Ideias do Milênio

"WikiLeaks é uma janela sem filtros para o mundo"

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27 de maio de 2011, 7h54

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Entrevista do jornalista britânico  David Leigh ao jornalista Sílio Boccanera para o programa Milênio, transmitido originalmente no dia 16 de maio. O Milênio é  um programa de entrevistas do canal de televisão por assinatura Globo News, que vai ao ar às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça; 5h30 de quarta; e 7h05 de domingo.
Leia, a seguir, a transcrição da entrevista:

Milhares de documentos secretos do governo americano caem num site da Internet, especializado em acolher informações proibidas ao público enviadas de forma anônima: o Wikileaks. O site abriga textos ou vídeos como este do ano passado: um filme interno e secreto do Pentágono mostrando disparos de um helicóptero americano contra o solo em Bagdá, operação desastrosa que resultou na morte de 18 civis, inclusive dois jornalistas da agencia Reuters.

O responsável pelo site Wikileaks, o australiano Julian Assange, recebeu vasto material bruto sobre as guerras no Iraque e no Afeganistão, além de numerosa correspondência diplomática do governo americano. A documentação era suficiente para preencher 2 mil livros. Ele decidiu então fazer um acordo com a mídia tradicional para obter ajuda na seleção e conseguir mais impacto internacional. Deu acesso ao material para o jornal britânico The Guardian e para o americano The New York Times, bem como para a revista alemã Der Spiegel, para analisarem e publicarem o que achassem apropriado.

Os jornalistas selecionaram, conferiram, deram contexto e revelaram detalhes das comunicações sem censura entre soldados e oficiais na frente de luta, bem como a troca de mensagens entre diplomatas americanos pelo mundo e seus chefes em Washington. Foi um dos maiores furos jornalísticos das últimas décadas. Esses foram apenas alguns entre muitos outros segredos revelados no trabalho conjunto de Wikileaks e jornalistas, uma relação que logo se tornou hostil, sobretudo no trato com Assange.

Ele não gostou quando ambos os jornais publicaram críticas a ele apontando uma personalidade que mistura inteligência, arrogância e mistério. Assange se enfureceu sobretudo quando o Guardian revelou detalhes oficiais do processo na Suécia por supostos abusos sexuais, crime que ele nega ter cometido. Novas revelações continuam a sair até hoje como as dez páginas no Guardian, em abril, com segredos da prisão americana de Guantánamo. As revelações correram o mundo.

No Guardian, o Editor de Jornalismo Investigativo, David Leigh foi o responsável por lidar com Assange e comandar a edição dos documentos secretos do Wikileaks, publicados no diário britânico. Juntamente com seu colega de redação Luke Harding, ao final da experiência, Leigh escreveu o livro Wikileaks: Inside Julian Assange’s War on Secrecy, lançado em vários países, inclusive no Brasil, onde recebeu o título Wikileaks: A Guerra de Julian Assange contra os Segredos de Estado (Editora Verus, 336 páginas, 2011). O Milênio conversou, em Londres, com David Leigh.

Silio Boccanera — Imagino que não tenha sido fácil essa parceria extraordinária entre o New Yotk Times, The Guardian e Der Spiegel, que mais tarde ganhou novos membros… As prioridades editoriais de cada um são diferentes. Como funcionou essa combinação?
David Leigh — Bem, foi uma parceria muito incomum e muito instável também. Foi um milagre a parceria ter durado tanto tempo. Foram vários meses. Dois aspectos específicos foram muito difíceis. Por um lado, havia uma parceria entre todas as organizações tradicionais de jornalismo, operando em fusos horários e culturas diferentes, e em línguas diferentes. Era uma revista semanal na Alemanha, um jornal diário em Nova York, em outro fuso horário, e o Guardian aqui, na Inglaterra. Além disso, havia El País [da Espanha]… O jornal Le Monde [da França] é vespertino, e o Guardian é matinal. Tentar reproduzir um cronograma coordenado para um não roubar as notícias do outro nos deu muita dor de cabeça. Isso foi parte do problema, mas havia outro. Éramos um grupo da “grande mídia”, como o pessoal on-line costuma dizer, tentando colaborar com um bando de anarquistas, como meu próprio editor descreveu corretamente.

