Brasil x EUA

A publicidade das sessões da Suprema Corte

Autor

  • Saul Tourinho Leal

    é advogado secretário-geral da Comissão de Assuntos Constitucionais da OAB-DF mestre em Direito Constitucional pelo IDP e professor de Direito do IESB e do IDP.

9 de maio de 2011, 12h06

Não se tem notícia, nos últimos anos, de impacto maior causado no elo que deve haver entre sociedade e jurisdição constitucional do que os efeitos das transmissões, ao vivo, das sessões plenárias do Supremo Tribunal Federal (STF).

Em 2 de agosto de 2002, sob o comando do ministro Marco Aurélio, a TV Justiça foi inaugurada. Uma TV transmitindo ao vivo, sem cortes, as sessões plenárias do tribunal. Sem censura. Todos os ministros mostrados à população para que ela própria fizesse seu juízo de valor. Uma nova fronteira!

Para os entusiastas, tem-se um verdadeiro controle externo da Corte, além de uma aproximação dos brasileiros à realidade jurídica até então afastada da rotina do cidadão comum. Para o ministro Ricardo Lewandowski, por exemplo, “a transmissão ao vivo dos julgamentos é positiva, além do que causaria certa estranheza se decisões do porte das que o Supremo toma fossem elaboradas a portas fechadas”[1].

Mas não há unanimidade quanto às transmissões.

Para os críticos, dá-se um tom espalhafatoso a algo que deveria ter tom sóbrio, além de abrir possibilidade de exposições excessivas do tribunal, notadamente quando ocorrem discussões ásperas entre seus integrantes. Para o ministro aposentado do Supremo, Eros Grau, “essa prática de televisionar as sessões é injustificável”, uma vez que “tem que se dar publicidade à decisão, não ao debate que pode ser envenenado de quando em quando. Acaba se transformando numa sessão de exibicionismo”[2].

Nada obstante haja, como vimos, visões contrárias a respeito da utilização das transmissões ao vivo das sessões plenárias do julgamento do STF, esta prática parece ser uma realidade da qual não é possível escapar. Ela veio para ficar e dificilmente seria possível suportar os custos políticos de lhe impor um fim. Entretanto, esse modelo encontra resistência em outros países, como é o caso dos Estados Unidos. Lá, esse debate tem ultrapassado décadas e, até agora, a Suprema Corte mostra uma recusa contumaz em permitir a transmissão ao vivo de suas sessões.

Desde a era do inigualável Earl Warren (1953/1969) é assim. Vale lembrar um episódio folclórico, narrado por Bernard Schwartz, um grande conhecedor da intimidade da Suprema Corte norte-americana. Fred W. Friendly, que acabara de assumir a prestigiosa posição de presidente da CBS News, fora apresentado a Warren em uma festa de confraternização, em 1964. Warren parabenizou Friendly pelo posto e este respondeu que “esperava que ainda estivesse na liderança da CBS News quando eles tivessem câmeras de televisão na lua e no piso da Suprema Corte”[3]. Earl Warren riu e lhe desejou boa sorte.

No ano seguinte, chegou à Suprema Corte um pedido da CBS para acompanhar os debates em casos sobre a constitucionalidade dos Atos de Direito Civil de 1964. Warren, negando o pedido, registrou: “a Corte tem tido uma regra inflexível no sentido de que não serão permitidas fotografias ou transmissões de televisão do Plenário quando ela está em sessão. A Corte não tem a intenções de alterar essa regra”[4].

Essa manifestação demonstra a postura que a Suprema Corte dos Estados Unidos adota quanto ao televisionamento das sessões. Os juízes da Corte são extremamente intolerantes quanto à divulgação, ao vivo, para todo o país, de seus debates. Faz-nos lembrar do mistério que circunda o Vaticano, com a sua eleição papal repleta de simbolismos e solenidades.

E não é exagero falar do Vaticano quando estamos tratando de Suprema Corte. Basta lembrar o que disse o ministro Cezar Peluso, do STF, na despedida do então procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza: “Os cardeais são soberanos para escolher o próximo papa. Se isso fosse aplicado no universo jurídico brasileiro, eu queria ter autoridade para lhe entregar uma cadeira agora nesta Corte”[5].

Mas saiamos do Vaticano e voltemos aos Estados Unidos.

O presidente seguinte, Warren Burger (1969/1986), adotou postura semelhante. Quando lhe foi solicitado permissão para transmitir, ao vivo, a cobertura dos debates da Corte ele respondeu: “Não é possível organizar, para qualquer transmissora, qualquer procedimento na Suprema Corte”[6].

