Idade média

CNJ aprovou ratificação de atos nulos

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4 de maio de 2011, 8h15

A tese de que o povo é apenas matéria plástica nas mãos do príncipe já tem mais de quatro séculos.

Entrementes, e apesar das conclusões do florentino circunscrever-se às peculiaridades do sistema político feudal e precário da sua época, a aplicação de suas máximas no exercício do poder continua servindo aos “modernos” administradores.

Segundo Benito Mussolini, isso se justifica porque a sociedade, no fundo, continua medieval.

Desde 5 de outubro de 1988 vigora o preceito material do artigo 48 da Constituição Federal, assim disciplinado pelo constituinte originário:

Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:

….

X – criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicas.

(com a Emenda Constitucional n. 32, de 2001, o inciso supra ficou assim redigido:

X – criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicas, observado o que estabelece o art. 84, VI, b;).

A despeito da disciplina constitucional, em 20 de junho de 1991, o Tribunal Superior do Trabalho editou a Resolução Administrativa 42, “autorizando”, com base em interpretação conforme o artigo 96, inciso I, alínea b, da Constituição Federal, a criação de funções públicas “por ato administrativo”.

Como resultado dessa “autorização”, desencadeou-se a criação em cascata de uma enxurrada de funções públicas em todos os Tribunais Regionais do Trabalho, segundo as discricionariedades dos respectivos administradores.

Constatada a evidente inconstitucionalidade dos atos, o Tribunal de Contas da União, assombrosamente, posicionou-se pela “legalização” das funções públicas criadas administrativamente (Acórdão 776/2007 – TCU – Plenário).

Apesar do termo “legalização” adotado pelo Tribunal de Contas da União, evidentemente que o caso seria de “constitucionalização” das funções públicas criadas administrativamente.

Ou seja, a solução sugerida pelo TCU foi a aplicação do instrumento da convalidação para “regularizar” o vício da inconstitucionalidade dos atos administrativos!!

Cumpre ressaltar que, em uma perspectiva lógico-jurídica, a figura da convalidação remete à ratificação, já que visa proporcionar à própria autoridade o “conserto” do ato irregular que ela praticou.

Aliás, “ratificação” foi o termo utilizado em todos os projetos de Lei elaborados pelo Tribunal Superior do Trabalho para “regularizar” os atos inconstitucionais (PP CNJ n. 120/2005; 116/2005; 1177/2006, etc).

Note-se que os atos praticados por servidores no exercício de funções públicas inexistentes não seriam prejudicados, haja vista que o foram por servidores de fato, o que é suficiente para preservar a segurança jurídica e a boa-fé dos terceiros. – Por que então a preocupação com a ratificação?

Antes precisaremos responder outra pergunta: seria possível convalidar um ato inconstitucional?

O Supremo Tribunal Federal consagrou, através de sua jurisprudência, a tese da nulidade do ato inconstitucional nas seguintes bases:

O ato é nulo, a inconstitucionalidade é, portanto, declarada, e o desfazimento dos efeitos do ato é retroativo (ex tunc).

Atos inconstitucionais são, portanto, nulos e destituídos, em conseqüência, de qualquer carga de eficácia jurídica.

Na pior das hipóteses, poder-se-ia cogitar da possibilidade do STF, em sede de ADI, com base no artigo 27 da Lei 9.868/99, atribuir à sentença efeitos pro futuro, convalidando parcialmente o ato declarado inconstitucional.

Sucede que, dentre outras, tem a questão dos efeitos financeiros, mormente das incorporações salariais de servidores originadas nas funções públicas nulas!

Nesse caso, a declaração de efeitos pro futuro pelo STF poderia implicar na cassação daquelas vantagens, o que seria um grande “risco de prejuízo”.

Destarte, a solução encaminhada foi a elaboração, pelo Tribunal Superior do Trabalho, de projetos de lei específicos para cada Tribunal Regional do Trabalho com fins à “ratificação” dos atos administrativos inconstitucionais.

O primeiro da fila foi o Projeto de Lei para regularização das funções públicas inconstitucionais do TRT da 24ª Região (Mato Grosso do Sul).

Por força de determinação legal (artigo 88, inciso IV, da Lei 11.178/2005), o referido Projeto de Lei foi submetido ao Conselho Nacional de Justiça – CNJ, onde foi registrado como Pedido de Providências 120/2005 e distribuído ao Conselheiro Douglas de Alencar Rodrigues.

Por ocasião do seu relatório, o referido conselheiro argumentou que: “há vários anos atrás (1991), era prática comum a criação de funções gratificadas no âmbito dos Tribunais por meio de ato administrativo interno”, com o que manifestou-se favorável à regularização formal do ato de “criação” das funções (os destaques não existem no original).