Silio Boccanera — Está falando do WikiLeaks.
David Leigh — Correto. A ideologia deles é totalmente diferente da nossa. E, na verdade, eles demonstravam hostilidade e desprezo pelos seus supostos colaboradores.

Silio Boccanera — Você era parte do stablishment.
David Leigh — Exato.

Silio Boccanera — Esse é outro aspecto do jornalismo que as pessoas costumam esquecer. Os jornalistas fazem uma seleção. É parte do trabalho do dia-a-dia. Não publicamos tudo que recebemos. Naturalmente, princípios e valores editoriais entram na questão. Isso deve explicar boa parte das diferenças, além dos pontos de vista de cada país.

David Leigh — Você faz sua escolha quando paga. É por isso que alguns compram o Guardian: eles preferem a nossa visão de mundo. Outros compram o New York Times porque preferem a visão deles. São essas perspectivas diferentes que os consumidores compram.

Silio Boccanera — Ainda é preciso lidar com um velho problema no caso do material bruto do WikiLeaks: a questão jornalística da informação bruta. Como é possível confirmar exatidão e legitimidade? Como lidaram com isso?
David Leigh — Nosso primeiro problema foi uma séria dificuldade técnica. Como seria possível analisar esse volume de informação? Eram 250 mil comunicações diplomáticas, 300 milhões de palavras. O equivalente a uma biblioteca de dois mil livros. Nenhum ser humano leria tudo aquilo para tomar uma decisão. Portanto, nosso primeiro passo foi construir um banco de dados e elaborar formas de pesquisar os dados usando como chave certos temas, palavras, datas ou locais que nos permitissem visualizar determinados aspectos do que acontecia no mundo naquele momento. Foi preciso decidir o foco das reportagens e o significado de tudo aquilo. Existe algo nesses documentos que o pessoal do WikiLeaks valoriza. Julian Assange e os ideólogos do WikiLeaks acreditam que esses documentos têm algo de sagrado. Naturalmente, como jornalista profissional, você sabe que não é verdade. O documento tem um certo valor por não poder ser alterado. Está cristalizado, está lá. Mas o que está escrito nele não é o verbo sagrado. É só o que certas pessoas decidiram registrar em determinados momentos. É o que alguns diplomatas americanos acharam importante comunicar a Washington em certos momentos. Pode ser importante ou não. Talvez seja só algo que ouviram na rua, talvez quisessem oferecer uma boa impressão sobre algo ou simplesmente disseram a seus superiores o que eles queriam ouvir. É preciso avaliar com que fim foram feitos esses relatórios e documentos. É o que jornalistas profissionais fazem.

Silio Boccanera — Como parte desse trabalho, vocês obviamente decidem omitir muita coisa devido a essa montanha de informações. As informações que vocês deixaram de fora foram consideradas, como você disse, irrelevante ou maçantes? Ou havia informações delicadas, além de nomes, que vocês decidiram excluir?
David Leigh — À certa altura, o Departamento de Estado dos EUA tentou nos persuadir a não noticiar, por exemplo, vários relatórios do Iêmen porque eram assuntos delicados demais e haveria repercussões políticas no Iêmen. Rejeitamos essa proposta e, pelo que sei, o Guardian não escondeu nada por motivos de sensibilidade política. Excluímos certos nomes para evitar que sofressem represálias. No Guardian, também excluímos acusações de corrupção que não foi possível confirmar, pois estamos sujeitos à lei britânica de difamação. Portanto, foi muito frustrante ouvir reclamações malucas do WikiLeaks e seus afiliados que estávamos “censurando” histórias de corrupção. Até ficamos sabendo que russos que escreviam em jornais do Kremlin alegaram que estávamos omitindo informações sobre o comportamento de corporações ocidentais. É besteira. Precisávamos agir em conformidade com as leis de difamação do nosso país. Parte do acordo entre você, Assange, o WikiLeaks e outros órgãos de imprensa tinha a ver com o momento certo para divulgar as informações. Porém, em nenhum ponto envolveu dinheiro. Ninguém foi pago por nenhum tipo de serviço ou pelo fornecimento de informações. Não houve absolutamente nenhum dinheiro envolvido no que diz respeito a nós ou nossos parceiros na mídia.