A famosa Corte Rehnquist (1986/2005) também se deparou com a questão. Os juízes já haviam negado a solicitação para transmissão da posse do juiz Thomas, quando outra solicitação foi recusada pelo presidente Rehnquist. Pretendia-se televisionar sua própria investidura. Desde então, “a Corte tem recusado solicitações para fotografar a sala de cerimônias e a sala de conferência”[7].

E não pára por aí!

Bernard Schwartz ainda nos diz que o tribunal recusou o pedido feito pela revista Life e uma estação de TV de cobertura da cerimônia de cumprimentos realizada entre os juízes antes de se sentarem na bancada. Foi feito o mesmo quanto à solicitação para transmitir a posse dos juízes Anthony Kennedy e David Souter. Não foi permitida a transmissão, por uma estação de rádio, dos debates realizados, em 1988, no caso Morrison v. Olson. Sequer um pedido para colocar um equipamento de TV para demonstração no plenário foi permitido[8].

A relação entre a Suprema Corte dos Estados Unidos e a imprensa é, muitas vezes, conflituosa.

Em 1979 foram publicadas informações contundentes quanto à Corte e, especialmente, quanto ao então presidente Burger, pelos jornalistas Bob Woodward e Scott Armstrong, no bombástico best-seller The Brethren, que ganhou tradução no nosso país de Torrieri Guimarães[9].

A obra revelou detalhes da Corte e fez um retrato tão apurado da fragilidade de Burguer que escancarou para o mundo os segredos de um local até então tido como indevassável e o quão fraco era o homem que chefiava essa importante instituição.

Burguer virou um poço de mágoas. Rehnquist encaminhou um memorando aos outros juízes aduzindo ser imprudente para a Corte tomar qualquer medida a respeito da obra, “especialmente… à luz do exame minucioso e microscópico que nossas ações estão aptas a receber por enquanto”[10]. Ficou por isso mesmo!

Em 12 de junho de 1987, a Suprema Corte dos Estados Unidos estava sob o comando de Rehnquist. Nessa ocasião ele narrou um episódio que marcou época. O presidente da Corte iniciou seu memorando afirmando: “É com uma consideração infeliz que transmito a vocês o memorando incluso de Sheryl Farmer, Secretário da Casa Toni [Gabinete de Informação Pública da Corte] dando um resumo narrativo de um evento que ocorreu ontem à tarde na Sala de Conferências”[11].

A Corte havia autorizado Tim O’Brien, da ABC News, a filmar a sala de conferência. Ocorre que O’Brien foi pego olhando para a lareira, inclinando-se para pegar folhas de papel e começando a olhar através delas.

Farmer, que presenciou a cena, disse: “Imediatamente solicitei que ele colocasse-os de volta, alertando-o que ele estava lá como um convidado. Poucos minutos depois notei que ele estava manuseando, do começo ao fim, uma lista de algum tipo que não o relembrei de trazer para a Sala de Conferência. Eu notei que ele estava fazendo anotações, mas não pude determinar se elas eram da lista ou da filmagem. Quando o indaguei, ele disse que eram anotações da filmagem”[12].

Rehnquist continuou: “A ‘lista’ que Tim O’Brien aparentemente havia puxado da lareira era um resumo de oito páginas de opiniões circulantes que eu distribuo cada semana — esta era de 20 de maio de 1987”[13]. O presidente finalizou seu memorando sentenciando: “Eu acho que Tim O’Brien, se ele fez o que aparenta ter feito, cometeu uma grande violação de conduta, no mínimo de cortesia e se não de ética, e que algo deve ser feito sobre isto”[14].

Rehnquist, em seguida, indagou aos demais juízes o que pensavam a respeito. Eles foram unânimes em reprovar a conduta do jornalista.

O ácido Antonin Scalia registrou: “Estou formalmente horrorizado — o que significa não necessariamente surpreso — pelo incidente que você descreveu”[15].

Sandra O’Connor afirmou que o incidente “simplesmente ilustrou novamente que os jornalistas terão suas informações onde quer que eles consigam achá-las”[16].

O juiz Thurgood Marshall comentou: “Este incidente reforça meu voto original para manter a imprensa fora da sala da conferência”[17].

Scalia finalizou suas colocações dizendo que “garotos serão garotos”[18].

