Ato premeditado

Entendimento sobre suicídio põe seguradora em risco

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23 de maio de 2011, 8h16

Malgrado esta matéria estar totalmente consolidada com a redação e sua inclusão no atual Código Civil, vale dizer, no caput do artigo 798, o tema suicídio ressurgiu neste ano de 2011 com força total e mostra que ainda persiste causando muita polêmica em virtude da explícita dissonância entre os tribunais e os lidadores do direito e demais profissionais do mercado securitário. Há pouco tempo, a interpretação do artigo 798 do Código Civil parecia estar pacificada pelos operadores do Direito, mas o Superior Tribunal de Justiça por meio da 2ª Seção, resolveu novamente colocar “nova celeuma” ao julgar o Agravo de Instrumento 1.244.022/RS.

O julgamento teve um debate intenso entre os ministros, mas, ao seu término, prevaleceu o entendimento apresentada pelo ministro Luis Felipe Salomão, no sentido de que o suicídio cometido durante os dois primeiros anos de vigência do contrato de seguro de vida, período de carência, a seguradora só estará isenta do pagamento da indenização securitária, se comprovar que o ato do segurado foi premeditado.

Outrossim, nesta mesma toada, em recentíssima decisão do STJ, relatora ministra Fátima Nancy Andrighi, ao julgar o Recurso Especial 1.188.091-MG, valendo-se, inclusive, em precedente citado no Resp 1.077.342-MG, DJe 3/9/2010, a 3ª Turma deu provimento ao recurso por entender que as regras concernentes aos contratos de seguro devem ser interpretadas sempre com base nos princípios da boa-fé e da lealdade contratual.

Dessarte, “ a presunção de boa-fé deverá, segundo a ementa deste recurso especial, prevalecer sobre a exegese literal do referido artigo”, isto é, do 798 do CC. Ou seja, em síntese apertada, ultrapassados os dois anos, presumir-se-á que o suicídio não foi premeditado, mas o contrário não ocorre: se o ato foi cometido antes desse período, havendo necessidade da seguradora provar a premeditação. Pois, segundo o teor desta decisão “o planejamento do ato suicida, para efeito de fraude contra o seguro, nunca poderá ser presumido, aplicando-se o princípio segundo o qual a boa-fé é sempre presumida, enquanto a má-fé deve ser comprovada a teor das súmulas 105 do STF e 61 do STJ”.

Este aspecto da boa-fé, venia concessa, deve seguir o tráfico comum dos negócios, segundo a regra inserta no parágrafo 242 do BGB.[1]

Porém, também, para o ilustre ministro Salomão, no julgamento da 2ª Seção, acima ressaltado, “se alguém contrata um seguro de vida e depois comete suicídio, não se revela razoável, dentro de uma interpretação lógico-sistemática do diploma civil, que a lei, data vênia, estabeleça uma presunção absoluta para beneficiar as seguradoras”.

Em que pese a enorme capacidade e saber jurídico do ilustre ministro Salomão, no julgamento do sobredito agravo de instrumento, seu entendimento, a meu juízo, com as mais redobradas vênias àquele entendimento está em total dissonância com as determinações claras e expressas dos artigos 797 e 798 do vigente Código Civil que, por sua vez, é muito mais recente que as Súmulas 105 do Supremo Tribunal Federal e 61 do Superior Tribunal de Justiça.

A meu sentir, a ótica sobre o tema caminha em sentido contrário ao firmado pelo STJ, uma vez que as supracitadas súmulas foram firmadas nos anos de 1963 e 1992, respectivamente, quando não havia qualquer previsão legal no então vigente Código Civil de 1916. Ou seja, as Súmulas 105 e 61 do STF e STJ, que regulavam a matéria enquanto não existia lei ordinária que abordasse o tema, hoje, ao revés, representam uma afronta absoluta ao positivismo impregnado no Código Civil de 2002, que contempla em seus artigos 797 e 798, verbis:

Art. 797 – “ No seguro de vida para o caso de morte, é lícito estipular-se um prazo de carência, durante o qual o segurador não responde pela ocorrência do sinistro.

Parágrafo único. No caso deste artigo o segurador é obrigado a devolver ao beneficiário o montante da reserva técnica já formada”.

Art. 798 – “O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida nos primeiros 2 (dois) anos de vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o disposto no parágrafo único do artigo antecedente.

Parágrafo único- Ressalvada a hipótese prevista nesse artigo, é nula a cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do segurado”.

A novel redação acima transcrita do nosso Código Civil, cuja verdadeira intenção do legislador foi no sentido de “colocar uma pá de cal” na antiga celeuma em saber se o suicídio teria sido, ou não, premeditado.

