Parcelas acumuladas

Benefício recebido na Justiça não sofre retenção de IR

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3 de maio de 2011, 4h32

Todos os dias, milhares de cidadãos ingressam com ações judiciais contra a fazenda pública federal e, mais especificamente, contra o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Ações judiciais versando sobre a concessão, restabelecimento ou reajuste de auxílio-doença, auxílio-reclusão, aposentadoria por invalidez, aposentadoria por idade rural, aposentadoria por tempo de contribuição, pensão por morte, salário-maternidade e benefício de amparo assistencial (LOAS). Muitos desses cidadãos logram êxito na primeira instância, mas é comum ver tais ações tramitando por meses ou anos, em razão de recursos interpostos pela autarquia previdenciária, impedindo que a questão se resolva integralmente na primeira instância.

Para melhor ilustração, tomemos como exemplo uma empregada doméstica com remuneração fixada em um salário-mínimo, sendo tal a sua única fonte de renda. Preenchido o requisito de carência (12 contribuições mensais, conforme artigo 25, inciso I, da Lei 8.213/1991) e estando incapacitada para o trabalho por mais de 15 dias, a cidadã procura o INSS pleiteando o benefício previdenciário de auxílio-doença (conforme artigo 59 da Lei 8.213/1991). A autarquia previdenciária indefere o pedido porque a perícia médica realizada administrativamente concluiu que a enfermidade que acomete a cidadã não a incapacita para o trabalho.

Inconformada, a cidadã ingressa com ação judicial buscando a condenação do INSS ao pagamento do benefício, com pagamento de todas as parcelas devidas desde o requerimento administrativo, inclusive com pedido de antecipação dos efeitos da tutela, alegando preencher os requisitos legais para percepção do benefício e a necessidade de obter uma decisão provisória em caráter de urgência, já que o benefício previdenciário tem caráter alimentar, servindo para sustentá-la em uma situação de contingência. No início da demanda, o juízo nega o pedido de tutela antecipada por entender necessária uma perícia médica judicial para esclarecer, com segurança, que a autora encontra-se mesmo incapaz para o trabalho por mais de 15 dias consecutivos.

A perícia médica judicial conclui que a autora realmente está incapacitada para o trabalho desde a época em que requereu o benefício ao INSS. O juízo julga procedente o pedido formulado pela autora, condenando o INSS ao pagamento de todas as parcelas de auxílio-doença devidas desde o dia em que requereu administrativamente o benefício. O INSS, então, interpõe recurso, o que não impede a autora de começar a receber, desde a sentença, o benefício de auxílio-doença, dado o caráter alimentar do benefício. Porém, todas as parcelas devidas até a sentença ficam esperando o final do processo. Apenas quando esgotadas todas as possibilidades recursais, os autos do processo retornarão a instância inicial e a autora receberá as parcelas atrasadas com juros e correção monetária, caso seja a vencedora.

A interposição de recursos por parte do INSS e a notória morosidade dos processos judiciais retardam sobremaneira o recebimento de todos os valores devidos ao cidadão desde o indeferimento administrativo indevido e a prolação de sentença — ressalvados os casos em que houve tutela antecipada concedida no início da lide. Após o trânsito em julgado da sentença e a expedição do precatório ou da Requisição de Pequeno Valor (RPV), o cidadão é intimado a dirigir-se a determinada agência bancária para realizar o saque da quantia judicialmente reconhecida como devida e, não raro, tem se deparado com o registro, no extrato bancário, da retenção, a título de Imposto de Renda, sobre percentual dos valores recebidos. Muitas vezes, já esgotado da batalha judicial, o cidadão acaba aceitando ou nem percebendo a lesão em seu direito.

No exemplo acima construído, suponhamos que em razão da notória morosidade processual e dos sucessivos recursos interpostos pelo INSS — que muitas vezes fazem a tramitação do feito demorar anos, chegando até o Supremo Tribunal Federal —, a empregada doméstica tenha esperado muitos anos até o resultado final da demanda e nela tenha logrado êxito. Ao buscar a expedição da RPV, os juros e correção monetária incidentes sobre as parcelas devidas desde o indeferimento administrativo até a sentença favorável majoram o total devido, chegando a uma RPV de R$ 15 mil. Ao buscar o saque bancário dessas verbas, a autora se depara com incidência de Imposto de Renda, à razão de 27,5% de todo o montante percebido. Pergunta-se: é lícita a incidência de Imposto de Renda na hipótese?

