Extradição no caso Battisti

É preciso ter motivação para não aplicar tratado

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1 de março de 2011, 12h50

O filosofo José Arthur Gianotti em excelente artigo sobre um caso de extradição que tem ocupado o STF e as manchetes, tratou de aspectos da questão que envolvem conceitos de ciência política, expostos de modo esclarecedor. Todavia há outra questão, que não encarou, e que me parece também relevante. Sem dúvida essa aparecerá no curso de um futuro julgamento do STF. É a da existência de um tratado e de como deve ser aplicado e interpretado.

A questão não é política, é jurídica, aplicável àquele caso, assim como em outros, e não só em relação à extradição.

Tratados, como sabe o leitor, são acordos celebrados entre Estados, ou entre estes e organizações internacionais, que estabelecem certas regras de conduta obrigatórias para as partes. Nisso se assemelham aos contratos privados, e também o fazem no estarem sujeitos à interpretação e aos princípios gerais de direito da boa fé e da razoabilidade.

O caso objeto do artigo de Gianotti irá ao STF porque o Estado que solicitou a extradição alega que um tratado celebrado pelo Brasil em matéria de extradição não está sendo cumprido.

Esse tratado, celebrado com a Itália, em seu artigo 3, item 1, letra r, admite a recusa de extradição quando houver "razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, opinião política, condição social ou pessoal, ou que sua situação possa ser agravada por um dos elementos antes mencionados".

Não há dúvida de que o referido tratado faça parte da legislação brasileira, e que integre um sistema necessariamente coerente. Assim, a interpretação do tratado se fará levando em conta o conjunto das regras que compõe o sistema, a começar pela Constituição. Esta elimina a arbitrariedade nos atos dos governantes, submetendo-os ao princípio da legalidade. Este leva a que os agentes públicos devam agir nos limites das funções que lhes são atribuídas, e obedecendo às normas vigentes no país. Quando há um espaço de discricionariedade, isto é o agente público pode escolher entre várias soluções ou hipóteses, este deve fazê-lo atendendo à finalidade da lei, e fundamentar sua decisão. Os juízes devem fundamentar suas sentenças, os integrantes do Poder Executivo, como o Presidente da República, também.

A fundamentação serve, entre outras coisas, para assegurar que a discricionariedade não se torne em arbítrio. Permite o controle pelo Judiciário dos atos do Executivo, necessário para evitar o totalitarismo e proteger as liberdades públicas.

Assim, o STF irá examinar a justificativa ou motivação do ato do presidente da República que negou um pedido de extradição no quadro do tratado, para verificar se houve, arbítrio intolerável, ou exercício da discrição que a lei lhe dá, admissível.

Ou seja, verá se as razões que levaram o presidente da República a recusar a extradição foram ponderáveis como exige o tratado. Isso se fará, como é curial, avaliando a possibilidade concreta de virem a ocorrerem “atos de perseguição”. Depois, deverá avaliar se esses atos de perseguição e discriminação podem resultar num agravamento da situação do extraditando.

Com efeito, a interpretação dos tratados, segundo o direito internacional, deve ser feita de boa fé e de acordo com o sentido comum dado aos termos do tratado, tendo em vista o objeto do tratado e o contexto.

O objeto do tratado é permitir a extradição, e o do seu artigo 3, (1), “r” acima citado é definir quando um dos Estados pode excepcionar a obrigação, que assumiu perante o outro, de concedê-la. E a regra diz que isso somente deve ocorrer quando houver “razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação”.

A expressão é “razões ponderáveis”. Não é simples suspeita, sensação, são razões. Não são simples razões, são razões qualificadas pelo adjetivo ponderáveis. Este significa o que pode ser pesado, medido, o que, aliás, a raiz etimológica, a mesma de peso indica. Ou seja, devem ser razões de peso. Vejamos o contexto em que a expressão se insere. É o do respeito aos direitos da pessoa, e ao devido processo legal que assegure esses direitos, no quadro da manutenção da ordem pública no país do extraditando.

Se um dos Estados signatários, por hipótese, não fosse uma democracia em que os direitos humanos são respeitados, sem dúvida haveria uma razão ponderável para a negativa de extradição. Se as condições a que o extraditando, por exemplo, o tratamento carcerário for pior, que as que o Brasil dá aos seus cidadãos, também é uma razão ponderável.

É isso o que o STF vai examinar agora no caso Battisti. Se há razões ponderáveis para supor que ele será perseguido, e se na prisão será tratado pior que qualquer cidadão brasileiro nas prisões brasileiras. Só isso. Não vai julgar o Presidente, não vai julgar o extraditando, não vai examinar a regularidade do processo e julgamento deste. Isso já foi decidido.

Submetido aos princípios constitucionais da publicidade, legalidade, moralidade e eficácia, o ato do presidente da República pode e dever ser objeto do escrutínio dos tribunais. Sua validade será reconhecida se na motivação da recusa feita pelo presidente da República estiverem patentes as razões ponderáveis que o levaram a negar a extradição e a crer que no Estado que a pediu se perseguem pessoas “por motivo de raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, opinião política, condição social ou pessoal, ou que sua situação possa ser agravada por um dos elementos antes mencionados” razões admitidas pelo Brasil no tratado.

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