetiva?
RC: Não há como supor ingenuamente que a partir dessa ação o tráfico de drogas desapareça. Ou mesmo que as pessoas, que formam um verdadeiro exército de indivíduos que não interessam à sociedade de consumo e que não estão inseridas no mercado de trabalho, vão começar a sobreviver de maneira lícita. Isso é ilusório. Um exemplo: arma não cresce dentro da comunidade. A droga não é plantada nem refinada ali. Será que atos de inteligência que impedissem a droga ou a arma de entrar não seriam mais efetivos e de acordo com a Constituição? Esses últimos atos policiais me pareceram, literalmente, um espetáculo para inglês ver. Além de demonstrar a presença do estado e reafirmar valores. Só que são valores reafirmados a partir de práticas que desconsideram a constituição, o que desde logo os deslegitimam.

CC: De que maneira você enxerga o posicionamento da mídia na cobertura da ação policial?
RC: A leitura que nós estamos fazendo é que uma parcela considerável da mídia, principalmente da chamada grande mídia, trabalha a partir da estética da Disney, do bem contra o mal. Qualquer acontecimento ou conduta é um fato social muito mais complexo e que não pode ser reduzido da maneira como está sendo pelos meios de comunicação. Essa estética Disney, como se a pessoa acusada de tráfico fosse a encarnação do demônio e os agentes do estado, a esperança da realização dos direitos, é simplista e descontextualizada. Nós esperávamos da mídia uma abordagem crítica no sentido de tentar ver o que se esconde por trás dessa atuação policial, o que se esconde por trás também da questão das drogas ilícitas e das organizações criminosas. O que nós vemos no Rio de Janeiro é a ponta de um iceberg de um grave problema social que não está sendo efetivamente combatido.

CC: Quais seriam esses problemas sociais?
RC: É a substituição do estado social, de políticas sérias de saúde e educação, pelo estado penal. Estamos instrumentalizando uma indústria do direito abstrato de segurança com consequências graves, como o surgimento de grupos paramilitares, em detrimento do direito à vida, à integridade física e à saúde.

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