Silio Boccanera — Bill Keller, o editor do New York Times que esteve no comando dessa parceria, disse que o valor desses documentos não é somente a revelação de grandes segredos, pois eles também contribuem para o nosso conhecimento, oferecendo novas nuances, texturas e drama. Você concorda?
David Leigh — Sim, os documentos são imensamente educativos. Não havia revelações bombásticas, como quem matou o presidente Kennedy e coisa assim. Mas eles ofereceram uma visão nova e reveladora das guerras no Iraque e no Afeganistão. Por exemplo, números de mortes. Os americanos afirmavam que não faziam contagens de corpos, mas descobrimos que faziam. Esses registros calculam 66 mil civis mortos ao longo de todos os incidentes da guerra. Isso contribui muito para o que sabemos. Em vários sentidos, esse é o aspecto mais importante do vazamento. No que diz respeito às transmissões diplomáticas, elas ajudam a completar a visão geral. Frequentemente, dizem coisas com muita franqueza que só se diz publicamente em termos mais contidos. Por exemplo, a situação da Rússia como um estado corrupto controlado pela máfia em muitos sentidos. O Afeganistão é outro exemplo. Um político afegão é descrito abertamente quando aparece no aeroporto de Dubai com US$ 52 milhões em sua maleta. Não é o tipo de coisa que se costuma ouvir vindo de diplomatas americanos. Portanto, é uma janela sem filtros para o mundo. Isso é muito educativo, e só pode ser bom, especialmente num mundo em que há tanta desinformação e pura ignorância.

Silio Boccanera — Oferece uma perspectiva adicional. O WikiLeaks diz, por exemplo, que os governos da Tunísia e do Egito são corruptos. Já sabíamos disso, mas isso ofereceu um ponto de vista esclarecedor.
David Leigh — Além de iluminar com uma nova luz, é uma luz muito incomum e específica. Na Tunísia, por exemplo, vimos que um parente do presidente tinha comportamentos extravagantes a ponto de criar tigres em seu jardim! É o tipo de detalhe concreto que nos permite visualizar a vida dessas pessoas. 

Silio Boccanera — Nesse caso específico, o povo tunisiano acabou lendo sobre isso. Embora as pessoas já tivessem uma ideia dessas coisas, ler os detalhes foi revoltante para elas, a ponto de derrubarem o governo.
David Leigh — Eu diria que isso certamente foi um fator na agitação política que derrubou o governo. Porém, não diria que essa foi a causa. Isso seria presunção demais.

Silio Boccanera — Fale da reação negativa quando isso foi divulgado. Houve muito apoio, mas também muitos protestos especialmente na direita americana. Sarah Palin chegou a dizer que o pessoal do WikiLeaks “deveria ser caçado como o Talibã”, entre outras coisas. Outros clamavam pela pena de morte e chamavam-nos de traidores. É uma reação exagerada?
David Leigh — É muito deprimente ver como certa gente nos EUA, especialmente políticos que deveriam ser mais esclarecidos, reagem a qualquer problema exigindo a morte de todos os envolvidos. Isso não é atraente. Passa uma imagem feia dos EUA para o resto do mundo. Faz eles parecerem violentos e agressivos em demasia. Foi o tipo de espasmo que vimos após os ataques de 11 de setembro de 2001. Em um espasmo vingativo, os EUA basicamente atacaram muita gente. Isso é um sinal alarmante e nocivo sobre os EUA e seus políticos. É maluquice! Gente como Sarah Palin não deveria poder exigir a morte de gente que apenas vazou informações embaraçosas. Nenhum americano morreu por consequência disso. Ali, vemos a fúria de gente que se vê como parte da única superpotência vitoriosa no mundo quando se deparam com um desafio. Essa fúria não é elegante.

