Cidadania e autonomia

"Defensoria restabelecerá direitos de morador de rua"

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10 de maio de 2011, 14h18

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patricia kettermann - spacca

Levar justiça a um maior número possível de brasileiros é tarefa de todos os operadores do Direito. Mas quando parte deste universo é composto de pessoas sem documentos, moradia, trabalho e sem o respeito dos demais cidadãos, este é um desafio na medida para a Defensoria Pública. Se depender da vontade da defensora pública Patrícia Ketterman, os cerca de oito mil gaúchos que vivem nas ruas terão a sua dignidade e seus direitos restaurados de uma maneira até então inédita.

É que a coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do estado do Rio Grande do Sul vem afinando parceria com a Defensoria Pública da União (DPU) e com as duas maiores universidades locais — UFRGS e PUC — para mudar o destino da chamada "população multivulnerável", mas de uma forma diferente, sem paternalismos ou assistencialismos. A aproximação com o meio acadêmico vai possibilitar um mapeamento das necessidades deste público.

Depois, com o perfil sociopsicológico em uma mão e os códigos legais na outra, virá a fase de identificar as violações. Por último, os próprios moradores de rua é que irão restabelecer seus direitos. "Esta restauração será feita com base nas demandas apresentadas pelas pessoas que fazem das ruas seu espaço de vivência diária. Significa dizer que não vamos buscar pura e simplesmente atendimento ou moradia. Até porque vários sequer pretendem deixar de ‘morar’ nas ruas. Costumamos dizer que estamos, em primeiro lugar, oferecendo uma escuta qualificada", antecipa.

Para a defensora pública, estas pessoas só serão donas de seu próprio destino se tiverem noções de direitos. Mais do que levar assistencialismo ou direitos aos pouco bafejados pela sorte, o importante é levar a ideias de cidadania em uma perspectiva de autonomia.

Perfil
Patrícia Kettermann é defensora pública desde 2002, com destacada atuação nas demandas da infância e juventude, execução criminal, em varas criminais e tutelas coletivas. Desde junho de 2010, está na Coordenadoria do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública gaúcha. Antes de se dedicar aos direitos humanos, esta bageense conseguiu uma vitória pessoal e jurídica que a credencia a enfrentar qualquer desafio.

Ela começou a ser conhecida e respeitada nacionalmente em fevereiro de 2008, dias após a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Bagé-RS ter sofrido intervenção da Apae nacional, por suspeita de desvios de recursos. “Como não havia ações ajuizadas com o objetivo de proteger os interesses difusos que estavam sendo violados, não restou alternativa à Defensoria Pública que não o ajuizamento da Ação Civil Pública por improbidade administrativa”, lembra Patrícia.

Nove meses depois, o Ministério Público do RS arguiu a ilegitimidade da Defensoria Pública para propor a Ação Civil Pública. Em maio 19 de maio de 2010, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul publicou acórdão negando provimento ao MP e para confirmar a legitimidade da Defensoria Pública. Segundo Patrícia, a importância da decisão está no fato de ter sido a primeira no Brasil a garantir legitimidade à Defensoria Pública, abrindo espaço para outros precedentes.

Leia a entrevista:

ConJur — O que lhe despertou a preocupação com as pessoas que moram na rua?
Patrícia Kettermann
— Este trabalho vem sendo articulado desde o ano passado com a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos do Conselho Nacional dos Defensores Públicos Gerais (Condege). Eu participo da Comissão como representante da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul. Foi a partir das reuniões da Comissão que nós começamos a estabelecer como meta, para 2011, o trabalho com a população de rua e em situação de desabrigamento para a Defensoria Pública de todo o país. Estamos de falando de gente, e as pessoas têm direitos. Defender os direitos dos mais carentes faz parte das atribuições constitucionais do defensor público.

ConJur — Como caracterizar o morador de rua em termos jurídicos?
Patrícia Kettermann
— A pessoa em situação de rua é uma pessoa que normalmente rompeu os laços familiares e que faz do espaço coletivo o seu espaço de vivência individual. Já o indivíduo em situação de desabrigamento é aquele que pode estar na rua, em abrigo ou albergue, mas com caráter de transitoriedade, sua situação de abandono é transitória.

ConJur — E possível estimar quantos vivem nesta situação?
Patrícia Kettermann
— No ano de 2008, segundo a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, havia 0,061% da população brasileira nesta situação. Em Porto Alegre, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) fez uma pesquisa entre os anos de 2007 e 2008 e constatou que havia 383 crianças e adolescentes e 1.203 adultos em situação de rua naquela época.

