Realidade operacional

AGU deve defender ordem constitucional

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23 de maio de 2011, 13h46

Em seu artigo, “O futuro da AGU” (Conjur: 28.04.2011), o consultor-geral da União, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, assinala: “O futuro da advocacia pública está para ser imaginado (…) Qual a advocacia? De Estado, de Governo, do interesse público? Quem os define?” Aqui, creio, já tateamos no campo da praxiologia, que teoriza sobre a “atividade eficaz,” a prática mais apropriada, em vez de abordagem imaginária ou de adventos fantásticos. Tais discussões, que permeiam o Direito e sua operacionalidade, se não conduzidas objetivamente, engendram discrepâncias e desconforto, como adverte Baudrillard: “Liberado de toda funcionalidade, o pensamento se torna de novo livre, para não levar a lugar algum, para ser a efetuação triunfal do nada!” Godoy o sabe, pois já traçou a anatomia do “desencanto jurídico” em Monteiro Lobato.

Talvez menos imaginativamente, e contemplando a realidade operacional da advocacia pública, vislumbro um roteiro normativo (ou de inferência normativa) para a concepção de uma pragmática: de como deve agir a advocacia pública, com que fundamentos e discurso. Aliás, as respostas de Godoy remetem mais à atividade de conceptuação, do que de imaginação, pois é imprescindível uma argumentação clarificante das concepções de advocacia de Estado (que Godoy não aprofunda) e da defesa do governo (que ele realça, conciso).

Na “Poética do devaneio”, Bachellard excita uma rivalidade entre a atividade conceptual (compreendida como teoria, criação de conceitos) e a atividade de imaginação (imagens e metáforas, invocações, poesia), como quando apenas se indaga pelo futuro de alguma coisa: um devir redentor, um turbilhão frenético, ou um poço abissal?

Objetiva e conceptualmente, portanto, Godoy pinça temas operacionais da AGU e propõe (acertadamente) flexibilização, cultura de consenso e responsabilização dos advogados públicos, sem mencionar, no entanto, como resolver o embate dessa flexibilização com o princípio de indisponibilidade do patrimônio público, guarda da integridade patrimonial sob o influxo do interesse público. Ciente desses percalços, Godoy é propositivo ao invocar a prevenção, transação e conciliação, como inibidoras e resolutivas das demandas ascendentes. Contudo, não se desmereça que, sem uma valorização interna de suas carreiras, uma criteriosa forma de independência funcional e de auto-gestão, além de inovadora capacitação (como as tenho defendido em outros artigos publicados nesta ConJur), não será possível fugir ao modelo (tradicional) de atuação, mais ao reboque das pretensões contrapostas, que em sua antecipação. Ou seja, reconhecer o direito do litigante quando legítimo e promover os do Estado adequadamente não comporta procrastinação processual, no rito alucinante das ações e na tramitação de recursos improváveis. Para incrementar tal postura na advocacia pública, sobressaem dois desafios contíguos: a harmonização do concerto governamental dos Três Poderes e o enfrentamento das demandas adversas.

Quanto à harmonia governamental, a modelação constitucional da AGU é demarcada no artigo 131 da Constituição Federal, atribuída a representação judicial e extrajudicial da União. Plasma-se a convergência harmoniosa dos Três Poderes na higidez de suas competências político-administrativas, intangíveis. Essa representação não poderia limitar-se às múltiplas linhas processuais: ao inverso, demandaria não só a conciliação administrativa das esferas de Poder, mas, antes, a proposição de medidas governamentais, antecipatórias aos conflitos e inibitórias de contendas.

Nesse passo, o assessoramento jurídico da AGU ao Poder Executivo implicaria também em consultoria prospectiva – o que prefigura desembaraçada atuação no controle da Legalidade de toda a Administração Pública – não se reduzindo à “defesa do Governo”, dos atos de governo; ou seja, antes, velar-se-á pela informação da lisura dos atos governamentais, como descrito no artigo 4º, da Lei Complementar 73/1993, cabendo ao advogado-geral da União, de forma precípua e inovadora: 1) assistir ao presidente da República no controle interno da legalidade, inclusive propondo “medidas e diretrizes” de caráter jurídicas, reclamadas pelo interesse público, no que é inegável a orientação jurídica para revestimento das políticas governamentais); 2) fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e demais atos normativos, a ser uniformemente seguida pelos órgãos e entidades da administração federal e editar os enunciados de súmula administrativa, resultantes de jurisprudência iterativa dos tribunais: aqui, a AGU é lampadário das três vontades jurídicas que governam a União, as quais se aglutinam na execução, legislação e decisão judicial. Nessa extensão, inarredavelmente, conflui a observância aos princípios republicanos, princípios fundamentais (e os objetivos ) da República, no patamar do Estado Democrático de Direito – artigos 1º a 4º da Constituição.

Quanto ao enfrentamento das demandas adversas, a AGU cumpriria um roteiro sob o influxo do preâmbulo da Carta Magna, recepcionado como fundamentos para uma atuação prospectiva: na viabilização do respeito e da convergência das ações estatais para com o “exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”.

Não se espelham, nesses termos, acenos furtivos, eflúvios doutrinários miríficos – mas concretas emanações estatais, regidas, vinculadamente, às competências e objetivos constitucionalmente elencados. Nessa perspectiva, infensa a patrocínios ingênuos, a advocacia pública atuará em defesa da integridade (dworkiniana) da ordem ético-político-jurídica que a Constituição erigiu, “quando não seja um falso testemunho solenemente levantado ao povo a que se destina”, ou, meras “frases de convenção e ocos rufos de saber” (Rui Barbosa).

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