No entanto, apesar de contraditória, numa tentativa de resgatar um mínimo de técnica à solução política encaminhada, ressalvou ao final de seu voto, pela alteração do texto do artigo 2° do referido projeto, editando-se por lei a “criação” das funções comissionadas, e não “ratificação” do ato administrativo questionado, editado (sic) ao arrepio do Texto Constitucional.

É que, com essa ressalva, o CNJ retirava os efeitos retroativos da convalidação do ato inconstitucional, e, por conseqüência, as incorporações nulas.

No entanto, quando na câmara, o referido projeto de Lei que tomara o número 7.405/2002 recebeu a emenda do deputado Nárcio Rodrigues com o seguinte teor:

"Art. 2 º Ficam “convalidados” os atos praticados, até a data de publicação desta lei, por servidores no exercício de funções comissionadas criadas por meio de atos administrativos do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região, “bem como os efeitos financeiros” decorrentes do exercício dessas funções."

O relator da Comissão de Constituição e Justiça, deputado Nelson Trad (que é do estado de Mato Grosso do Sul) aprovou a constitucionalidade da emenda apresentada.

No Senado, o referido Projeto de Lei teve por relator o saudoso senador Ramez Tebet (que também era do estado de Mato Grosso do Sul).

O referido senador além de propor a aprovação da Lei, inusitadamente, fez constar de seu relatório que sua conclusão acompanhava a decisão do CNJ para “ratificar” as funções públicas inconstitucionais! (embora o CNJ houvesse, de início, rejeitado a ratificação).

Realmente, contrariamente à conclusão do CNJ, o Senado aprovou o projeto de lei com a emenda de “convalidação”, como se pretendia desde o início pelo TRT da 24ª Regiã,  em absoluto descompasso com os parâmetros fixados no acórdão do CNJ.

Com essa conveniente disparidade, foi remetido para sanção presidencial, tornando-se a Lei Ordinária 11.336 de 25/07/2006.

Assim é que nasceu o primeiro precedente para as demais proposições que lhe sucederam e até agora já deram origem pelo menos às Leis 11.349/2006 (TRT-8), 11.758/2008 (TRT-1) e 12.273/2010 (TRT-15).

Com isso, apesar da jurisprudência contrária do STF e da vedação de todo arcabouço jurídico-constitucional, a legislação foi inovada para introduzir no sistema jurídico brasileiro a inacreditável figura da constitucionalidade superveniente – “por lei ordinária”!

Em consequência, foram preservados os efeitos financeiros dos atos inconstitucionais, cristalizando a lesão aos cofres públicos, com incorporações indevidas, além de dezenas de outros benefícios adquiridos sobre vantagens inexistentes, sem falar dos vários processos judiciais objetos das mais variadas pretensões também escoradas naquelas funções públicas desprovidas de eficácia jurídica.

Infelizmente, e não se sabe o porquê, nos procedimentos posteriores, o CNJ terminou por encampar a opção do Legislativo, encaminhando-se, desde logo, o projeto de lei para ratificação dos atos nulos por inconstitucionalidade, nos exatos termos alcançados pelo TRT do Mato Grosso do Sul.

Vale dizer, apesar da inconstitucionalidade, o CNJ – órgão constitucionalmente responsável pelo controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário – aprovou e decidiu pela “convalidação” dos atos nulos por inconstitucionalidade.

Alguns teóricos sustentam que, diversamente da idade média, nos tempos de hoje as máximas do secretário florentino não se aplicam em virtude da atuação e preservação da ordem jurídica pela instituição do Ministério Público.

No último dia 24 de abril de 2011, o CNJ aprovou o Pedido de Providência CNJ 000454-24.2011.2.00.0000, da relatoria do conselheiro Felipe Locke Cavalcanti, ocupante da vaga do Ministério Público, “indicado pelo Procurador-Geral da República”.

O referido Pedido de Providência tem por objeto a “ratificação” dos atos nulos por vício de inconstitucionalidade oriundos do TRT-18 (GO).

Mito por mitologia, prefiro a deusa Têmis. Pelo menos ela cumpria a sua função.

Nas ações “contra os quais não há tribunal a que recorrer, os fins é que contam. Faça, pois, o príncipe tudo para alcançar e defender o poder; os meios de que se valer serão sempre julgados honrosos e louvados por todos, porque o vulgo atenta sempre para aquilo que parece ser e para os resultados”. [1]

Já não bastasse os acessos de loucura, agora o Ministério Público Federal incorpora também acessos de figura meramente decorativa.

A inércia, de fato, equipara o escravo ao livre e o tutor ao serviçal.

Na concepção do CNJ, este é um compromisso que leva o seu nome!


[1] Maquiavel, N., O Príncipe, cap. XVIII, Quomodo Fides a Principus Sit Servanda (De que modo devem os príncipes manter a palavra dada), p. 113

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