Consultor Jurídico

PEC dos Recursos pode prejudicar funcionamento de Habeas Corpus

22 de maio de 2011, 17h40

Por Antônio Cláudio Mariz de Oliveira

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Artigo publicado no boletim do Mariz de Oliveira Advocacia

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso, por todos os títulos um Magistrado da mais alta envergadura, que sempre pautou a sua carreira pelo respeito à advocacia e ao que ela representa, que é o sagrado direito de defesa, é o idealizador da chamada Pec dos Recursos”apresentada no Congresso Nacional pelo senador Ricardo Ferraço.

Segundo manifestações de ambos, o escopo da medida constitucional é diminuir a carga do sistema processual com a redução dos recursos para os tribunais Superiores. Em uma primeira versão, as decisões proferidas em Segundo Grau transitariam em julgado, sem embargo da possibilidade de serem utilizados os recursos especial e extraordinário.

O trânsito em julgado podendo coexistir com a interposição de recursos causaria grande perplexidade, na medida em que, doutrinariamente, decisão transitada em julgado é decisão da qual não caiba recurso.

Ademais, observe-se que a concomitância entre o trânsito em julgado, com as conseqüências a ele inerentes – e a mais grave é a expedição do mandado de prisão – e a admissibilidade de recursos atingiria a presunção de inocência, cláusula pétrea incluída no rol das garantias constitucionais (artigo 5, inciso LVII). Aliás, verificar-se-ia mais uma estranha situação, pois se com o trânsito em Segundo Grau tecnicamente a presunção não mais vigoraria, enquanto os recursos eventualmente interpostos não fossem julgados ela verdadeiramente perduraria. Assim, a declaração constante do projeto não passaria de mera ficção legal, sem nenhuma consistência jurídica, que se justificaria apenas para tentar legitimar a obrigatória antecipação da execução das sentenças.

Naturalmente alertado para essas verdadeiras heresias, o idealizador da Pec procurou operar um ajuste no seu entender juridicamente aceitável. Transformou os recursos especial e extraordinário em ações rescisórias. Se sobre o aspecto conceitual houve uma adequada modificação, sobre o aspecto pragmático ela não terá o condão de evitar as lesões que certamente ocorrerão a direitos e garantias individuais, especialmente à liberdade.

Sobre o aspecto eminentemente pragmático dois são os objetivos da surpreendente medida: dar maior celeridade aos feitos e diminuir a carga dos processos nos Tribunais Superiores. Objetivos louváveis que, postos na escrita ou no discurso, sem uma reflexão mais acurada, seduzem àqueles que se preocupam com a prestação jurisdicional em nosso país. No entanto, engana-se quem acredita no poder transformador da Pec.

Em primeiro lugar, constitui um claro equívoco entender-se os recursos como o grande fator de sobrecarga do Poder Judiciário, como se tem apregoado e repetido à exaustão. Talvez um ajuste ou outro possa ser feito, com o objetivo de diminuir a incidência de recursos, especialmente daqueles interpostos contra despachos interlocutórios, mas sem que tais alterações subtraiam das instâncias superiores a apreciação de direitos e garantias processuais e constitucionais. Mas, com certeza, o que atravanca o Poder Judiciário é a incrível burocracia que o caracteriza, a carência de juízes e de funcionários, a incipiente informatização, a falta de recursos financeiros e, especialmente no que tange às Cortes Superiores, a excessiva litigância de responsabilidade da União.

Fala-se que, com a Pec, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal descongestionados poderão atuar em questões de maior relevância. Ora, pergunta-se: há questão de maior magnitude do que a liberdade?

Com a aprovação do projeto, a decisão condenatória poderá ser eventualmente apreciada pelos tribunais de Brasília já quando a liberdade tiver sido atingida. Assim, os veículos que hoje conduzem as postulações defensivas, para anulação do processo ou absolvição do condenado, que são os recursos especial e extraordinário, substituídos pela ação rescisória, não mais terão o condão de sustar o cumprimento das decisões condenatórias dos Tribunais Estaduais ou dos Regionais Federais, como ocorre hoje.

Note-se: de acordo com o voto proferido pelo ministro Henrique Lewandowski, na ADPF 144, 28,5% dos recursos criminais examinados pelo Supremo Tribunal Federal são providos. Ou seja, aproximadamente um terço dos condenados tiveram a sua inocência proclamada ou o processo respectivo anulado. Caso estivesse em vigor a nova sistemática esse mesmo percentual de reconhecidas injustiças não teria sido reparada a tempo e as decisões teriam sido executados, incluindo as prisões.

Saliente-se, ainda, que a aprovação da Pec implicará na utilização do Habeas Corpus, nos quais serão arguidas matérias que o seriam nos recursos, ou para impedir a prisão ou para obter-se a liberdade caso ela tenha ocorrido. Em qualquer hipótese, haverá um gravame ao cidadão condenado que deverá aguardar na prisão a decisão do writ. Percebe-se, ademais, que o Superior Tribunal de Justiça terá substancialmente aumentada a sua carga de trabalho, o mesmo ocorrendo com o Supremo, caso não se obtenha êxito no Superior.

Mas, o que é mais grave, mesmo que deferido o Habeas Corpus eventualmente impetrado, não haverá para o condenado a devolução de sua liberdade sacrificada e nem a restauração da sua dignidade perdida.