Silio Boccanera — Antes, você mencionou que o departamento de Estado americano tentou impedi-los de publicar certas coisas. O que eles tentaram fazer?
David Leigh — A forma como o departamento de Estado tratou conosco na verdade, foi muito interessante e civilizada. Foi um alívio descobrir, logo nas primeiras etapas, que eles não perseguiriam o Guardian. Isso foi descrito no livro. Eles estavam dispostos a tratar conosco. Naturalmente, o New York Times sempre lidou com a Casa Branca e o departamento de Estado e eles avisaram com antecedência que pretendíamos publicar aquele material. Portanto, eles tomaram uma decisão considerada que nós aceitamos. Eles notificariam o governo americano com antecedência. Ou seja, o processo foi bastante civilizado. Eles visitaram o Guardian e disseram: “Vocês darão ouvidos a nós? Podemos nos representar?” Nós os autorizamos. Logo, veio gente do consulado americano. Falaram com nosso editor, e convocamos uma reunião. Mais tarde, perguntaram: “Vocês falariam por telefone com gente em Washington?” Nós aceitamos, e no final das contas, falamos com gente como Philip Crowley, o porta-voz do departamento de Estado para Hillary Clinton. Agora, Crowley foi forçado a pedir demissão por criticar o tratamento de Bradley Manning [soldado americano suspeito de ser o responsável pelo vazamento dos documentos que municiaram o Wikileaks, que está preso nos EUA] pelo exército americano. É meio irônico. Tivemos uma conversa bem civilizada, com foco principal deles sendo: “Não mencione gente que pode sofrer represália.” Nós explicamos que não faríamos isso mesmo. Já tínhamos decidido agir de forma sensata. A seguir, discutimos um monte de outras coisas sobre o material mais delicado. Perguntaram se ouviríamos representantes deles. “Ouviremos qualquer um.” No final das contas, não censuramos nada devido a pedidos políticos.

Silio Boccanera — Você mencionou a forma como Manning tem sido tratado. Falemos do elemento inescapável do assunto: o próprio Julian Assange. Um ex-hacker australiano de 40 anos. Seu livro deixa claro que sua opinião sobre ele não é muito favorável.
David Leigh — Espero ter descrito a personalidade dele, que é bem estranha, de forma justa. Muita gente vê Julian como um herói, um guerrilheiro que combate o stablishment pelo mundo afora. Ele realmente fez coisas extraordinárias e foi um pioneiro. O problema é que, devido à personalidade dele, é impossível lidar com ele. Ele se comporta de um modo impossível. Ele é paranóico e desconfiado. Vive se metendo em encrencas. Vimos que foi acusado de violência sexual na Suécia. Enfim, tivemos uma divergência.

Silio Boccanera — Você pessoalmente, ou todo o Guardian?
David Leigh — Ambos. Eu e o Guardian. Ele me considera uma pessoa ruim e fez comentários muito hostis sobre mim devido à minha insistência em não trair o New York Times, um de nossos parceiros originais. Julian brigou com eles. Não gostou de algo que eles escreveram e decidiu excluí-los do acordo, enquanto negociava secretamente com o Washington Post. Achei isso uma péssima ideia e insisti em compartilhar o material com o New York Times. Isso deixou Julian furioso, e nós brigamos. Ele apareceu aqui com seu advogado e ameaçou nos processar por roubar sua propriedade. Insanidades assim.

Silio Boccanera — Assim como ele não gostou do que o Times disse dele, também não gostou quando um de seus repórteres foi à Suécia e soube de detalhes de seu julgamento, das acusações de crime sexual contra ele. Qual é o estado atual dessas acusações? O que é informação pública? O que sabemos?
David Leigh — O que não gostamos das acusações contra ele é que Julian disseminou mundialmente a sugestão de que ele era vítima de uma arapuca da CIA. Aquelas mulheres teriam sido enviadas para uma cilada e essencialmente faziam acusações falsas. Investigamos a situação, pois ficamos preocupados. Descobrimos muito bem o que aconteceu. Julian fez sexo com duas jovens, admiradoras do WikiLeaks, em um curto espaço de tempo. Nos dois casos, ele se recusou a usar camisinha. Elas ficaram muito perturbadas com isso. Uma diz que ele rasgou a camisinha de propósito. A outra diz que fez sexo com ela enquanto ela dormia, e sem usar a camisinha. Isso a incomodou muito. Quando essas duas mulheres foram reunidas, elas não queriam prendê-lo. Queriam que ele fizesse um teste de HIV. Temiam a possibilidade de contrair algo e queriam que ele fosse testado. Ele se recusou. Elas disseram: “Se você se recusar, vamos à polícia.” Ele se recusou de novo, e elas chamaram a polícia. Para começar, nada disso teria acontecido se Julian não tivesse irritado as duas mulheres com seu comportamento. Segundo, podia ter feito o teste que elas pediram. Não há cilada da CIA nessa história. 