Esta situação fática que gira em torno da “premeditação” é que foi, peremptoriamente, afastada com a previsão legal do prazo de carência contratual.

Ao azo, sobre o tema, já me manifestei quando comentei este artigo, por ocasião do lançamento da 3ª edição em uma de minhas obras, o que segue:

“Diante desta nova postura legislativa, os enunciados nºs 105 e 61, respectivamente, do Egrégio Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça não terão mais aplicabilidade na prática desde a vigência do novo Código Civil. Esta assertiva se prende a um simples motivo: o seguro de vida terá cobertura mesmo nas hipótese de suicídio, desde que este fato ocorra após dois anos de vigência do contrato de seguro de vida estipulado entre segurado e segurador”[2].

Antes da vigência do atual Código Civil, o eminente ministro Luiz Gallotti, que fez parte integrante do Supremo Tribunal Federal quando julgou esta matéria, já preconizava pela criação, a exemplo do direito francês, da conhecida “cláusula de incontestabilidade diferida”, justamente para afastar de uma vez por todas esta situação fática, vale dizer, saber se o segurado teria premeditado, ou não, o suicídio quando da contratação do seguro de vida.

A Corte Maior, malgrado a lucidez do ministro referenciado acabou de estender ao suicídio, inclusive nos casos de acidente pessoal, o que, também, nos parece ser em total desconformidade com o atual Código Civil.

Ademais, atribuir o ônus da premeditação às companhias de seguro, como lembram os irmãos Mazeaud no clássico Tratado da Responsabilidade Civil, que esta é uma “prova diabólica”, praticamente impossível.

Além disso, a existência de dúvidas sobre o conceito de “suicídio” ou “suicídio não intencional” para efeitos de exclusão de cobertura securitária, foi muito bem abordada pelo ilustre autor J.C. Moitinho de Almeida, quando lembrou que

“nos direitos europeus, ou não existe qualquer qualificação (leis belga, luxemburguesa e portuguesa e CCI italiano), ou se exige que o acto seja voluntário (artigo L.132-7, primeiro parágrafo, do CA francês – se donne volontairement la mort), intencional (§161.º (1) da VVG alemã –vorsätzlich) ou consciente e voluntário (artigo 93.º da lei espanhola). No fundo, não importa que quem se matou tenha agido com pleno domínio das circunstâncias que levaram a esse desfecho. A noção de “suicídio não intencional” parece contraditória pois quem se dá a morte sem intenção é vítima de acidente não podendo afimar-se que se suicidou. Afigura-se, deste modo, preferível o recurso a uma daquelas fórmulas, designadamente a de suicídio voluntário que nos parece menos ambígua”[3].

Ora, a estipulação no Código Civil de um prazo de carência, foi uma medida que seguiu princípios, não só de mutualismo em que se estriba o contrato de seguro, mas, sobretudo, de resguardo ao equilíbrio de uma relação contratual, no qual as partes (segurado e segurador) estabelecem garantias de solidez a este contrato-tipo, vale dizer de adesão.

A carência, a exemplo de outras legislações alienígenas, coloca as partes envolvidas nesta relação numa situação de segurança e de certeza em um contrato em que a álea e a imprevisibilidade cercam esta relação contratual.

Vale lembrar, que a natureza jurídica da expressão termo, em bom direito, marca o decurso do prazo garantindo, quer aos segurados, quer aos seguradores uma estabilidade no negócio jurídico priorizando a boa-fé objetiva calcada nesta segurança jurídica.

Por fim, é de se concluir, venia concessa, que restou evidenciado, a meu sentir, o lamentável equívoco que incorreu o Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Agravo de Instrumento 1.244.022/RS, e os outros recursos especiais alhures sublinhados, que poderão causar reflexos de proporções ainda imensuráveis ao mercado segurador, tendo em vista, entre outros, o elevado crescimento da taxa de prática de suicídio no Brasil que, nos últimos dez anos, apenas à guisa de informação, chegou a 17% entre jovens-adultos entre 15 e 25 anos[4].


[1] parágrafo 242 do BGB. El deudor está obligado a cumplir la prestación según las exigencias de la buena fe conforme a los usos del tráfico. Bürgerliches Gesetzbuch, Marcial Pons, 2008.

[2] Marensi, Voltaire, O contrato de Seguros à luz do novo Código Civil, 3ª Edição, p.77, Editora THOMSON IOB, 2005.

[3] Almeida, de Coutinho J.C., Contrato de Seguro Estudos, p. 259. Coimbra Editora. 2009.

[4] http://www.parana-online.com.br/editoria/pais/news/513781/?noticia=TAXA+DE+SUICIDIO

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