A resposta é negativa. É que a incidência de Imposto de Renda sobre valores recebidos a título de parcelas de benefício previdenciário ou assistencial atrasados — entendidas como tais as compreendidas entre o indeferimento administrativo indevido e a prolação da sentença de primeiro grau — só se justifica se aquelas parcelas, consideradas individualmente em seu valor mensal, superavam o limite de isenção de Imposto de Renda estabelecido para a época em que deveriam ter sido pagas pela autarquia previdenciária, pois, para fins de estabelecer a alíquota de Imposto de Renda aplicável, prevê o artigo 521 do Regulamento do Imposto de Renda (RIR) — o Decreto 85.450/1980 — que “os rendimentos pagos acumuladamente serão considerados nos meses a que se referirem”.

No caso hipotético aqui descrito, se o INSS tivesse deferido o benefício administrativamente — como deveria tê-lo feito, segundo o Judiciário —, a cidadã receberia um benefício de auxílio-doença no valor de um salário-mínimo por mês até recuperar sua capacidade para o trabalho. Estando tais valores bem abaixo do limite mensal de isenção do Imposto de Renda da época em que deveriam ser pagos — não confundir com o limite atualmente o limite estabelecido, que é de R$ R$ 1.873,94 —, está ela legalmente dispensada do pagamento do tributo e, portanto, faz jus à restituição dos valores retidos.

Em outras palavras, se os valores devidos ao cidadão, considerados mês a mês, não superavam o limite de Imposto de Renda estabelecido legalmente na época em o benefício era devido, não é possível a retenção de imposto quando do recebimento desses valores mediante precatório ou RPV decorrentes de processo judicial, sob pena de afronta ao princípio constitucional da igualdade em relação aos cidadãos com mesma renda e que tiveram o benefício deferido administrativamente, não se sujeitado à retenção de Imposto de Renda, dado que o valor de seus benefícios estava enquadrado dentro do limite de isenção. Ademais, admitir o pagamento de imposto, no caso em análise, representaria incompreensível punição ao cidadão por ingressar judicialmente contra a omissão da autarquia previdenciária, que deixara de conceder, a tempo e modo, o que era devido ao cidadão por direito.

A rigor, temos que a própria retenção está viciada por violação do princípio constitucional da isonomia, já que a referida cidadã ficará algum tempo sem poder usufruir de parte dos valores que são devidos até a promoção da restituição pelo Fisco, ao passo que o cidadão que teve o benefício em idêntico valor deferido a tempo e modo nenhuma retenção teve de suportar. Ressalte-se, ainda, a possibilidade de o Fisco negar a restituição e a cidadã ter que recomeçar toda a via crucis judicial com fito de reaver valores que lhe pertencem.

Ademais, ainda que tais valores superem o limite de isenção para a época em que deveriam ser pagos, a alíquota de Imposto de Renda aplicável é a da época em que o benefício deveria ser pago e não a alíquota existente no momento em que o cidadão vai receber os atrasados judicialmente via precatório ou RPV. O detalhe é relevante, pois a aplicação de uma ou outra alíquota altera valor de imposto a incidir. Se o Fisco utiliza a alíquota vigente por ocasião da expedição do precatório ou da RPV, o cidadão pode estar sofrendo exação tributária maior do que o Fisco poderia legalmente exigir ao aplicar a alíquota correta, da época em que o benefício era devido.

Trata-se de entendimento já pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça[1], o qual reza que “não se pode impor prejuízo pecuniário à parte em razão do procedimento administrativo utilizado para o atendimento do pedido à seguridade social que, ao final, mostrou-se legítimo, tanto que deferido, devendo ser garantido ao contribuinte à isenção de imposto de renda, uma vez que se recebido mensalmente, o benefício estaria isento de tributação", tese perfeitamente aplicável também aos casos de reajuste de benefícios previdenciários, na esteira de entendimento do STJ[2]: “O Direito Tributário admite, na aplicação da lei, o recurso à equidade, que é a justiça no caso concreto. Ora, se os proventos, mesmos revistos, não são tributáveis no mês em que implementados, também não devem sê-lo quando acumulados pelo pagamento a menor pela entidade pública. Ocorrendo o equívoco da Administração, o resultado judicial da ação não pode servir de base à incidência, sob pena de sancionar-se o contribuinte por ato do fisco, violando os princípios da Legalidade e da Isonomia, mercê de chancelar o enriquecimento sem causa da Administração”.

Vide ainda outros precedentes do STJ reforçando a tese acima esposada:

“RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. PAGAMENTO ACUMULADO EFETUADO COM ATRASO PELO INSS. VALOR MENSAL ISENTO DE IMPOSTO DE RENDA. ATUALIZAÇÃO MONETÁRIA DO MONTANTE RECEBIDO. NÃO-INCIDÊNCIA DO TRIBUTO. PRECEDENTES DA PRIMEIRA TURMA.