Silio Boccanera — Nesse exato momento, ele aguarda o julgamento de um reucrso contra sua extradição para a Suécia. Parte de seu argumento é que, se for deportado para a Suécia, ele logo vai parar nos EUA, onde será julgado e receberá a pena de morte. Nesse sentido, acha que ele está sendo paranóico?
David Leigh — Isso é pura baboseira. Primeiro, se os EUA quisessem extraditá-lo, seria muito mais fácil fazê-lo no Reino Unido do que na Suécia. O tratado de extradição do Reino Unido com os EUA é muito simples. Será mais difícil a partir da Suécia. Ademais, se for extraditado para a Suécia por acusações de crimes sexuais, ele não pode ser extraditado depois para os EUA por acusações diferentes, relacionadas à liberdade de expressão sem o consentimento do Reino Unido. Você não pode ser extraditado para a Suécia por uma coisa e depois, para outro lugar, por outra. Portanto, sua situação será a mesma na Suécia. Acho que a verdade por trás disto é que Julian, por bom motivo, não quer ser deportado para a Suécia para enfrentar essas acusações de violência sexual. É uma estratégia de marketing para causar alarde sobre a situação, e não é nada honroso da parte dele.

Silio Boccanera — Para encerrar esse assunto, o WikiLeaks é apenas a mais nova manifestação de fenômenos da internet que vemos em diversas áreas, inclusive na área jornalística. Você é veterano no meio e viu essa transição. Quanto seu trabalho mudou com isso?
David Leigh — Ora, meu trabalho mudou completamente com a chegada da era da internet. Todos os elementos da história do WikiLeaks nunca teriam acontecido no início da minha carreira de jornalista. Tudo gira em torno da internet neste caso. Um jovem soldado é acusado de vazar informações que estão na internet porque o Departamento de Estado dos EUA colocou suas transmissões na internet para acesso a partir de websites confidenciais por outras embaixadas e departamentos. É uma mudança incrível na forma de fazer diplomacia e compartilhar informações sigilosas. Além disso, há o fato de que informações são vazadas graças a gente com métodos baseados em software, raspando informações de páginas militares dos EUA e fazendo uploads para outras pessoas que as distribuem para o mundo. Isso é completamente novo. Finalmente é novidade para os jornalistas receber esse volume gigantesco de material e descobrir formas de ler, analisar e interpretar tudo. Precisamos usar métodos inéditos para nós. Depois, foi preciso publicar tudo globalmente, coisa que nunca fazíamos como jornalistas, em formas que não causarão prisões ou processos. Tudo deste empreendimento é completamente diferente comparado a quando entrei na mídia impressa.

Silio Boccanera — De modo geral, após esses meses de parceria, esta história do WikiLeaks é uma força positiva? Ou seria algo perigoso? Está sendo mal utilizado? Existe potencial de ser mal utilizado? Qual é a sua avaliação geral?
David Leigh — Há muito tempo, faço campanha sobre os perigos de grandes bancos de dados. Na Grã-Bretanha, especificamente, considerei muito perigoso a proposta de compilar um banco de dados com as fichas médicas de todos os cidadãos. Do meu ponto de vista, assim que inventarmos um banco de dados assim, criamos algo que não existia antes e que pode ser – e será – vazado. Pessoas terão acesso àquilo, e eu não quero gente de fora, seja o governo, detetives particulares, outros tabloides ou corporações, acessando meus dados médicos. Acredito que muita gente pensa como eu. Com estes materiais, é a mesma coisa. Quando uma tecnologia é desenvolvida a ponto de proporcionar a criação de enormes bancos de dados, temos um problema. Nem tudo nesses bancos deveria ser vazado, mas será. Se Julian Assange não tivesse organizado o WikiLeaks, outra pessoa teria feito algo parecido porque tudo é direcionado pela tecnologia. Quando vemos as possibilidades técnicas, as coisas acontecem.