ConJur — E no Rio Grande do Sul?
Patrícia Kettermann —
Se somarmos crianças e adolescentes e outros grupos em situação de rua, este contingente vai a aproximadamente oito mil pessoas.

ConJur — A Defensoria tem um levantamento completo sobre as necessidades destas pessoas?
Patrícia Kettermann
— Estamos formando o perfil, para oferecer um atendimento adequado, em articulação especialmente com a UFRGS, com a PUC-RS e com a Defensoria da União. Em dezembro passado, o Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Estadual abriu um Procedimento de Apuração de Danos Coletivos [Padac], para verificar a situação de moradores de rua de Porto Alegre, já que o problema é mais crítico nos grandes centros urbanos. No dia 4 de março, fizemos o primeiro atendimento público a esta população, em dois grandes parques da Capital: Redenção e Marinha do Brasil.

ConJur — Como as universidades vão ajudar a Defensoria?
Patrícia Kettermann
— As conversas vêm se encaminhando num sentido de cooperação e suporte para o nosso trabalho. A ideia é usar as linhas de pesquisa em mestrado e doutorado de Psicologia e Assistência Social das universidades para fazer uma articulação com esta comunidade. A universidade precisa colocar suas pesquisas na prática, e nós não podemos desprezar este referencial teórico, que, no final, embasará o nosso trabalho.

ConJur — O foco da atuação é jurídico, certo?
Patrícia Kettermann —
De nossa parte, sim, mas não só. Queremos levar a ideia de autonomia. Por isto, é fundamental conhecer melhor este grupo. A nossa proposta não é tirar este pessoal da rua de uma forma autoritária ou paternalista. Queremos dar condições para que eles mesmos tenham a capacidade de deixar este tipo de vida, se isso for do seu interesse. Trabalhamos com a questão do respeito à alteridade. O que é isso? É ser capaz de apreender o outro na plenitude da sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, da sua diferença. Estas pessoas são titulares dos seus direitos, mas não sabem o que fazer com eles, nem mesmo os conhecem. O nosso objetivo é informá-los sobre esses direitos, para que eles passem a ter papel ativo na defesa de seus interesses. É uma visão de empoderamento, como se diz em direitos humanos. Este termo se refere à habilidade do indivíduo para tomar decisões e ter controle sobre sua própria vida, justamente o que não acontece com quem está jogado na rua, vivendo à mercê dos outros. É a partir desta conscientização que se pode escoar todas as demandas jurídicas reprimidas. Aliás, até agora, não lançamos mão de medidas judiciais. Estamos resolvendo as demandas na esfera administrativa. O instrumental teórico da PUC e da UFRGS e o Padac irão nos ajudar a clarear melhor as necessidades jurídicas. Outro detalhe que gostaria de frisar é a preocupação com a efetividade. Não adianta nada fazer um projeto bonito, instaurar um Padac, se não tivermos a certeza de que iremos instrumentalizar as pessoas para que reivindiquem seus direitos. Nosso trabalho é pavimentar um caminho que garanta o acesso à justiça, não só ao Judiciário. E o mais importante: efetividade na restauração e garantia dos direitos.

ConJur — Quais são os principais problemas jurídicos enfrentados por essas pessoas?
Patrícia Kettermann —
Pelas informações que nos chegam dos movimentos sociais e de entidades que lidam com o pessoal de rua, o grande problema são as violações nos abrigos e albergues. Os responsáveis pela gestão destes estabelecimentos não vêm respeitando a normatização. São leis federais que regulam o funcionamento dos albergues e casas de abrigo ou de passagem. Por exemplo: falta de chuveiros, número de camas em desacordo com o número de abrigados etc. O governo de Porto Alegre, por exemplo, ainda está se adequando a estas normas. Ou seja, há muito o que fazer para ficar em dia com a lei. Ocorre que a lentidão na adequação das normas vai agravando os direitos dos usuários destes serviços. E quem irá pagar por estas violações de direitos, em última instância, é o contribuinte. Não podemos permitir que a desídia se transforme em passivo público. Por outro lado, os que estão em situação de rua, pelo relato que nos chega, sofrem o desrespeito das demais pessoas, que não aceitam sua presença no espaço coletivo. Frequentemente, a Polícia é chamada para desalojá-los do local em que vivem, ainda que a maioria não esteja cometendo nenhum tipo de delito. Esta é uma queixa muito recorrente. Depois, vêm as questões de saúde e segurança, pois quem vive na rua está muito mais exposto a intempéries e à violência.