Merece prevalecer o entendimento esposado pela Primeira Turma de que "o imposto de renda não incide sobre os valores pagos de uma só vez pela Administração, quando a diferença do benefício determinado na sentença condenatória não resultar em valor mensal maior que o limite legal fixado para isenção do imposto de renda"(REsp 505081/RS, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 31.05.2004) . Recurso especial improvido.”(STJ, REsp 723.196/RS, Rel. Ministro FRANCIULLI NETTO, SEGUNDA TURMA, julgado em 15.03.2005, DJ 30.05.2005) (grifo nosso)

TRIBUTÁRIO. REVISÃO JUDICIAL DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. IMPOSTO DE RENDA RETIDO NA FONTE. VALORES PAGOS ACUMULADAMENTE.

1. No cálculo do imposto incidente sobre rendimentos pagos acumuladamente, devem ser levadas em consideração as tabelas e alíquotas das épocas próprias a que se referem tais rendimentos, nos termos previstos no art. 521 do RIR (Decreto 85.450/80). A aparente antinomia desse dispositivo com o art. 12 da Lei 7.713/88 se resolve pela seguinte exegese: este último disciplina o momento da incidência; o outro, o modo de calcular o imposto.

2. Recurso especial improvido.

(STJ, REsp 719.774/SC, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 15.03.2005, DJ 04.04.2005) (grifo nosso)

 

TRIBUTÁRIO. AÇÃO REVISIONAL DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. PARCELAS ATRASADAS RECEBIDAS ACUMULADAMENTE. VALOR MENSAL DO BENEFÍCIO ISENTO DE IMPOSTO DE RENDA. NÃO-INCIDÊNCIA DA EXAÇÃO.

1. O pagamento decorrente de ato ilegal da Administração não constitui fato gerador de tributo.

2. O imposto de renda não incide sobre os valores pagos de uma só vez pelo INSS, quando o reajuste do benefício determinado na sentença condenatória não resultar em valor mensal maior que o limite legal fixado para isenção do referido imposto.

3. A hipótese in foco versa proventos de aposentadoria recebidos incorretamente e não rendimentos acumulados, por isso que, à luz da tipicidade estrita, inerente ao direito tributário, impõe-se o acolhimento da pretensão autoral.

4.O Direito Tributário admite na aplicação da lei o recurso à eqüidade, que é a justiça no caso concreto. Ora, se os proventos, mesmos revistos, não são tributáveis no mês em que implementados, também não devem sê-lo quando acumulados pelo pagamento a menor pela entidade pública. Ocorrendo o equívoco da Administração, o resultado judicial da ação não pode servir de base à incidência, sob pena de sancionar-se o contribuinte por ato do fisco, violando os princípios da Legalidade e da Isonomia, mercê de chancelar o enriquecimento sem causa da Administração.

5.O aposentado não pode ser apenado pela desídia da autarquia, que negligenciou-se em aplicar os índices legais de reajuste do benefício. Nessas hipóteses, a revisão judicial tem natureza de indenização pelo que o aposentado isento, deixou de receber mês a mês.

6. Recurso especial provido.

(STJ, REsp 492.247/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21.10.2003, DJ 03.11.2003) (grifo nosso)

A praxe forense tem nos mostrado que infelizmente não são raros os casos de incidência indevida de Imposto de Renda, nos moldes do aqui narrado. Como a questão é basicamente de direito e se repete com tanta frequência, seria recomendável a propositura de ação civil pública para impedir a continuação da referida prática pelo Fisco e assim tutelar coletivamente todos os contribuintes.

O problema é que o parágrafo único do artigo 1º da Lei 7.347/1985, incluído pela Medida Provisória 2.180-35, de 2001 — dispositivo legal de constitucionalidade duvidosa, cuja análise demandará outro artigo — veda a propositura de ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos.

Assim, só resta alertar aos cidadãos litigantes para atentarem quando do recebimento de valores mediante precatório e RPV e, caso haja retenção indevida ou irregular de Imposto de Renda, busquem administrativamente ou judicialmente se preciso for, sendo recomendado fazê-lo através de advogado especialista na área tributária. Caso o cidadão não tenha condições financeiras de fazê-lo sem prejuízo do sustento próprio ou da família, deve procurar assistência jurídica gratuita fornecida pela Defensoria Pública da União.


[1] AgRg no Ag 850989 / SP, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, unânime, DJ de 12/02/2008.

[2] AgRg no REsp 1069718 / MG, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, unânime, DJ de 25/05/2009.

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