Analogia constitucional

Leia voto de Ricardo Lewandowski sobre união gay

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6 de maio de 2011, 16h24

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Ricardo Lewandowski - Spacca - Spacca

“Muito embora o texto constitucional tenha sido taxativo ao dispor que a união estável é aquela formada por pessoas de sexos diversos, tal ressalva não significa que a união homoafetiva pública, continuada e duradoura não possa ser identificada como entidade familiar apta a merecer proteção estatal.” A premissa é a essência do voto do ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, sobre a possibilidade do reconhecimento de uniões estáveis formadas por pessoas do mesmo sexo.

Por unanimidade, a corte decidiu equiparar as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres. Na prática, a união homoafetiva foi reconhecida como um núcleo familiar como qualquer outro. A interpretação deu origem ao quarto tipo de família brasileira. Entre outras possibilidades, casais gays agora podem pleitear direito à herança, partilha de bens e pensão alimentícia.

Em seu voto, o ministro Lewandowski lembrou os diferentes conceitos de família definidos pelas Constituições anteriores à de 1988, desde 1937. Segundo ele, todas as definições estavam vinculadas ao casamento. A atual carta foi a primeira a desvencilhar o matrimônio do conceito. “A partir de uma primeira leitura do texto magno, é possível identificar, pelo menos, três tipos de família, a saber: a constituída pelo casamento, a configurada pela união estável e, ainda, a que se denomina monoparental”, explicou Lewandowski.

A princípio, o artigo 226, parágrafo 3º da Constituição, fala apenas em uniões heterossexuais. “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”, prescreve o texto. No entanto, repetindo o que já havia dito em 2008, ao julgar o direito de uma concubina de dividir a herança do comanheiro morto com a viúva no Recurso Extraordinário 397.762, o ministro afirmou que a Constituição delegou a definição de “entidade familiar” para a lei.

Esse foi justamente o ponto de debate entre os ministros ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 no Plenário da corte. Tanto o Código Civil quanto a Lei 9.278/1996 exigem que a família seja formada por homem e mulher, sem qualquer menção a relacionamentos homossexuais. É o que prevê, por exemplo, o artigo 1.723 do Código Civil. “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”, diz o dispositivo.

A trava para uma decisão do Supremo em sentido oposto, de acordo com o ministro, estava no princípio da separação dos Poderes, já que o legislador constituinte fez questão de ser específico quanto à possibilidade de uniões estáveis apenas entre gêneros diferentes.

Única saída encontrada para a inauguração de um novo conceito de família foi a escolha dos ministros, com base, de acordo com Lewandowski, em uma “leitura sistemática” da Constituição. “Não há como enquadrar a união entre pessoas do mesmo sexo em nenhuma dessas espécies de família, quer naquela constituída pelo casamento, quer na união estável, estabelecida a partir da relação entre um homem e uma mulher, quer, ainda, na monoparental”, disse Lewandowski. Segundo ele, o quarto gênero de família daria “concreção aos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade, da preservação da intimidade e da não-discriminação por orientação sexual”.

O entendimento foi socorrido pelo constitucionalista português J.J. Canotilho, citado pelo ministro no Plenário. De acordo com a interpretação do ministro sobre a doutrina do jurista, o caminho escolhido seria possível não graças a uma “interpretação extensiva” da Constituição, mas a uma “integração analógica”, cabível por haver um vácuo normatico que mantém esses relacionamentos na clandestinidade legal.

Por analogia, nesse caso, seria possível aplicar os mesmos efeitos das uniões estáveis às uniões homoafetivas, desde que o rol de tipos de entidades familiares pervisto na Constituição fosse entendido não como taxativo, mas apenas exemplificativo. Ainda assim, a corte conclamou o Poder Legislativo a regrar relações dessa natureza.

“Não há, ademais, penso eu, como escapar da evidência de que a união homossexual, em nossos dias, é uma realidade de elementar constatação empírica, a qual está a exigir o devido enquadramento jurídico, visto que dela resultam direitos e obrigações que não podem colocar-se à margem da proteção do Estado, ainda que não haja norma específica a assegurá-los”, afirmou Lewandowski em seu voto. Ele citou dados do IBGE que, de acordo com o último censo apurado no ano passado, há no país pelo menos 60 mil casais homossexuais autodeclarados.

Clique aqui para ler o voto do ministro Ricardo Lewandowski.

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