O juiz William Brennan afirmou que não achava que devessem negligenciar o incidente, mas, para ele, “além de tê-lo em discussão, estou perdido no que sugerir”[19].

Após colher as respostas de seus pares, o presidente Rehnquist escreveu-lhes dizendo: “Estou confiante que tenho a autoridade de tomar medidas a meu modo”[20].

Mesmo podendo responder sozinho acerca dos pedidos de transmissão das sessões que lhes eram endereçados semanalmente, o presidente jamais agiu de sua maneira. Ele sempre buscou ouvir, antes, a opinião dos demais juízes. Isso porque, no comando de uma Suprema Corte, é sempre importante que o presidente divida com seus pares as decisões que pretende tomar, ainda que isso não seja uma imposição regimental. Não se trata de regimento interno. Estamos falando de liderança.

Nesse episódio, O’Brien escreveu uma carta de desculpas a Rehnquist afirmando que “estava errado ao fazer aquilo” e que havia se arrependido profundamente[21]. O problema foi esquecido.

No Brasil, temos matérias de jornais e de revistas quase semanalmente estampando informações de bastidores do STF. Tudo revelado. Sempre às claras. Matérias especiais em revistas rendem comentários no país. Notas em colunas de jornais provocam burburinho. Vídeos de discussões ásperas são disponibilizados no Youtube. Tudo à mão dos brasileiros para que possam formar suas opiniões quanto a esta importante instituição nacional que é o Supremo Tribunal Federal.

A exposição das ações da Corte possibilita uma fiscalização social muito maior, revestindo seus julgadores de um compromisso inafastável com suas posições diante dos delicados casos que lhes são levados a julgamento.

A transmissão das sessões dá aos debates do STF um eco muito maior do que eles teriam, se feitos a portas fechadas, pois possibilita que cada um daqueles que assistiu à sessão tenha para si que atuou, de alguma forma, no processo de interpretação constitucional.

O modelo norte-americano pode ser admirado, especialmente pela sua importância secular. Todavia, não podemos dizer que as transmissões das sessões do STF tenham diminuído a qualidade dos debates travados no plenário ou desviado o foco das discussões para questões menores. Pelo contrário!


[1] Em entrevista concedida à jornalista Aline Pinheiro, na Revista Eletrônica Consultor Jurídico, intitulada “Metas e estatísticas: Justiça precisa saber como e aonde chegar”, publicada dia 07 de fevereiro de 2010.

[2] Em entrevista concedida aos jornalistas Fausto Macedo e Felipe Recondo, em O Estado de São Paulo, dia 03 de agosto de 2010, intitulada “Lei da Ficha Limpa põe em risco o estado de direito”.

[3] SCHWARTZ, Bernard. Decision: How The Supreme Court Decides Cases. Oxford University Press, 1996, p. 71.

[4] SCHWARTZ, Bernard. Op. cit., p. 71.

[5] Em matéria publicada dia 25 de junho de 2009, na Revista Eletrônica Consultor Jurídico, intitulada: “Último ato: Antonio Fernando é homenageado pelo Supremo”.

[6] SCHWARTZ, Bernard. Op. cit., p. 71.

[7] SCHWARTZ, Bernard. Op. cit., p. 71.

[8] SCHWARTZ, Bernard. Op. cit., p. 71-72.

[9] WOODWARD, Bob. ARMSTRONG, Scott. Por detrás da Suprema Corte. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Saraiva, 1985.

[10] SCHWARTZ, Bernard. Op. cit., p. 72.

[11] SCHWARTZ, Bernard. Op. cit., p. 72.

[12] SCHWARTZ, Bernard. Op. cit., p. 72.

[13] SCHWARTZ, Bernard. Op. cit., p. 72

[14] SCHWARTZ, Bernard. Op. cit., p. 72.

[15] SCHWARTZ, Bernard. Op. cit., p. 72.

[16] SCHWARTZ, Bernard. Op. cit., p. 72.

[17] SCHWARTZ, Bernard. Op. cit., p. 73.

[18] SCHWARTZ, Bernard. Op. cit., p. 73.

[19] SCHWARTZ, Bernard. Op. cit., p. 73.

[20] SCHWARTZ, Bernard. Op. cit., p. 73.

[21] SCHWARTZ, Bernard. Op. cit., p. 73.

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    é advogado, secretário-geral da Comissão de Assuntos Constitucionais da OAB-DF. Doutorando em Direito Constitucional pela PUC-SP e mestre em Direito Constitucional pelo IDP. Professor de Direito do IESB e do IDP.

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