ConJur — O fato de permanecerem na via pública acaba interferindo na rotina das demais pessoas, como quando pedem esmolas. Eles estão infringindo alguma lei?
Patrícia Kettermann
— Temos duas questões distintas: uma é o cometimento de ilícitos; e outra é a pura e simples permanência no espaço público. Quanto a ilícitos, sim, eles podem responder juridicamente, pela ameaça a uma pessoa ou a uma casa. Em muitos casos, senão na maioria deles, e veremos isso na pesquisa, trata-se de doentes mentais. Tem também a questão das drogas e do álcool. São pessoas que sofrem muito com estes problemas. Outra questão é o fato de as demais pessoas se sentirem incomodadas, ou desconfortáveis, pela presença de um ser em estado de miserabilidade, circulando, no espaço público. Até se entende o sentimento de cada um, mas não se pode aceitar que se expulse o desabrigado do local, pois, regra geral, ele não está cometendo nenhum ilícito. A gente deve olhar o outro com olhos de respeito. Não podemos ter este preconceito contra os despossuídos, que pouco podem contra os demais.

ConJur — A Defensoria poderia representá-los perante as autoridades, para garantir o direito a atendimento de saúde?
Patrícia Kettermann —
A Defensoria pode atuar, sim. A gente pode fazer os encaminhamentos e, inclusive, requisitar a realização de tratamentos. É preciso superar a primeira dificuldade, que é entrar no Sistema Único de Saúde (SUS) e ser atendido. Muitos, até pela sua condição de miséria, estão sujos, fracos e, não raro, não entendem as orientações de saúde. Muitas unidades de saúde, também reportando dificuldades no trato, acabam recusando atendimento. No entanto, vencida esta barreira inicial, o tratamento segue seu curso normal. Alguns hospitais se negam a atendê-los, porque o paciente não tem domicílio fixo, nem documentos. Nestas questões, nós já estamos atuando.

ConJur — A maioria não tem nem trabalho. O que pode ser feito, nestes casos?
Patrícia Kettermann —
Nós também podemos promover a regularização de documentos do pessoal de rua, e isto já é um passo para se habilitar a emprego formal. Aliás, nosso contato com a Defensoria da União se deu muito pela necessidade de resolver a questão documental. Temos de considerar que providenciar a Carteira de Identidade, o CPF ou a Carteira de Trabalho irá, de fato, ajudá-los na reinserção ao mercado de trabalho. E estes documentos são também importantes para auferir uma série de benefícios sociais e assistenciais. Como muitos destes benefícios são concedidos pelo INSS, órgão da administração federal, a competência de sua requisição, neste caso, vai para Defensoria da União. Quanto à ideia de que este grupo não trabalhe, seja formado por vagabundos, isto é uma visão distorcida, que não reflete a realidade. Dados da Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua apontam que 70,9% exerciam alguma atividade remunerada, mas não regularizada. Ou seja, cuidar de carro, coletar material reciclável ou fazer algum bico é trabalho precário, claro, mas é trabalho e rende algum sustento. Na Pesquisa Nacional, somente 15,7% deles pediam dinheiro como meio de sobrevivência. Com base nos dados da UFRGS, das crianças e adolescentes que vivem na rua, 44,1% afirmaram trabalhar e 18%, eram formados de pedintes; dos adultos, 81% afirmaram possuir uma profissão, mas somente 19,7% deles exerciam atividades coerentes com sua qualificação. Aliás, se perguntarmos a qualquer morador de rua, invariavelmente, a resposta será uníssona: “só quero trabalhar”. Isto prova que eles não almejam somente o assistencialismo, mas querem ser úteis, se reintegrar à sociedade. Isto é fato.

ConJur — Com os poucos dados dos quais dispõe hoje, dá para antecipar alguma prioridade de atuação?
Patrícia Kettermann —
Nossa grande preocupação é identificar as violações e restabelecer direitos. Não queremos impor nada, muito menos soluções prontas, porque as pessoas são detentoras do direito de decidir o que é melhor para elas, e aí entra também a questão da alteridade.

ConJur — Tutelar estes interesses não é exclusividade do Ministério Público? Até onde vai a Defensoria para não se chocar com o MP?
Patrícia Kettermann —
Em termos de garantias constitucionais para a tutela coletiva, não existe diferença de atuação. Nós temos as mesmas prerrogativas e legitimidade que o MP. Aliás, individualmente, nós podemos mais. Podemos atuar em casos individuais que tratem de direitos disponíveis. Este procedimento que instauramos [Padac] é de natureza coletiva, preparatória e eventual para embasar uma Ação Civil Pública. Ou seja, a Defensoria tem uma função institucional mais abrangente.

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