Silio Boccanera — Desde todas aquelas publicações, sem falar no que o WikiLeaks já havia divulgado, houve muita discussão a respeito deles. Acha que o impacto do WikiLeaks tem sido exagerado? O público superestima seu impacto ou você diria que realmente é algo importante?
David Leigh — Acho que houve muito alarde sobre o assunto. O pessoal do WikiLeaks quer convencer a todos de que isso é uma revolução em comunicação que tornará a grande mídia obsoleta. Isso é puro exagero. O que eles conseguiram foi ter muita sorte. Encontraram um suposto soldado americano que estava disposto a fornecer uma quantidade assombrosa de informações digitalizadas. Quando compilamos enormes bancos de dados como esse, eles são organizados e, inevitavelmente, são vazados. Nesse sentido, o mundo mudou. Mas o site do WikiLeaks, com toda a conversa sobre criptografia, contribuições anônimas de documentos e tal, em vários sentidos, é uma certa fantasia criada pelo mundo dos geeks. A verdadeira força do WikiLeaks não vem disso, e sim do fato de ser uma entidade incensurável. A circulação do material enviado ao WikiLeaks não pode ser impedida. Como estão envolvidas várias jurisdições, os governos nacionais ainda não sabem como impedir que o conteúdo seja divulgado.

Silio Boccanera — Ainda neste assunto de sociedades democráticas deparadas com essa tensão entre a necessidade de manter segredos, que todo governo tem, e o desejo dos cidadão de saber mais para continuarem exercendo a sua cidadania: você acredita que essa experiência do WikiLeaks exacerbou essa tensão ao extremos? Acha que ficamos com o equilíbrio certo? 
David Leigh — Como você disse, essa tensão é um elemento fundamental de toda sociedade democrática. Essa tensão sempre existirá. Obviamente, a teoria do WikiLeaks de que tudo deve ser revelado leva essa ideia a um extremo insustentável. Em sociedades e governos, nem tudo pode ser revelado. Por exemplo, buscamos omitir os nomes de indivíduos que poderiam sofrer represália. Algo que também é verdade é que, como jornalista que fez campanha por liberdade de informação durante toda minha carreira, sei muito bem que os governos escondem mais do que deveriam. Nós precisamos batalhar para expor e tornar transparente o máximo que pudermos. Não há igualdade de forças nesta situação. Os jornalistas sempre estarão atrás na corrida contra os governos. Conheço jornalistas que entraram na política e viraram porta-vozes. Eles me dizem: “É chocante descobrir que, como jornalista, eu não sabia nem de 5% da verdade dos fatos.” Acho que o povo precisa saber muito mais do que 5%.

Silio Boccanera — Falando do aspecto legal, é claro que toda organização jornalística tem suas limitações legais sobre o que pode ser publicado. Esclareça para o nosso público no Brasil: no momento em que algo é publicado na internet, digamos, pelo WikiLeaks, você está legalmente protegido para divulgar fatos que não poderia revelar em outras condições? Existem implicações legais?
David Leigh — Bem, não funciona exatamente assim. Na Grã-Bretanha, nossas leis de difamação são muito rígidas. Há limites para o que podemos publicar. Porém, graças a esse arranjo, o WikiLeaks conseguiu publicar online o que quisesse sem se sujeitar às leis de difamação. Naturalmente, nossos parceiros também publicaram o que queriam sob suas próprias leis nacionais de difamação. Nos EUA, por exemplo, o New York Times pode publicar muito mais porque suas leis contra a difamação são mais abertas e liberais que as nossas. Nós só podíamos publicar o que era autorizado, mas qualquer um poderia procurar o WikiLeaks para saber mais detalhes.

Silio Boccanera — Tradicionalmente, como sabemos, a mídia depende muito de materiais vazados, seja por políticos, funcionários públicos, ou gente envolvida em conflitos internos que teriam algo a ganhar com isso. O WikiLeaks acrescenta algo novo a isso?
David Leigh — Acrescenta quantidade. Antigamente, nos acostumamos a vazamentos de um ou dois documentos por vez. Quando Daniel Ellsberg divulgou os Papéis do Pentágono, ele diz literalmente que passou meses fazendo cópias de 7 mil páginas desse relatório interno secreto. Agora, essa situação foi transformada. Temos bancos de dados com 300 milhões de palavras que podem ser vazados praticamente com o aperto de um botão.

