Tabuleta dos Barbeiros

Estatuto do Contribuinte só fomentaria ações judiciais

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

17 de maio de 2011, 10h35

A discussão em torno da promulgação de um Estatuto do Contribuinte deve enfrentar representações maniqueístas que empolgam os defensores deste marco regulatório. Não se vive absolutamente em Estado preocupado apenas com a extração fiscal. O Estado não é necessariamente maligno e mefistofélico. E o outro lado também pode ser fictício: nem sempre o cidadão que recolhe tributos é a mais pura expressão da candura e do halo angelical. O Estado também faz coisas boas. E também há sonegação. A negação desta última premissa deve ser estimulada, bem como a inversão daquela primeira deve ser combatida. Um Estatuto do Contribuinte resolveria nosso problema?

A evidência (ou mito) da carga tributária elevada deve ser discutida a partir de uma avaliação dos custos dos direitos, que não brotam em árvores, como laranjas, limões ou goiabas. Devemos indagar, antes de tudo, que Estado queremos. É que cada tipo de Estado tem seu custo, e o nosso modelo não é dos menos caros. Concomitantemente — e então não importa que Estado buscamos — deve-se aperfeiçoar o controle do gasto público, sem que isso signifique adesão canônica ao direito administrativo do espetáculo: primeiro se divulga, em seguida se condena e, ao fim, se esquece.

Deve-se constitucionalizar o Direito Tributário. Como? Desconstitucionalizando-se a miríade de regras exacionais que há no texto constitucional, que diminuem o significado e os significantes das leis fiscais. A constitucionalização que se tem do Direito Tributário, que é apenas simbólica, fomenta uma técnica decisória de impasse, a exemplo da interminável discussão em torno do acesso aos dados fiscais pelas autoridades fazendárias. Enquanto o mundo caminha para a transparência, no sentido inverso, insistimos em afirmar direitos individuais em tema de interesse coletivo. Realistas eram os mais antigos: quem não deve não teme.

Abandonando-se o substantivo contribuinte, que mitiga o real significado da cidadania, pode-se cogitar de uma relação calcada na construção da dignidade da pessoa humana, e não apenas na dignidade do empresário que contrata advogados para defender alíquotas aumentadas fora do contexto da anterioridade. Que fique claro, no entanto, que o empresário gera empregos, recolhe tributos, move o mundo, renova, avança, experimenta. Deve ser ouvido, respeitado, copiado. Opera num mundo de resultados. Compete. É um exemplo a seguir. E não um espectro a combater.

Um Estatuto do Contribuinte não seria um pouco a realização da teoria do “mais do mesmo”? Não seria mero aperfeiçoamento do que já se tem? Não seria indicativo superlativo de nossa falta de imaginação institucional? Mais não valeria nos afastarmos de um conceito fechado de interesse público, que ninguém explica, por um sentido de reciprocidade de interesses, entre cidadão e Estado, que todos nos apressaremos em explicar? Não deveriam os órgãos de controle se preocupar menos com o monitoramento de procedimentos, em troca de uma melhor energia gasta na avaliação de resultados?

Hoje se pode ler o direito com uma planilha na mão. Longe o tempo em que pifiamente se defendia a justiça, ainda que o mundo perecesse… Dados divulgados pelo IPEA, por exemplo, revelam que na Justiça Federal a União é autora de 59,2% das execuções fiscais, e que conselhos de classe são exequentes em 36,4% dos executivos. Não se tinha noção que órgãos de controle de classe movessem quase 40% das varas da fazenda pública. A matéria é, necessariamente, de interesse federal ou, no limite, apenas interessa a corporações? O IPEA divulgou que logo depois das contribuições parafiscais cobradas pelos conselhos de classe vêm os impostos federais (27,1%), as contribuições sociais federais (25,3%), bem como multas, aforamentos, laudêmios e obrigações contratuais devidas à União (10,1%).

Ainda segundo o IPEA, apenas três quintos dos processos de execução fiscal alcançam a citação do devedor. E quando se alcança, em 53,8% dos casos a citação foi feita por edital. Ficção? Em apenas 15% dos casos há penhora, com leilão de 2,6% destes casos, e a satisfação do crédito fiscal em apenas 0,2% dos casos. O tempo médio de uma execução é de 8 anos, 2 meses e 9 dias. Compensa?

A situação demonstra uma disfunção no sistema. O Estatuto do Contribuinte enfrenta o problema? Ou apenas oxigenaria a litigância? Por exemplo, ao divulgar a lista dos cem maiores litigantes na Justiça Federal, o Conselho Nacional de Justiça indicou números que demonstram os perfis do INSS, da Fazenda Nacional, do BACEN e de várias autarquias como demandantes e demandados. O Estatuto do Contribuinte, menos do que um desejável instrumento de conciliação e transação não se tornaria, tão somente, mais um parâmetro para a multiplicação de mandados de segurança?

Há Estatutos de Contribuintes em vários lugares. Canadá (1985), Estados Unidos (1998), Espanha (1998) e Itália (2000) estão entre eles. Nestes países também há execução fiscal administrativa e modelos de transação tributária. Além do que, nos Estados Unidos há o conceito de voluntary compliance, que faz do recolhimento de tributos uma obrigação moral de fundamento cívico. Somos iguais?

Há projetos de Estatuto de Contribuintes que circulam pelo Congresso Nacional. E modelos já os há nos estados de São Paulo (Lei Complementar 939/2003), Minas Gerais (Lei 13.515/2000) e Rio Grande do Norte (Lei 8.295/2003). Há mostras empíricas de diminuição de custos de administração fiscal ou de redução de litigância? Houve ganho de escala para as economias das referidas unidades da federação?

Um Estatuto do Contribuinte tem como mira uma melhora nas relações entre o Fisco e o contribuinte, um desenho de cooperação, de respeito mútuo, de parceria, de regulamentação do poder de fiscalizar, de comprometimento com a possibilidade de uma ampla defesa por parte de quem recolhe tributos.

Porém, há muitas dificuldades na concepção de um texto normativo tão ambicioso. Uma tensão natural afasta quem cobra de quem paga. O problema tem extração antiga; conta com estações em textos bíblicos, vetero e neotestamentários. Um Estatuto do Contribuinte poderia ser mais um elemento fomentador da judicialização das definições de políticas públicas. Revela desconfiança institucional que se combate com atuação firme e decidida. Pode ampliar gastos públicos, na criação de mais um indicativo de controle. Não prosperará em ambiente que não conhece uma cultura transacional. Será mais problema de legística: pode redundar numa lei de qualidade duvidosa.

A lentidão da autoridade fiscal não decorre da perversão dolosa de se prejudicar o contribuinte. É o resultado da falta de estrutura, da necessidade de treinamento, do volume pantagruélico de tarefas, da dispersão de energia. Não se pode escolher, objetivamente, a quem se cobrar, com eficiência. O auditor fiscal é profissional diligente, que cumpre as leis. É comprometido. Um Estatuto do Contribuinte não conseguirá vilificá-lo.

Sem que nos aproximemos de uma cultura transacional, e sem que tenhamos uma reforma estrutural nas relações entre Fisco e contribuinte, fortalecendo-se ambos, e aproveitando-se das leis que já há, e com foco na dignidade da pessoa humana e no dever de o Estado recolher para realizar seus fins, um Estatuto do Contribuinte pode nos remeter à advertência de Shakespeare na Cena I do Ato V de Medida por Medida: leis para todas as faltas, mas as faltas de tal modo seguras, que os mais fortes estatutos se assemelham aos avisos pendurados nas tendas dos barbeiros…


 

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