Silio Boccanera — Então a quantidade afeta a qualidade.
David Leigh — Acredito que sim.

Silio Boccanera — Você mencionou os Papéis do Pentágono. Como compara essas revelações? Em 1971, isso afetou a forma como o povo via a guerra do Vietnã. Acha que este caso teve um impacto similar?
David Leigh — O mais interessante é que nem o WikiLeaks nem os Papéis do Pentágono mudaram coisa alguma. Isso precisar ser compreendido. Ellsberg achou que os Papéis do Pentágono mudariam o rumo da guerra. Não mudaram. Porém, a longo prazo, do ponto de vista histórico, acho que isso ajudou o povo a ver o que havia de errado na Guerra do Vietnã. Portanto, foi uma contribuição histórica valiosa, digamos. No caso do WikiLeaks, o material não deu um fim à guerra no Afeganistão. Não deu um fim à situação no Iraque. Não deixou sem ação a diplomacia americana. Com exceção de sua pequena contribuição nas rebeliões da Tunísia, não dá para dizer que o mundo viveu mudanças dramáticas graças ao fenômeno de divulgação do WikiLeaks. Novamente, a longo prazo na história, veremos que as pessoas agora são mais informadas sobre a natureza dessas coisas, e isso é ótimo. Enfim, não são reviravoltas drásticas. O que vemos é um aumento no nível de educação do público.

Silio Boccanera — Se começar com dados médicos, como você mencionou, sempre pode expandir para outras coisas, e essas informações também serão divulgadas.
David Leigh — Portanto, acho muito perigoso ver a compilação atual de enormes bancos de dados para todo tipo de coisa. 

Silio Boccanera — No aspecto diplomático, vocês tiveram acesso a mensagens de diplomatas americanos, que foi um volume enorme de informações. O ex-secretário do Exterior David Miliband explicou assim: atualmente, um volume enorme de nossas informações vem de outras fontes graças à internet e às notícias 24 horas por dia. Os diplomatas têm um trabalho diferente do que tinham antigamente. Eles costumavam transmitir dados que agora recebemos pela mídia. Portanto, seu trabalho diário e suas comunicações passaram a ser mais pessoais. É isso que encontramos no WikiLeaks. Esses caras agora expressam suas opiniões sobre assuntos. Percebeu alguma mudanças? Os diplomatas estão agindo diferente?
David Leigh — Não tenho dados adequados para afirmar que houve uma mudança. Temos um retrato do momento atual, da diplomacia americana nos últimos anos. Suponho que podemos comparar isso ao material dos arquivos de 30 anos atrás, quando imagino que os relatórios diplomáticos eram mais factuais, já que a disponibilidade dos fatos era menor. Nas transmissões divulgadas no WikiLeaks, ainda vemos muitos relatórios simples para a imprensa. Enviaram para Washington coletâneas das notícias locais. Quando algo é filtrado por um indivíduo instruído, pelos olhos de um diplomata, essa informação é mais valiosa em comparação a pilhas de notícias que lemos sozinhos. Eles são analistas. Não diria que o papel do diplomata desapareceu. Não é isso que vemos. Porém, vemos que o papel do diplomata na era da internet… Hoje, há mais atividade bilateral. Quando políticos querem conversar entre si, não precisam de um embaixador para isso. Enfim, vemos diplomatas buscando um novo lugar. Eles querem passar uma visão do país e uma visão da situação de uma forma que gente de fora do país não consegue. Eles veem isso como valioso. Portanto, vemos uma grande ênfase em passar essa visão especial. Imagino que querem mostrar que merecem seus salários.

Silio Boccanera — Agora só falta esperar Hollywood. Soubemos que os direitos do seu livro foram vendidos para Steven Spielberg. Portanto, esta é a minha última e mais importante pergunta. Será Robert Redford ou Dustin Hoffman no seu papel?
David Leigh — Bem, foi Robert Redford no papel de Bob Woodward em “Todos os Homens do Presidente”. Ele sempre foi meu ídolo como jovem jornalista. Seria ótimo, mas ele está envelhecendo, e eu também.

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